A escolha das Formas e Gêneros Literários na Bíblia. Por frei Gilvander

A escolha das Formas e Gêneros Literários na Bíblia. Por frei Gilvander Moreira[1]

          Compreender as formas e os gêneros literários é imprescindível para uma boa, justa e sensata interpretação dos textos bíblicos, atualmente muito mal interpretados por pessoas que se dizem religiosas, mas seguem ‘orientações’ políticas fascistas e de extrema-direita, pois torturam versículos bíblicos para extraírem deles conclusões que lhes interessam – justificar seus privilégios -, mas que são o oposto do que os autores bíblicos queriam dizer. Projetam nos textos suas pré-compreensões recheadas de preconceitos, homofobia, machismo, aporofobia (aversão aos pobres) e impregnadas pela ideologia dominante capitalista.

Na Bíblia, gêneros literários são os diversos modos de apresentar o pensamento por meio de muitas formas literárias. Cada forma literária é caracterizada pela escolha do vocabulário, pelo estilo, a linguagem direta ou figurada etc. O que determina, em parte, a escolha da forma é o objetivo que o/a autor/a se propõe e o público a que se destina sua obra. O/a autor/a escolhe entre os gêneros literários em uso no seu tempo, aquele que melhor se adéqua ao conteúdo e ao público destinatário. Por exemplo, se o texto se dirige a um grupo de poetas e poetisas, é melhor que se escreva em poesia. Se o escrito for para um público que gosta de cordel, é aconselhável escrever em cordel, da mesma forma se deseja falar a dois jovens enamorados o gênero literário romance será mais apropriado.

Gênero literário é uma modalidade expressiva com características convencionais, estáveis e facilmente reconhecíveis em um determinado ambiente cultural, mas, às vezes, estranho e incompreensível para outro ambiente, e época diferente. Em uma região fria, a expressão “conquistar um lugar ao sol“, literalmente traz uma sensação agradável, embora tenha aqui um sentido conotativo, da mesma forma, a expressão: “conquistar um lugar à sombra“, para uma região de clima quente faz sentido.

Numa compreensão técnica, gênero literário “é a denominação comum de um grupo de obras literárias em uma classificação tipológica[2]“; em outras palavras, existe um ‘tipo’, isto é, uma modalidade expressiva específica, que qualifica muitas produções literárias, com características próprias: o hino, a anedota, a fábula, o elogio fúnebre, a historiografia, o romance, uma obra dramática, lírica…

O biblista Horácio Simian-Yofre define gênero literário como “uma abstração linguística que permite associar na mesma categoria os textos que possuem uma forma literária semelhante“; enquanto a ‘forma’ é o que define um determinado texto, o ‘gênero’ é o que vincula o texto a uma série de textos. Ao fazer exegese de um texto bíblico, Simian-Yofre dá muita importância às expressões fixas que, frequentemente aparecem numa certa ordem, viabilizando descobrir com segurança um determinado gênero literário.

Há motivos formais do gênero que precisam ser identificados no processo de interpretação dos textos bíblicos. O vocabulário é típico e, sobretudo, expressões estereotipadas, frases feitas, fórmulas fixas, tais como: ‘aleluia’, ‘assim diz o Senhor’, ‘ai de quem…’, ‘eu estou contigo’ etc. No livro do profeta Jeremias, aparecem algumas fórmulas típicas da literatura profética como a ‘fórmula do evento da palavra’: “A palavra de Senhor me foi dirigida” (Jr 1,4-8); a fórmula de consolação e a fórmula de assistência e companhia, no v. 8: “não temas… eu estou contigo“; a fórmula conclusiva do oráculo, no v. 8: “oráculo do Senhor“.

Nos dias atuais, na nossa sociedade, se nos encontramos diante de expressões, tais como: ‘falecimento’, ‘passamento’, ‘inesquecível’, ‘profundamente consternados’, ou ‘cumprem o doloroso dever’, só pode tratar-se de um anúncio fúnebre. E deve-se imaginar o contexto vital de sofrimento e dor pela morte de alguém, que se esconde por trás do texto.

Na literatura extra bíblica, encontramos expressões fixas que indicam o gênero literário do texto, tais como: ‘era uma vez…’; ‘senhores e senhoras, boa tarde’; ‘tenho dito. Muito obrigado’. Este aspecto vale principalmente para os gêneros menores. Nem sempre foi dada a devida importância às ‘fórmulas fixas’, no entanto, é um dos critérios decisivos para a determinação do gênero literário, embora não seja absoluto.

De fato é possível usar um gênero literário sem recorrer a frases feitas, como narrar uma fábula sem iniciar com a expressão “era uma vez” ou concluí-la “e viveram felizes e contentes“. Por outro lado, podem-se usar as fórmulas fixas, características de um gênero literário, deslocando para um gênero diferente como, por exemplo, nas paródias, nos discursos irônicos, na sátira. Além de que muitas ‘fórmulas’ são usadas em contextos e gêneros literários diferentes, como por exemplo, a chamada ‘fórmula do mensageiro’, o apelo para escutar[3].

          O relato de vocação em Jeremias (Jr 1,4-10) traz um “motivo” característico que é o de revelar a ação de Deus “desde o seio materno”; a entrega de uma missão antes do nascimento, o mesmo motivo se encontra também no relato de Sansão (Jz 13) e no Deutero-Isaías (Is 49,1s), como também em textos extrabíblicos dos reis da Babilônia e do Egito. Os textos carregam a mesma estrutura literária,a mesma relação entre os elementos que compõem uma produção literária, o que não significa necessariamente identidade de ‘formulário’, ou um esquema rígido que comanda o desenrolar dos componentes de um texto.

Um relato apresenta frequentemente um andamento narrativo previsível com informações, tais como: o que é relatado? Onde aconteceu? Quando? Uma Carta é estruturada quase sempre com alguns elementos indispensáveis: saudações, informações, pedidos, saudações finais. Um ofício também tem sua estrutura previsível, com número, data, destinatário, assunto, pedido, justificativa, agradecimento e assinatura. Os motivos formais são importantes para determinar o gênero literário de uma perícope ou obra.

Referências

F. FLOR SERRANO – L. ALONSO SCHOKEL, Diccionario terminológico de la ciencia bíblica, Madrid, 1979.

S. BRETÓN. Vocación y misión: formulario profético, AnBib 111, Roma, 1987.

03/06/2024

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política

2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética

3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5

4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)

5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022

6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022

7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22

8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino

9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023

10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste

11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022

12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] F. FLOR SERRANO – L. ALONSO SCHOKEL, Diccionario terminológico de la ciencia bíblica, Madrid, 1979, p. 38.

[3] S. BRETÓN. Vocación y misión: formulario profético, AnBib 111, Roma 1987.

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