Carta da VII Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce ao Povo de Deus, em Naque, MG

Carta da VII Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce ao Povo de Deus, em Naque, MG

Naque, MG, 16 de junho de 2024

Fotos: Organização da VII Romaria das águas e da Terra da Bacia do Rio Doce

Nós, romeiras e romeiros, da 7ª Romaria das Águas e da Terra da bacia do Rio Doce, com o Tema: Bacia do Rio Doce, Nossa Casa Comum e com o Lema: Construindo novos céus e nova terra, com repactuação justa e participação popular (Is 65,1), vimos anunciar e denunciar:

Atentos aos sinais dos tempos, que clamam através das mudanças climáticas, impulsionados pela voz do sucessor de Pedro, nós como Igreja, temos vivido o apelo do Papa Francisco em abordar a dimensão socioambiental da fé e da evangelização e em estimular o enfrentamento em favor da Ecologia Integral, isto é, o cuidado com o meio ambiente, o ser humano e de nossa Casa Comum. A natureza vem, dia a dia e com mais intensidade, nos apresentando dolorosos sinais diante das agressões à vida e ao planeta.

Na homilia de início do seu ministério Petrino, o Papa Francisco fez um clamor: “quero pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidades em âmbito econômico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos “guardiões” da criação, do designío de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo!”.

No Evangelho da Criação, Deus que tudo criou por amor, deu ao ser humano a importante vocação de ser o guardião da criação e de compreender que “tudo está interligado”. Tal missão está a exigir de nós maior sensibilidade e preocupação com o meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade (LS, 91). Cresce a consciência de que o tema da criação precisa ser abordado em sua estreita relação com a pessoa de Jesus Cristo, porque “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois é n’Ele que foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, os seres visíveis e os invisíveis” (Cl 1, 15-16).

Solidários à situação de calamidade que vive, nesse momento, a população do Rio Grande do Sul, afirmamos que não se trata apenas de um evento da natureza. Ele é resultado do atual modelo extrativista e da monocultura que visa lucro e o consumismo desenfreado, agredindo a terra e todo o criado, trazendo, em todos os continentes, graves impactos como redução da biodiversidade, aumento do número de casos de desastres naturais e desertificação. É preciso, entre outras ações, rever, urgentemente, a legislação, principalmente o processo de licenciamento das novas explorações dos recursos naturais que ignoram o meio ambiente e a população que vive no território.

A crise climática ultrapassa uma abordagem meramente ecológica e envolve uma compreensão transversal, capaz de lançar luz sobre os desafios ambientais e proteger os direitos humanos fundamentais. Ela está a exigir o cultivo de uma espiritualidade que nos faça perceber que estamos todos interligados e que não se pode compreender e nem sustentar a vida humana sem as outras criaturas. De fato, “nós e todos os seres do universo, criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LD 67).

Em relação ao rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, atingindo toda a extensão da Bacia do Rio Doce, pautamos nossas lutas, em vista de sua regeneração socioambiental, pela constituição de um amplo debate, tendo os atingidos e atingidas como centro e protagonistas da reparação e das decisões a serem tomadas.

Denunciamos essa economia predatória, colocada a serviço do lucro e não da vida, que desrespeita a soberania popular, que vitima as populações locais, que ceifa vidas e que leva, à exaustão, os bens da natureza. Uma economia que se contrapõe ao Plano amoroso de Deus, destruindo matas e rios, escravizando a mão de obra humana e produzindo miséria, violência, injustiça e morte e não vida, dignidade e bem comum. Precisamos nos levantar e caminhar juntos, construindo novos céus e nova terra, em direção da sociedade do bem-viver e que, em bases cristãs, sinaliza a presença do Reino de Deus entre nós.

É preciso levar em consideração que os danos e as consequências do rompimento da barragem se agravam com o tempo. Os únicos com o poder, realmente, de constatar e mensurar essa realidade são os atingidos e atingidas. Sua voz precisa ser ouvida, com sua participação ativa, organizada e qualificada em todas as instâncias de negociações.

Em 2021, iniciou-se a proposta de um novo pacto, denominado “repactuação”, em substituição aos acordos firmados e fracassados. Seu objetivo era o de reparar, compensar e indenizar os atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão/Mariana, acontecido em novembro de 2015.

Para esse momento, clamamos pelo apoio das autoridades constituídas e da sociedade brasileira e internacional para não permitirem que este acordo seja assinado, sem que haja acesso, com transparência, participação e diálogo amplo, a todas as informações e às suas propostas. Não podemos admitir que as empresas, responsáveis por esse crime socioambiental, continuem impondo sigilo às negociações e definindo quem participa do processo.

É tempo de avançar! No retorno das negociações da repactuação em 2024, governos e instituições de justiça devem dar voz e vez aos atingidos e atingidas, pressionando as empresas, responsáveis por esse crime socioambiental, maior de nossa história, a realizarem uma reparação integral, ambiental e social, que seja exemplar para o mundo e não o contrário.

Reafirmamos, nessa VII Romaria das Águas e da Terra, o apoio aos atingidos e atingidas da Bacia do Rio Doce em suas principais pautas, em relação à repactuação. São elas:

1. Rio Doce Sem Fome: trata-se de um programa de transferência de renda, em substituição ao AFE – Auxílio Financeiro Emergencial, onde se objetiva que sejam reservados recursos para promoção e reestruturação da renda, visando o combate à fome e à pobreza, a ser gerido de forma independente das mineradoras e com plena participação dos atingidos e atingidas, através de quatro eixos: pagamentos mensais em conta (reestruturação da renda), produção e distribuição de alimentos saudáveis com reativação econômica local, formação e qualificação profissional e mulheres como um eixo transversal.

2. Fundo Popular: destinado a projetos coletivos para as comunidades atingidas que têm como objetivo a reparação e compensação coletiva, visando promover a auto sustentabilidade e a superação das desigualdades econômicas e sociais, a geração de renda e o bem-estar e a retomada dos modos de vida, promovendo a integração e a união. Os recursos deste fundo deverão ser geridos pelos próprios atingidos e atingidas, devendo se orientar pelo incentivo às novas práticas produtivas e modelos sustentáveis de agroecologia, economia solidária e comercialização em redes, através do fortalecimento das cadeias produtivas, cultura, lazer, turismo, infraestrutura, entre outros.

3. Fundo Social: que no âmbito da indenização dos Estados seja criado um fundo social para aplicação em políticas públicas nas áreas sociais de maior relevância, definidas com participação popular e com preferencial destinação dos recursos às regiões atingidas e as mais empobrecidas. A exemplo de um programa de apoio aos atingidos e atingidas pelas fortes enchentes.

4. Saúde: criação de um programa na área da saúde que garanta o diagnóstico, monitoramento, prevenção e atendimento da população atingida pelos diversos danos à saúde, física e psíquica.

5. Indenização individual justa: que sejam anulados os termos de quitação impostos pelo programa NOVEL e criado um programa de indenização individual que garanta a reparação integral dos danos, através da construção de matriz de danos a ser feita pelas assessorias técnicas independentes. E ainda, que os grupos e comunidades que ainda não foram indenizados, em nenhum processo indenizatório, sejam reconhecidos e indenizados.

6. Retirada dos rejeitos do Rio Doce: que sejam retirados os rejeitos do rio, favorecendo a sua recuperação, de forma limpa, com o Rio Doce vivo, em um curto espaço de tempo, sendo devolvido à população que depende de sua vitalidade para sobrevivência.

Com a especial proteção de Santo Antônio, o bom Deus nos abençoe e nos guarde, a partir de nossa Bacia do Rio Doce, no compromisso com a ecologia integral e em favor de nossa Casa Comum e de todos que nela vivem.

Romeiras e romeiros da VII Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce.

Naque, MG, 16 de junho de 2024.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado.