“ATIRE A PRIMEIRA PEDRA AI AI AI…” – ANOTAÇÕES SOBRE JOÃO 8, 1 a 11  – Por Nancy Cardoso

“ATIRE A PRIMEIRA PEDRA AI AI AI…” – ANOTAÇÕES SOBRE JOÃO 8, 1 a 11  – Por Nancy Cardoso

Nancy Cardoso, biblista e teóloga feminista

Quero prestar atenção nos corpos: Jesus sobe o Monte das Oliveiras e desce no dia seguinte; Jesus senta para conversar com o povo; o povo se ajunta. Corpos! De repente corpos de homem arrastando uma mulher (eles: viris, violentos, animados; ela: violentada, descabelada, semivestida, assustada). Os corpos ali reunidos formam um corpo espectador e a mulher é colocada no centro. Eles tremem de prazer. Ela treme de medo. A conversa interrompida, todos prestam atenção na cena: o corpo dela e os olhos dos homens. Eles estufam o peito e desafiam a Jesus. Jesus se abaixa e rabisca no chão. Eles insistem mais ainda, estufando o peito e aumentando a voz. Ela treme. Jesus se levanta e diz. Silêncio. Os corpos dos homens murcham. Se afastam. A mulher suspira quase aliviada. Que texto!

Mas o que este texto está fazendo no Evangelho de João? A narrativa da Mulher Adúltera está inserida dentro da narrativa da Festa das Tendas no Evangelho de João. De tantas maneiras ela está fora do lugar! Uma leitura cuidadosa vai mostrar que ela é só uma isca, uma desculpa, uma armadilha na briga entre os homens. Ela vai ser usada para causar escândalo. Flagrada “no ato, desaparece da cena com quem ela estava. Não importa. Ela não importa: é só uma desculpa para testar posições teológicas e políticas. Muita gente que estuda o Evangelho de João reconhece que esta narrativa não pertence a João. Outros Evangelhos não canônicos e mais antigos apresentam o mesmo relato com poucas diferenças. Diferentes cópias do Evangelho não apresentam esta narrativa. Algumas traduções a colocam em Lucas. O estilo não é joanino naquilo que se refere ao vocabulário e à gramática. Então o que esta mulher está fazendo aqui? Santo Agostinho comentando o texto diz que o texto pode induzir as mulheres ao adultério… porque serão perdoadas. (para saber mais: A mulher Adúltera no Evangelho de João (João 7, 53 – 8, 1, Gilvan Leite de Araújo > https://www.researchgate.net/publication/330895168_A_Mulher_Adultera_no_Evangelho_de_Joao _Jo_753-811 ).

Nos versículos três a seis – de João 8 – os escribas e fariseus expõem uma situação concreta: uma mulher flagrada em adultério. Imediatamente já expressam o que diz a Lei sobre esta questão: ela é culpada e deve ser apedrejada. Mas… sobre o crime de adultério, no qual se baseiam os escribas e fariseus, a Lei, na realidade afirma que o crime de adultério deve ser punido com morte, sem, no entanto, afirmar qual o tipo de pena a ser aplicada, conforme prescreve os livros de Levítico e Deuteronômio (cf. Lv 20,10 e Dt 22,22-24).

Chama a atenção na narrativa é a ausência do homem envolvido no crime, uma vez que duas pessoas foram flagradas, um homem e uma mulher casada. Nesse sentido, se deve indagar porque o homem em questão não está presente, mas, apenas a figura da mulher. Levítico, capítulo 20, versículo 10: “Se um homem cometer adultério com a mulher de outro homem, com a mulher de seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos com a morte”. É uma mulher sem nome, sem voz, sem identidade, a não ser pelo fato de ser designada como adúltera. Mas a real intenção dos escribas e dos fariseus, no versículo seis, se torna clara: pôr Jesus à prova. Querem “encostar Jesus na parede”, ou seja, colocá-lo numa situação difícil, expor suas contradições com a tradição e com o poder.

Se Jesus perdoar a mulher, irá contra a Lei, se aprovar a condenação irá contra a sua pregação e se colocaria em choque com as autoridades romanas. Este contexto é importante para entender o capítulo 8 do Evangelho João: já estão dadas as condições para a prisão de Jesus com o objetivo de interromper seu movimento e as comunidades… mas ainda falta organizar a denúncia que justificaria a condenação. Sobre isso se trata o capítulo 8. O texto é conhecido: Jesus inverte a situação dizendo “quem não tem pecado que atire a primeira pedra”. Logo a seguir o texto informa que os homens se retiraram um a um – começando pelos mais velhos! – acusados que foram pela consciência. Se ela foi pega em flagrante… onde está o homem?

Sem esta prova ficava claro que abusavam da precariedade de uma mulher para criar um caso que justificasse a prisão de Jesus. O diálogo de Jesus com a mulher é simples e didático: “onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? E pela 1ª vez no texto ela fala: ninguém, Senhor. E Jesus conclui: nem eu te condeno… vai e não peques mais (aqui um genérico, sem referência ao suposto adultério). Sempre no corpo delas!

No Antigo Testamento e Novo Testamento profetas e sacerdotes, legisladores e poetas vão tecer suas lutas e provocações no corpo de mulheres reais ou inventadas. O sistema legal do casamento patriarcal judaico interpretava o adultério como uma lesão ao direito do marido de possuir a sexualidade de sua esposa. Os escribas e fariseus que arrastaram a mulher diante de Jesus representavam a supremacia masculina sobre as mulheres. Eles eram representantes da hierarquia patriarcal (tanto a romana quanto a judaica).

A Palestina no tempo de Jesus vivia em situação de ocupação militar, de alienação política e econômica. As elites judaicas sobreviviam de acordos com os romanos; a maioria do povo era explorada no trabalho, na terra, no corpo. As mulheres sofriam uma dupla opressão: pelo império invasor e pelos poderes internos. Casadas muito jovens, viviam em situação de subordinação dentro e fora de casa. Infelizes. Mulheres que ousavam a liberdade tinham diante de si a prostituição, a loucura dos demônios, o vexame público e a escravidão.

Sem querer avaliar relações antigas por parâmetros novos, é importante destacar que Jesus se organizava e convivia com mulheres assim: prostitutas, loucas, possuídas. Casadas, largadas, fugidas. Novos modos de ser família. Comunidade. No Brasil por muito tempo “para as mulheres, bastava a mera suspeita de envolvimento com outro homem para que fossem severamente punidas pela sociedade e pelo Estado com duras penas. Por outro lado, para que o homem fosse considerado adúltero, era necessário comprovar uma relação extraconjugal habitual e mantida, isto é, que sustentasse a amante.

O homem que “tinha sua honra violada” pela suposta infidelidade da esposa e reagisse praticando o homicídio de sua então companheira, costumeiramente argumentava em juízo a “legítima defesa da honra”. Em 2023 o STF considerou inconstitucional os crimes de honra. Em 2024, foram 1450 feminicídios, a grande maioria por pessoa próxima e/ou familiar.

Diz-se à boca pequena: “os homens não sabem porque matam, mas as mulheres sabem porque são mortas”. Até quando? Vamos aprender com Jesus a rabiscar no chão e murchar o machismo que mata, violenta e silencia. Porque… Gente foi feita pra brilhar Não pra morrer de fome. Música “Gente”, de Caetano Veloso:

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