A Páscoa da Cruz nas pessoas crucificadas e nos povos martirizados – Por  Marcelo Barros

A Páscoa da Cruz nas pessoas crucificadas e nos povos martirizados – Por  Marcelo Barros

Marcelo Barros, irmão, padre, monge, biblista e teólogo da Libertação. Reprodução Redes Virtuais

Neste dia em que celebramos a Páscoa da Cruz, torna-se graça divina, mas também é nossa responsabilidade escutar a boa nova contida na narrativa  da paixão de Jesus segundo João.

No quarto evangelho, o relato da paixão de Jesus (João 18 e 19), se diferencia das outras versões da paixão. Enquanto os demais evangelistas sublinham os sofrimentos de Jesus, o quarto evangelho prefere mostrar como, mesmo em meio a muitos sofrimentos, é Jesus que toma a iniciativa dos acontecimentos e dirige o rumo do que vai acontecendo. Os evangelistas Marcos, Mateus e Lucas narram que Jesus passou por um momento de agonia e angústia no Horto das Oliveiras. Jesus chega a pedir ao Pai: “Afasta de mim este cálice”. O quarto evangelho não conta nada disso. Revela que Jesus foi ao jardim de Getsêmani para orar. E quando os soldados se aproximam para prendê-lo, é o próprio Jesus, que vai ao encontro dos soldados e toma a iniciativa de perguntar: A quem procurais? E quando eles dizem: Jesus de Nazaré,  Jesus responde:  Sou eu, a mesma palavra que define o nome divino no Êxodo. Ao ouvir essa palavra, são os soldados que caem e Jesus que fica de pé. Do mesmo modo, quando Pilatos o interroga, Jesus se proclama claramente como tendo vindo ao mundo para dar testemunho de que o reino de Deus é verdade. Na mesma linha, de acordo com esse evangelho, foi ao inclinar a cabeça para expirar que Jesus nos entregou o Espírito.

Que sentido tem para nós hoje receber em nossas vidas esse evangelho com essa visão aparentemente pouco histórica e mais teológica da paixão de Jesus que o quarto evangelho chama de “exaltação do Filho do Homem”? 

No final dos anos 1970, em uma aldeia dos índios Bororo no Mato Grosso, Umero, velho guerreiro do seu povo confidenciava a religiosos que quisessem escutar: “O problema nosso é que estamos sendo destruídos como povo e estamos perdidos. E, em segredo, vou lhe dizer porque. Deus está com raiva de nós e decidiu nos destruir. Sabe por quê?  Porque os missionários andaram por aí espalhando que nós, os Bororo, somos culpados da morte do filho de Deus. E eu garanto ao senhor, padre, a gente nem conheceu ele no tempo que era vivo… Como a gente pode ter matado o filho de Deus?”  

Umero tinha suas razões para tirar essa conclusão de uma teologia que fala da cruz como sacrifício e de um Deus que precisava que o seu Filho morresse na cruz para salvar a humanidade.

Em El Salvador, o bispo Oscar Romero celebrava a paixão de Jesus contemplando a paixão dos pobres no mundo atual. Não para dizer: são santos porque estão na cruz e assim depois de mortos vão para o céu. Não. Ele denunciava que o povo estava crucificado e que a obrigação de quem tem fé é fazer tudo, o possível e o impossível para tirá-los da cruz. Por isso, ele, Romero, também foi martirizado como Jesus. Jesus foi crucificado para que ninguém mais seja crucificado. Lutar pela superação de todas injustiças e violências é o que o Evangelho pede de nós.

Para elucidar ainda mais a questão acima suscitada, se torna necessário dar-se conta de que, de fato, continuamos a viver em um mundo no qual imensa parte da humanidade está sendo crucificada pelo poder econômico que domina o mundo e beneficia uma minoria de menos de 5% da humanidade. Por isso, mais de um bilhão de pessoas no mundo passam fome, mais um tanto sofre carência de água potável, milhões de migrantes que não são reconhecidos como pessoas humanas. E a própria Terra, nossa casa comum, como diz o papa Francisco, está sendo crucificada e ferida pela ambição humana. 

Apesar de todas as dificuldades e dos fracassos que nos sobrevêm diariamente, a nossa fé nos pede que levantemos a cabeça, renovemos a esperança e possamos descortinar a vitória pascal de Jesus ocorrendo em meio às nossas lutas interiores e morais, assim como nas lutas sociais. 

Se queremos ligar nossa fé à vida concreta nossa e da humanidade, precisamos compreender que Jesus morreu na cruz para que todos possam viver e para que nunca mais ninguém morra nas cruzes simbolizadas pelas diversas formas cruéis de humilhações, violências morais e físicas, desigualdades, pobrezas e exclusões… Jesus morreu na cruz para que nós todos lutemos para descer da cruz os oprimidos e perseguidos que até hoje continuam crucificados. 

Hoje, celebramos a crucifixão para descrucificar as pessoas que hoje vivem crucificadas. A cruz de Jesus é todo sofrimento assumido por missão, por amor e solidariedade a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres e os grupos e categorias marginalizados ou perseguidos pela sociedade dominante. É preciso descer da Cruz as multidões crucificadas, cuja cruz não é a de Jesus.

 O Evangelho de João revela que, mesmo na Cruz, Jesus se preocupa com sua mãe ali chorando ao pé da cruz e com o discípulo amado que representa a todos/as nós, discípulos e discípulas. E assim como Lucas revela Jesus perdoando os seus algozes e inimigos, João nos mostra Jesus nos dando o seu Espírito mesmo quando teria motivos de se sentir abandonado e quase que traído pelos próprios discípulos. Essa atitude de amor não violento e paciente é o que ele pede de nós na nossa militância e vida diária. Nós aprendemos desse relato da paixão que o que Deus nos pede hoje é rever e corrigir nossas atitudes de intransigência e intolerância, pois, ao agir dessa forma, não nos tornamos radicalmente diferentes dos nossos adversários. 

Quando o relato desse evangelho nos fala da cruz vitoriosa de Jesus é para nos ajudar a ver que o amor, a solidariedade e a luta por justiça podem tornar vitoriosas as lutas dos pequenos por uma terra sem males. Na cruz, Jesus nos entrega o seu espírito, que é o Espírito Santo para nos animar nessa luta para que venha a esse mundo o reino de Deus. 

Perguntas para a meditação pessoal:

1 – Em que aspectos da minha vida pessoal, preciso hoje deixar que transpareça a “elevação do Filho do Homem”, ou seja, que tenha lugar a entrega, a doação amorosa na qual a generosidade vence o que há de dor e de sacrifício pessoal?

2 – Como realizar isso juntos e juntas no nosso compromisso pastoral e dar essa fisionomia à nossa Igreja local?

3 – Como ligar essa revelação do Cristo glorificado pelo Pai na cruz com a Campanha da Fraternidade desse ano sobre Ecologia Integral?

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