Como responder aos sofrimentos de Deus (Mt 25,31-46) – Festa de Cristo Rei e Servidor. Por Marcelo Barros

Como responder aos sofrimentos de Deus (Mt 25,31-46) – Festa de Cristo Rei e Servidor. Por Marcelo Barros

 Neste último domingo do ano litúrgico, o XXXIV, dia 26/11/2023, que a Igreja Católica continua chamando de Festa de Cristo Rei, o evangelho deste ano é Mateus 25,31 a 46, a parábola do julgamento final. De fato, a Reforma Litúrgica de 1969 transferiu essa festa do final de outubro para o último domingo do ano litúrgico. Assim, deu a essa celebração o sentido de apontar a esperança que temos no reino de Deus que virá.  É verdade que, até hoje, grupos católicos tradicionalistas cantam e propagam o antigo hino ao Cristo Rei que tem como refrão:

Jesus Rei Deus verdadeiro

O teu Reino venha a nós

Obedeça o mundo inteiro

Ao poder de tua voz

Todo o orbe homenagens Lhe renda

Aos seus pés traga o mundo cristão

De almas livres a livre oferenda

Corações para o seu coração!

Nesses versos, o reino do Cristo é identificado com o poder da hierarquia da Igreja-Cristandade, isso que o hino chama “o mundo cristão”, que convivia muito bem com o domínio do homem sobre a mulher, o racismo estrutural, o extermínio dos povos indígenas, a escravidão das populações negras e tantas outras injustiças sociais.

Infelizmente, mesmo se o mundo de hoje é decididamente mais laical e independente de religião, ainda existe em muitos setores cristãos, das mais diferentes Igrejas, o desejo de restaurar essa religião civil que tem muito de costumes religiosos e pouco do evangelho de Jesus. É nesse espírito que compreendemos a preocupação de Dom Hélder Câmara, quando, há mais de 55 anos, escrevia: “Jesus me compreende quando digo que não gosto da festa de hoje, nem acho que ele queria ser chamado de rei”  (53ª circular – 22/10/1964)[1]

A respeito da parábola lida no evangelho de hoje, dois exegetas belgas sustentam que essa parábola, do modo como está escrita, foi construída pela comunidade de Mateus. Afirmam: “Jesus nunca chamaria a si mesmo de rei nem se atribuiria o papel de juiz, que ele sempre pensou ser reservado ao Pai[2]. No entanto, é possível que o núcleo da parábola venha de Jesus e esse núcleo é a identificação de Jesus com as pessoas empobrecidas e excluídas do mundo. 

Toda a espiritualidade rabínica insistia na imitação de Deus. O livro do Talmud ensina que devemos imitar Deus. E ensina que nós imitamos a Deus, quando vestimos os nus, assim como Deus vestiu Adão e Eva, quando os nossos primeiros antepassados se viram nus no paraíso. O Talmud ensina que devemos visitar as pessoas doentes, como Deus visitou Abraão, depois que ele foi circuncidado. Do mesmo modo, assim como Deus confortou e abençoou Isaac, depois que esse perdeu o pai, temos nós também de confortar os enlutados. E devemos enterrar as pessoas falecidas, assim como Deus enterrou Moisés no monte Nebo (b. Sotah, 14ª)[3].

Nessa parábola sobre o julgamento final, Jesus assume esse modo de falar de Deus e nos revela duas coisas novas: 

1º – Se queremos encontrar e nos unir a esse Deus da Bíblia, a quem Jesus chama de Paizinho, o jeito é reproduzir o seu modo de ser, no caminho da misericórdia e da solidariedade. 

2º – Os sofrimentos do povo explorado e empobrecido são os sofrimentos do próprio Deus. Para Jesus, não há outro caminho de espiritualidade a não ser descobrir nos sofrimentos das pessoas empobrecidas os sofrimentos do próprio Deus.

Diante disso, então, é preciso sempre rever a nossa vida e o nosso jeito de ser, para ver o quanto estamos sensíveis e atentos a isso: o encontro com Deus não está, em primeiro lugar, no templo e no culto e sim na solidariedade amorosa com as pessoas e comunidades empobrecidas.

Na história, muitas vezes, cristãos e cristãs compreenderam essa palavra de Jesus no varejo da vida, isso é, como se ele tivesse mandado dar esmolas na porta de casa, escolher um dia da semana e visitar alguém doente no hospital e assim por diante: um Cristianismo dos atos soltos de caridade individual. Mas, essa não foi a compreensão de Jesus e da Bíblia, já que, na antiga cultura judaica, como em toda cultura originária, a dimensão comunitária sempre é a primeira e as ações individuais se situam dentro da ação coletiva.  

Na Bíblia, a promessa do reino de Deus surgiu no tempo do cativeiro e se desenvolveu como forma de restituir ao povo hebreu, como povo privado da sua liberdade e da sua cidadania a esperança de recuperar a sua liberdade coletiva e a justiça libertadora, como manifestação do amor divino.

Na Bíblia, os salmos de súplica dos pobres sempre juntam o pedido de socorro individual (tem piedade de mim) com a salvação comunitária. O eu acaba sempre sendo o eu coletivo do povo de Deus. Os salmos comumente chamados de “salmos do reino” mostram que a manifestação de que Deus reina não é nenhum ato religioso. Não há nenhuma coroação. Eles descrevem que o reinado divino se expressa em novo equilíbrio e comunhão com a natureza que é aliada da humanidade. O reinado divino traz justiça libertadora e inversão das situações sociais, de modo que “Deus faz justiça às pessoas oprimidas e liberta quem é cativo. Dá pão a quem tem fome e levanta o desvalido. Reconduz migrantes à sua terra e as pessoas honradas, orienta sempre” (Sl 145). 

 Jesus revelou Deus no rosto das pessoas mais pobres. O evangelho mostra que Jesus assumiu e viveu isso. O reino de Deus se manifesta quando todas as pessoas são consideradas como cidadãos e cidadãs de pleno direito. A carta de cidadania do reino de Deus garante o direito das categorias mais vulneráveis da humanidade e também o cuidado com todas as criaturas vivas e com a mãe-Terra.

No Brasil, por causa do 20 de novembro, dia do martírio de Zumbi dos Palmares, cada vez mais, os movimentos sociais têm transformado novembro em um mês da consciência negra. É importante que a luta contra o racismo e a defesa de um Brasil multiétnico e pluricultural seja expressão de fé e do nosso testemunho do reinado divino. O evangelho de hoje pede que nos identifiquemos com o Cristo, pobre, nu, doente e prisioneiro nas estruturas perversas da sociedade em que vivemos. 


[1] – CAMARA, Dom Helder. Circulares Conciliares, Volume I – Tomo II, Recife, Ed. CEPE, 2009, p. 205.

[2] – Cf. MAERTENS, Thierry e FRISQUE, Jean, Guia da Assembleia Cristã 3, Vozes, 1970, p.47.

[3] – Cf. VERMES, Geza, O autêntico evangelho de Jesus. Ed. Record, 2006, p. 181

Peneirando o sentido do Natal de Jesus Cristo – Por frei Gilvander (Vídeo abaixo)

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