JESUS E SEU MOVIMENTO ENTRAM EM JERUSALÉM (Lc 19,28-40): “CALA BOCA, NÃO!” LUTA POR DIREITOS, SIM! – Por frei Gilvander Moreira[1]
Nas missas e nas celebrações da Palavra, no Domingo de Ramos, no início da Semana Santa, ouvimos o Evangelho de Lucas (Lc 19,28-40) sobre a entrada de Jesus com suas discípulas e discípulos, em Jerusalém, com ramos nas mãos. “Enquanto caminhavam, Jesus e seus discípulos e discípulas sobem a Jerusalém” (Lc 19,28.36).
Qual mensagem espiritual, ética e libertadora este evangelho nos propõe?
Após ter cumprido um tempo de inserção no meio do povo empobrecido, irradiando ternura, compaixão, misericórdia, solidariedade com quem estava discriminado, pisado e marginalizado, Jesus descobriu que não bastava só ser solidário, mas precisava marchar para Jerusalém e lá enfrentar os poderosos da religião, da política e da economia.
Enfrentou várias ameaças de morte e mesmo no meio delas, anunciou ressurreição. Muitos discípulos ficaram com medo e tentaram convencer Jesus de que era arriscado ir a Jerusalém, inclusive o apóstolo Pedro (Mc 8,27-33). No entanto, em profunda sintonia com o Pai, mistério de infinito amor, Jesus não arredou o pé da missão que deveria incluir também o combate às injustiças. Diante de ameaças de morte, de repreensões e de “cala boca!” de alguns fariseus (Lc 19,39) a mando de autoridades opressoras, Jesus e seu movimento popular religioso enfrentam os riscos e mantêm de pé a profecia, pois sabem que “se a profecia cair, as pedras gritarão” (Lc 19,40).
Por que e para que celebrar com ramos? Para reviver a experiência da caminhada pelo deserto em busca da terra prometida e resgatar a mística da Aliança com Javé, Deus solidário e libertador.
Para as primeiras comunidades cristãs, celebrar esse domingo com uma ‘procissão de ramos’, era o jeito de atualizar o sentido da Festa das Tendas – uma das onze festas judaicas. Anualmente, acontecia no outono, depois da colheita (Dt 16,13; Lv 23,34) para recordar o tempo em que os povos oprimidos e injustiçados da Bíblia marchavam pelo deserto, acampados em tendas, em busca da terra prometida (Lv 23,43). Por isso, durante uma semana, eles recolhiam ramos e construíam tendas para morar provisoriamente (Ne 8,14-17).
Quase dois mil anos atrás, na Palestina colonizada pelo império romano escravocrata, após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), da periferia para a capital, Jesus e seu movimento popular e religioso estão às portas de Jerusalém. Em ação comunitária, dois discípulos de Jesus recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de transporte dos pobres (os ricos transportavam mercadorias usando camelos), mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma clandestina, sendo “simples como as pombas e espertos como as serpentes” (Mt 10,16).
O texto repete o alerta de Jesus: “Se alguém lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor precisa dele”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem a verdade e viesse a público o que estavam planejando, a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão do governador da Judeia, Pilatos, nomeado pelo imperador de Roma.
Com seus “próprios mantos” prepararam o jumentinho para Jesus montar (Lc 19,35). Foi com o pouco de cada um/a que a entrada de Jesus em Jerusalém foi planejada e realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas, na sua maioria, camponeses. “Bendito o que vem como rei…” (Lc 19,38). Para o povo cansado e esfolado por quem estava no poder político, religioso e econômico, Jesus, pelo seu jeito de ser e de agir, se tornou uma esperança que transformaria as relações de poder na sociedade. No entanto, Jesus nunca quis ser rei e exercer poder. Ao contrário, como servo sofredor do Deus da vida, Jesus se doou para que o povo tivesse vida em abundância. Partilhar o poder e democratizá-lo ao máximo era o que o ensinamento e a práxis de Jesus pedia. O Evangelho de Mateus nos informa que as discípulas e os discípulos de Jesus festejavam gritando: “Hosana ao filho de Davi! Hosana no mais alto do céu!” (Mt 21,9).
A palavra hebraica ‘hosana’ nos soa como uma exclamação, como se fosse ‘Viva! Viva!’, mas conforme o Salmo 118,25 a mesma palavra ‘hosana’ significa “Javé, salva-nos!” Aqui há um trocadilho entre as palavras Javé, Josué e Jesus, que têm a mesma raiz etimológica ‘libertar/salvar’. Portanto, o sentido da aparente exclamação dos/as discípulos/as se dirigindo a Jesus significa “Salva-nos!”. Mais do que exclamação, é um pedido clamor dos discípulos e das discípulas dirigido ao mestre Jesus. Nas entrelinhas, significa que não é possível autossalvação e é uma denúncia contundente dos falsos ‘salvadores da pátria’: governadores, imperador, sumo-sacerdote, saduceus, doutores da lei, fariseus…
O povo via em Jesus, pobre, desarmado e servo – anunciado pelo profeta Isaías (Is 42,1; 49,3; 52,13) – outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum e pela doação de vida. Quem aplaude Jesus entrando em Jerusalém é o grupo organizado de peregrinos e peregrinas que segue Jesus desde a Galileia. O povão que cinco dias após, na sexta-feira da paixão, gritará “crucifica-o!” não é o mesmo povo do “Domingo de Ramos”. Trata-se da massa alienada que sobrevivia em torno do grande negócio que era o templo em Jerusalém. Esses agem insuflados por fariseus que os estimulavam a gritar dirigindo-se a Jesus “crucifica-o!”. Logo, a partir desses dois relatos dos evangelhos – a entrada de Jesus em Jerusalém e a crucificação de Jesus – não se pode concluir que o povo é como folha seca ao vento, massa de manobra nas mãos de quem defende privilégios e busca poder e status.
Ao ouvir o anúncio dos discípulos e das discípulas – um novo jeito de exercício do poder –, certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar aquele evangelho: ótima notícia para os pobres, mas péssima para os opressores. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos – ‘cidadãos de bem’, de bens, melhor dizendo – e os mais religiosos. “Manda…!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam.
Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça verdadeira, o que incomoda um status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetiza: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), assim: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão… O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir…!”, música de Cecília Vaz.
Portanto, a mística bíblica da celebração de Domingo de Ramos é: não calem os profetas e as profetisas, porque, senão, as pedras gritarão! Como acontece desde 1962, a CNBB[2] nos convida a atualizar a Quaresma com a Campanha da Fraternidade. Neste ano, somos convidados a refletir e agir em torno do tema “Fraternidade e Ecologia” e o lema “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Surdos e obcecados pelo ídolo capital, poderosos do mundo não ouvem os cientistas e os Povos que estão falando há muito tempo que a devastação da natureza está levando ao aquecimento global e com isso as mudanças climáticas estão acontecendo de forma cada vez mais dramática, gerando eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. Feliz quem ouve os verdadeiros profetas e as verdadeiras profetisas e acenam os ramos da esperança a partir de ações concretas em defesa da vida, que possibilitam fazer com Jesus de Nazaré a marcha rumo ao Domingo da Ressurreição.
Enquanto há os alienados e fundamentalistas que insistem em ver no Domingo de Ramos a entrada de Jesus, cheio de poder e glória, em Jerusalém, este evangelho de Lc 19,28-40 nos inspira e nos motiva a fazer como o povo pobre, oprimido, os preferidos de Jesus: viver esse Domingo de Ramos como o dia da mobilização da esperança, aclamando Jesus: “Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana! Liberta-nos! Salva-nos!”
Nos últimos 525 anos, no Brasil, todos os direitos humanos, sociais e ambientais foram conquistados com muita luta popular, custando suor e sangue/martírio, e não baixando a cabeça para a elite e seus vassalos que sempre tentam impor o “Cale-se!” com repreensão e repressão, mas seguiremos lutando pelo que justo e cantando com Chico Buarque e Milton Nascimento: “Pai, afaste de mim este cálice (cale-se!)”. Isso o evangelho de Lc 19,28-40 pede de nós.
07/04/2025.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, de alguma forma ATUALIZAM o assunto tratado, acima.
1 – Homilia de Domingo de Ramos-06/4/2020, por frei Gilvander: Jesus e seu Movimento entram em Jerusalém
2 – Domingo de Ramos em Santa Luzia/MG: MLB, a luta pela terra e pela moradia continua. Frei Gilvander
3 – FREI GILVANDER: “EFA BONTEMPO, DE ITAOBIM/MG, FAZ HISTÓRIA E GERA CONHECIMENTO LIBERTADOR”. Vídeo 8
4 – VISITA DO TJMG NO MORADA DA SERRA, IBIRITÉ/MG: AMEAÇA DE DESPEJO PELA MRS, DA VALE/S.A. 200 FAMÍLIAS
5 – ESTARRECEDOR: NO CENTRO DE BH/MG CASA DE HORRORES DA DITADURA MILITAR. ATO PÚBLICO OCUPAÇÃO MEMORIAL
[1] Doutor em Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas; Bacharel e Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre da Ordem dos Carmelitas; e Agente de Pastoral e Assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.youtube.com/@freigilvander – No instagram: @gilvanderluismoreira
[2] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.