Uma igreja justa e sempre próxima do povo. Este é o sonho do frei Gilvander. Entrevista ao Jornal Marco, da PUC Minas.

Uma igreja justa e sempre próxima do povo. Este é o sonho do frei Gilvander.

Entrevista que frei Gilvander concedeu ao Jornal MARCO, Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo, da Faculdade de Comunicação e Artes, da PUC Minas, Ano 44, edição 331, setembro de 2017, p. 16. Entrevista realizada pelas estudantes Marina Menta e Sophia Tibúrcio, 1º e 3º períodos, com fotografia de Elisa Senra.

 Título da Entrevista: Religioso dedica toda a sua vida à justiça social

Um homem a serviço de Deus, um soldado da dignidade humana. Talvez essa seja uma boa definição do frei Gilvander Luís Moreira, da Ordem dos Carmelitas, um dos grandes defensores das populações que ocupam áreas ociosas na Região Metropolitana de Belo Horizonte e lutam pela realização do seu direito de ter uma casa própria.

Frei Gilvander já foi trabalhador na roça, vítima de exploração de patrões e hoje é bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, bacharel em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG; assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), CEBs, SAB e de Ocupações Urbanas, em Minas Gerais. Nessa entrevista, frei Gilvander comenta a crise política e econômica atual do Brasil e aponta a importância do papel do sacerdote na sociedade.

Jornal Marco: Como o sr. vê a situação dos trabalhadores no atual momento e que soluções poderiam ser buscadas para impedir mais perdas de direitos?

Frei Gilvander: “A classe trabalhadora e a camponesa não estão sendo apenas exploradas, estão sendo superexploradas. A opressão que o sistema capitalista está perpetrando hoje contra estas classes nunca foi tão cruel na história, a exploração atingiu um nível insuportável. Então, o problema principal, hoje, no Brasil não é a corrupção: 80% a 90% da injustiça e da violência que pairam sobre o povo brasileiro são causados pela exploração do capital em cima da mão de obra.”

Jornal Marco: No cenário político e econômico de dificuldades que passa o Brasil, qual deve ser o papel dos padres?

Frei Gilvander: “O papel de seguir, na prática, Jesus Cristo, o evangelho Dele e de seguir, também, o que diz o papa Francisco. Se fizermos isso, já vamos dar uma contribuição importante para superar a montanha de injustiças e violências que, infelizmente, está permeando o tecido social brasileiro.”

Jornal Marco: O que os padres podem fazer?

Frei Gilvander: “A solução que eu e os companheiros da Comissão Pastoral da Terra e dos movimentos sociais populares propomos é a gente seguir organizando o povo para construir um poder popular em todos os bairros, todos os cantos e recantos, nas periferias, nas cidades, no campo, em todos os lugares. Tem que ter o povo organizado fazendo pressão para frear essa avalanche de violência, porque não pode depender mais da democracia representativa com políticos desonestos que não representam ninguém.”

Jornal Marco: O sr. acredita na possibilidade de mudar nossa sociedade? Como?

Frei Gilvander: Eu não vejo uma solução a partir dos poderosos; a solução tem que ser a partir da união dos pequenos. Isso passa por organização de base, passa por formação. Nós temos que, hoje, fazer uma conversão social das pessoas religiosas, superando o atual descolamento da fé com o social, com o político, com o econômico. A solução existe, só não é fácil porque não é a partir de alguns figurões de cima que vamos conseguir fazer mudanças. Tem que ser um grande movimento de resgate dos verdadeiros valores da vida; temos que despertar a sociedade para ver a beleza que é a pessoa ser justa, honesta, solidária, desenvolver responsabilidades sociais, cultivar a responsabilidade ambiental.”

Jornal Marco: Faltam padres no Brasil e no mundo?

 Frei Gilvander: “Não acho que faltam padres, eu acho que falta valorizarmos mais o sacerdócio comum e não o sacerdócio ordenado. Se a gente for olhar na Bíblia, principalmente nos evangelhos do Novo Testamento, o que é mais valorizado são as lideranças leigas. As primeiras comunidades que celebravam a eucaristia não tinham padre. Os leigos, as lideranças e, em sua maior parte, mulheres, celebravam. Então, é errado pedagogicamente essa hiper-valorização do sacerdócio ordenado, porque estaríamos privatizando a fé.”

Jornal Marco: O que é ser sacerdote?

Frei Gilvander: “Sacerdote significa, etimologicamente, fazer sagrado; a missão de revelar a sacralidade existente nas pessoas, na biodiversidade, em tudo. Na verdade, sacerdote não é aquele que de uma forma mágica vai impor o sagrado sobre a realidade; a missão dele é revelar e explicitar a dimensão sagrada já existente no real. Tudo é sagrado. O profano é uma das realidades mais sagradas, como, por exemplo, o trabalho, as pessoas. Onde tem vida aí está o sagrado.  Ser sacerdote é contribuir para que as pessoas percebam a luz e a força divina, permeando e perpassando toda a realidade.”

Jornal Marco: O sr. teve de renunciar a muita coisa?

Frei Gilvander: “Sim, toda opção implica uma renúncia. Para ser frei e padre eu renunciei a ter uma companheira, casar e formar uma família, mas na vida é sempre assim. Outro exemplo é o de que abdiquei de ter filhos, mas conheço dez crianças que carregam meu nome porque as mamães e os papais colocaram porque admiram o trabalho pastoral que eu faço. Eu não gerei nenhum filho, mas sinto que tenho um monte de filhos por aí. Então a gente renuncia a alguma coisa, mas quando a vocação é desenvolvida com paixão e dedicação, vale a pena.”

Jornal Marco: O que o motivou a  ser religioso?  Qual foi a reação de sua família?

Frei Gilvander: “Mil e uma circunstâncias, mas vou falar as principais. Uma delas são meus pais, porque eram pessoas muito justas, solidárias, amigas de todo mundo. Então, desde pequeno, eu fui formado e educado para ser uma pessoa solidária, justa, honesta e isso contribuiu. Outro aspecto é que eu tive uma infância e uma adolescência muito sofridas, no sentido de viver sem terra, sem moradia, trabalhar na roça e latifúndio, e quando o fazendeiro levava metade da nossa produção, eu escutava no meu coração duas afirmações, que diziam “Deus não quer isso”, e “isso não é justo”. Então, com essa experiência de ser explorado, cresceu em mim o desejo de ser frei e padre, para ajudar a construir uma sociedade justa, solidária, lutar contra as injustiças.”

Jornal Marco: O que o deixa mais feliz na realização do seu trabalho e missão?

Frei Gilvander: “Deixa-me feliz perceber que, quando a gente faz esse trabalho de base, nessas lutas populares a gente conquista direitos humanos e sociais. Só para citar um exemplo, nos últimos dez anos a Prefeitura de Belo Horizonte destruiu e demoliu mais de 15 mil casas para alargar avenidas, construir viadutos, então eu me pergunto: “será que a dignidade dos automóveis tem mais valor que a dignidade humana?” E a gente luta contra isso. Na luta coletiva as Ocupações em Belo Horizonte, nos últimos 10 anos, construíram mais de 15 mil casas próprias e dignas.”

Jornal Marco: Como o sr. vê as posições e ideias inovadoras do papa Francisco?

Frei Gilvander: “Com muita alegria, o papa Francisco está sendo uma bênção. É o verdadeiro pastor, bom samaritano, um verdadeiro profeta. O que está deixando muito a desejar nas igrejas de hoje são alguns padres jovens e seminaristas que não estão seguindo o caminho do papa. Antes de se tornar papa, ele trabalhou com os pobres mais de 30 anos, então é um homem muito solidário e está ajudando a libertar a Igreja de muitas coisas horrorosas.”

Jornal Marco: As igrejas (neo)pentecostais vêm ganhando espaço cada vez mais no Brasil, atraindo fiéis especialmente nas periferias das cidades. Qual a causa disto?

Frei Gilvander: “Várias causas. Uma delas é o conservadorismo da Igreja Católica com padres moralistas e autoritários. Outra causa é o capitalismo, quanto mais ele aumenta o nível de opressão, mais deixa as pessoas angustiadas, buscando um “Oásis”, uma aba de salvação, então correm para as Igrejas (neo)pentecostais que lhes prometem isto. Lá são abraçadas, acolhidas e vivenciam uma literatura de auto ajuda ao lidar com as grandes opressões. Por um lado as pessoas são acolhidas, mas, por outro, são sugadas através do dízimo e do que se chama de “teologia da prosperidade”. Nesse caso, se desenvolve uma grande mentira, que é fruto de uma falsa interpretação da Bíblia.”

Jornal Marco: A igreja Católica tem dificuldade de dialogar com o povo mais humilde? Por quê?      Frei Gilvander: “Aconteceu na Igreja Católica de 1962 a 1965 o Concílio do Vaticano II, que abriu a Igreja para o mundo, para opção pelos pobres, para o profetismo, para a inculturação. Depois de cinco conferências dos bispos latino-americanos, a opção pelos pobres e o protagonismo dos leigos permaneceu. Infelizmente, nos pontificados de João Paulo II e do Ratzinger, a cúpula da Igreja foi gradativamente abandonando a opção pelos pobres. Agora o papa Francisco está sinalizando para as igrejas corrigirem esse grave erro e retomar a opção pelos pobres, conviver com eles e serem solidárias com suas lutas.”

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