TODOS OS SANTOS E SANTAS DE DEUS: Mt 5,1-12. O ANEL DE TUCUM DA SANTIDADE NOSSA DE CADA DIA – Por Marcelo Barros 

TODOS OS SANTOS E SANTAS DE DEUS: Mt 5,1-12. O ANEL DE TUCUM DA SANTIDADE NOSSA DE CADA DIA – Por Marcelo Barros 

Neste domingo, no Brasil, dia 03 de novembro de 2024, a Igreja Católica celebra todos os santos e santas. A festa de Todos os Santos e Santas é ação de graças pela Páscoa de Jesus que manifesta a força e a beleza de sua ressurreição na comunhão dos santos e santas, ou seja, na unidade entre todas as pessoas do céu e da terra, de cuja energia nós todos/as recebemos graças e bênçãos. Céu e terra em profunda conexão.

Nesta festa, as comunidades leem o evangelho das bem-aventuranças (Mateus 5,1–12). Bem-aventuranças é um termo que aparece de vez em quando nos salmos e nos livros proféticos do Primeiro Testamento bíblico. Na espiritualidade popular brasileira, a bênção é muito importante. Os pais e mães abençoam os filhos e filhas. Até quem pede esmola, agradece dizendo: Deus te abençoe. Na espiritualidade dos povos bíblicos, não se diz apenas Deus te abençoe, mas “Bendito seja Deus por você, por sua vida e por tais e tais acontecimentos”. Bendito seja o Amor Divino pelos alimentos que recebemos. A bendição é o estilo mais comum de oração bíblica, é um jeito de expressar gratidão pelo mistério de amor que está em nós e nos envolve. No entanto, o sujeito ou destinatário da bendição é sempre Deus. As bem-aventuranças são outro tipo de bendição e são dirigidas às pessoas e não a Deus. É como se passasse do estilo de oração ritual para a oração profética, que é dirigida às pessoas e não diretamente a Deus.

Mateus inicia o discurso da montanha, pondo na boca de Jesus oito bem-aventuranças. Algumas traduções simplesmente traduzem bem-aventurados por Felizes – as pessoas pobres de coração, as pessoas humildes, as que choram e assim por diante. No entanto, a bem-aventurança tem um sentido mais objetivo do que apenas um sentimento ou emoção. Contém o sentimento, mas vai além. O padre André Chouraqui, que traduz muito literalmente o termo original, prefere a expressão: “Para frente, no caminho”. De fato, o termo bem-aventuranças é muito rico. Qualquer que seja a tradução contém um aspecto, mas não consegue expressar toda a riqueza que o termo evangélico contém. Diferentemente de abençoado e também de feliz, bem-aventurado/a significaria a pessoa que recebe de Deus o reconhecimento de sua dignidade e do sentido para a sua vida. 

Dizer que uma pessoa é bem-aventurada é afirmar que ela é querida por Deus. É alguém que Deus proclama como sendo alguém de sua predileção. Não porque Deus queira a pobreza, ou goste que as pessoas chorem ou vivam em situação de injustiça. É justamente o contrário. Deus privilegia as pessoas pobres e injustiçadas para lhes dar força de se libertarem e, assim, elas não mais serem vítimas da injustiça.

As comunidades do evangelho de Mateus ainda viviam em um mundo no qual as infelicidades da vida eram atribuídas ao fato de que Deus teria esquecido essas pessoas ou até, por alguma razão, as condenado à pobreza e à infelicidade. O mundo as considerava malvistas e mal faladas. Jesus subverte esse pensamento e deixa claro: Ao contrário, são justamente essas pessoas que o Pai de Amor considera bem-aventuradas: as que assumem a pobreza – viver de forma simples e austera – como opção de vida, as que são pequenas, são humildes, trabalham pela paz, etc… Esse é o critério de santidade de Jesus: é uma santidade social e política e não apenas uma forma de virtude interior e íntima. 

A santidade que Deus quer tem um jeito diferente da imagem habitual do santo e da santa. No meio de todos os nossos problemas, fragilidades e mesmo contradições, vamos testemunhando o reino divino no mundo, ou seja, a realização do projeto de justiça e paz. Nos tempos da ditadura militar-civil-empresarial no Brasil, tempos de perseguição às comunidades e movimentos de base, muitos de nós éramos reconhecidos como sendo da caminhada por carregar no dedo o anel de tucum. Pedro Casaldáliga insistia que ter esse anel era uma responsabilidade imensa: era sinal de que pertencemos à caminhada de libertação dos pobres. Como diz a carta aos Romanos: Assim como Abraão, “esperando contra toda a esperança” (Rm 4,18), vamos em frente obedecendo à palavra que nos mandou partir em missão libertadora no meio do povo. 

Em nossos tempos, tomamos consciência de que essa comunhão de amor e de participação no mistério da Vida não abrange apenas as pessoas batizadas, ou seja, cristãs. Envolve, sim, todas as pessoas que, em qualquer caminho espiritual e mesmo fora das igrejas e religiões, são tocadas e conduzidas pelo amor divino. É a comunhão dos santos e das santas que nos faz reverenciar hoje os nossos ancestrais, honrados nas espiritualidades dos povos originários e também nas diversas comunidades de espiritualidade afrodescendentes: Orixás, Inquices, Vodus e outros.

Leonardo Boff e muitos irmãos e irmãs que nos apresentam a Cosmologia atual falam da “comunidade da Vida”. Fritjof Capra, cientista e físico, escreve: “A vida não é propriedade de um único organismo ou espécie, mas de um sistema ecológico. Nenhum organismo individual vive em isolamento”[1]. Nós seres humanos somos os animais que mais dependem de todo o meio ambiente e de todos os outros seres vivos.

O biólogo Emmanuel Almada escreve: “O amor também é fenômeno biológico, como belamente demonstrado por Humberto Maturana. Segundo o neurobiólogo chileno, “o amor é fenômeno biológico que não requer justificação”. É o amor, a emoção, que fundamenta a socialização, uma vez que é ele que permite os encontros recorrentes entre os indivíduos. Para Maturana, o movimento contrário ao amor é a rejeição e a indiferença. Convivendo com os empobrecidos e em profunda harmonia com a natureza, Francisco de Assis compreendeu que “só o amor constrói”.

Ao alargar o espectro do amor para os outros sistemas vivos, é possível compreender o amor como base de todas as alianças, não só entre humanos. É essa tendência de viver juntos, de atenção e aceitação da diferença que permitiu, ao longo da história ecológica da terra, o encontro entre espécies, inclusive entre parasitas e seus hospedeiros. Foi assim, num processo amoroso, como nos ensinou Lynn Margulis, que há bilhões de anos, na imensidão dos mares primevos, uma bactéria aeróbica penetrou em outra anaeróbica (como parasita ou como alimento, não se sabe), formando os primeiros eucariotos dos quais descendemos (Lynn, 1967, p. 14). (…) É o jogo autopoiético que caracteriza o encontro entre sistemas vivos descrito também por Maturana e Varela, onde se muda para continuar a ser (o mesmo)”.

A teoria de Maturana e Varela pode nos ajudar a compreender melhor quando Leonardo Boff, junto a pensadores de todo o mundo, afirma a espiritualidade como o desenvolvimento desta abertura interior ao amor e processo de amadurecimento interior e de plena realização humana é dimensão antropológica universal e se manifesta muito além das religiões.

Nesta festa dos santos e santas, podemos escutar de novo o chamado divino para a santidade que hoje toma forma diferente de outros tempos. 

É preciso abrirmos os olhos para esse novo olhar sobre a realidade e a nossa vocação. A festa de hoje confirma cada um/uma de nós nessa caminhada. Vamos em frente e com esperança de que nossa vitória não vem de uma conjuntura mais positiva, mas sim da força do amor divino que está em nós. Esse é o segredo da santidade nossa de cada dia. 

Até hoje, a comunidade ecumênica de Taizé tem uma oração muito repetida na prece do meio dia que diz: Guarda-nos, Senhor, na alegria, na simplicidade e na misericórdia, segundo o evangelho (das bem-aventuranças). Abençoa-nos nesse caminho..”


[1] – FRITJOF CAPRA, As Conexões Ocultas, Ciência para uma vida sustentável, Sao Paulo, Ed. Cultrix, 2002, p. 23.

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