Lc 3,1-6: 2º Domingo do Advento – Retomar a caminhada nos desertos do mundo – por Marcelo Barros

Lc 3,1-6: 2º Domingo do Advento – Retomar a caminhada nos desertos do mundo – por Marcelo Barros

Marcelo Barros, monge e biblista

Neste 2º domingo do Advento (do ano C) o evangelho é Lucas 3,1-6 e introduz a missão de João Batista como profeta no deserto. A liturgia nos ajuda a preparar para vivenciarmos o Natal verdadeiro, não como se fosse apenas a festa do Menino Jesus e sim como celebração da vinda do reino de Deus, isto é, da plena manifestação do seu amor que quer novas relações humanas e sociais. O evangelho mostra que essa vinda se atualiza, através da palavra profética, no meio dos acontecimentos da história. Esse evangelho afirma que a palavra de Deus foi dirigida a João Batista no deserto. Em latim, o texto chega a dizer que, no deserto, a Palavra se fez em João, assim como, no dia do Natal, vamos ouvir o quarto evangelho afirmar: “A Palavra se fez carne e é o Filho único do Pai”.

O evangelho de hoje nos diz que a Palavra se realiza em João Batista. O protagonista não é o profeta. A protagonista é a Palavra que ele recebe e encarna e esse processo de receber e incorporar a Palavra de Deus se realiza no deserto. Não é no centro do império, nem em meio à agitação urbana. É no deserto, que a Palavra se faz vida na profecia de João. No mundo bíblico, o deserto era espaço negativo. Era considerado o lugar dos demônios. Mas, Deus transforma o lugar da solidão em etapa de travessia para a libertação. Na Bíblia, o deserto significa a clandestinidade do caminho para a liberdade da terra, acima de tudo é a caminhada de luta e de intimidade com Deus. É o tempo do namoro da comunidade com o seu Amado.  É no meio da luta de libertação que o povo oprimido aprende a viver a intimidade com o Amor Divino.

No evangelho de Lucas, a missão de João Batista é apresentada como precursor do reinado divino e não apenas da vinda de Jesus, já que o evangelho mostra a missão do profeta João quando Jesus já é adulto e não antes dele nascer. Lucas conta que Jesus é batizado e começa a sua missão quando João é preso e vai ser morto. Assim, o Batista em sua missão e sua palavra precede sempre a vinda do reino de Deus. Essa é a sua atualidade. O evangelho situa esse acontecimento de João no contexto histórico e social da época. No 15º ano do império de Tibério Cesar… O anúncio do reino se dá em meio à realidade social e política opressora. Não se pode separar o evangelho da realidade do mundo. Assim, o caminho do evangelho será sempre testemunho dessa Palavra. Uma palavra grávida do reino de Deus. O que significa isso hoje?

Há quem não compreenda porque, ou como o padre Júlio Lancelotti e as irmãs que convivem e trabalham com as pessoas em situação de rua podem “gostar” desse trabalho. Ali, em meio a tanta desumanidade, encontram motivação para a vida. Do mesmo modo, companheiros e companheiras que atuam nos diversos níveis da Política. Pensemos em vereadores/as, deputados/as e senadores/as, que, por se comprometerem com as camadas mais oprimidas da população e por defenderem direitos sociais e ambientais, suportam acusações injustas, pressões de todo o tipo e se mantêm fieis na defesa da justiça ecossocial.

Do mesmo modo, podemos lembrar não poucos irmãos e irmãs que procuram colaborar com as diversas instâncias das pastorais sociais da Igreja (Católica ou evangélicas) e, muitas vezes, sabem que falam no deserto. Não são ouvidos e valorizados.  A realidade atual parece tão pesada, como um túnel no qual não se vê a luz da saída e preciso encontrar luzes dentro do próprio túnel escuro das injustiças. Como se não houvesse caminho para frente. No evangelho de hoje, o profeta diz: Abram no deserto um caminho…

Conforme os Atos dos Apóstolos, caminho ou caminhada foi o primeiro nome do movimento de Jesus. No Brasil dos anos 1970, caminhada foi o nome que se deu à parte da Igreja inserida nos processos de libertação do povo. Até hoje, é comum se falar em “mártires da caminhada”, “artistas da caminhada”. Esse evangelho de hoje deixa claro que se trata de caminho no deserto e para a terra ou a realidade da libertação.

Praticamente todos os anos, os evangelhos do 2º Domingo do Advento nos convidam a olhar a figura de João Batista e a pensar esse tempo do Advento como “tempo para intensificar a espera e vigilância”. Fazemos isso retomando a inserção nas lutas justas do povo oprimido. Preparar a vinda do reino divino é abrir caminho nos desertos do mundo e das Igrejas.

Não se trata de algo poético ou apenas metafórico. Os desertos da caminhada podem não ser os acidentes geográficos, marcados pela areia e aridez. São situações de carência, pobreza e dificuldades de todo tipo que enfrentamos na caminhada de um mundo que anda na direção contrária à orientação do reinado divino. Para o modo da Igreja ser, o papa Francisco propõe sinodalidade – caminhada conjunta -, mas  esse processo é impossível, se se mantém o sistema hierárquico, baseado na sacralidade de um poder divinizado.   

No evangelho de Lucas, a figura profética de João Batista retoma a promessa de um discípulo do profeta Isaías no tempo do cativeiro da Babilônia (seis séculos antes de Cristo). Anuncia que, no deserto, onde não há estradas, Deus vai abrir um caminho de libertação para o povo. Aplainará montanhas e abismos e o conduzirá à terra da libertação. Essa é a profecia. Ela trouxe esperança para o povo antigo e ânimo para as primeiras comunidades cristãs, no tempo em que esse evangelho foi redigido. Em nossos dias, pode ser mensagem de luz e de força para nós.

Hoje, a profecia consiste em acreditar e testemunhar que com Deus na companhia superaremos montanhas intransponíveis. Vai fazer com que se abram caminhos, onde até aqui quase só há obstáculos. Esse texto do evangelho conclui que toda criatura (não somente os humanos, mas toda a natureza junto com a humanidade) verá a salvação divina.

Essa é a promessa divina e se dará gratuitamente, mas não de forma mágica. É ação do Espírito, mas precisa do nosso testemunho e trabalho. Como João Batista, precisamos, hoje, mergulhar (em grego, batizar) esse mundo na ação libertadora. Para isso, precisamos assumir os desertos da luta e da marginalidade em relação à cultura dominante.

No mundo esportivo, atletas se preparam para as competições, com um tempo de concentração. Artistas chegam antes dos espetáculos para o necessário “esquentamento”. Educadores/as marcam fóruns e jornadas especiais. Diversos caminhos de espiritualidade valorizam tempos e espaços de retiro. No Candomblé Iorubá, as pessoas iniciadas (orô), ficam confinadas durante semanas ou mesmo um mês, para ter completada a sua consagração. Nas culturas indígenas, rituais de iniciação sempre pedem isolamento e cuidados especiais. Do mesmo modo, podemos afirmar que o compromisso da fé e da espiritualidade libertadora também pedem aquilo que, na Bíblia é representado pelo chamado ao deserto. Várias religiões têm seu início marcado geográfica e espiritualmente pelo deserto como caminho para a terra prometida.

O povo de Deus no deserto andava
               Mas à sua frente Alguém caminhava
               O povo de Deus era rico de nada
               Só tinha a esperança e o pó da estrada

Também sou Teu povo, Senhor
                E estou nessa estrada
                Somente a Tua graça me basta e mais nada!

O povo de Deus ao longe avistou
                A terra querida que o amor preparou
                 O povo de Deus corria e cantava
                  E nos seus louvores, Teu poder proclamava

Também sou Teu povo, Senhor
                E estou nessa estrada
                 Cada dia mais perto da terra esperada! (Nelly de Silva Barros).

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