Como se formou e qual a intenção dos textos bíblicos? Por frei Gilvander Moreira[1]
Ciente dos malefícios que péssimas interpretações de textos bíblicos tem causado aos povos ao longo da história da humanidade nos últimos 2 mil anos – cruzadas, guerras consideradas santas e justas, escravidão “justificada”, inquisição, padroado… – e atualmente a extrema direita, os fascistas, se escorando em interpretoses bíblicas para justificar homofobia, machismo, patriarcalismo, capitalismo neocolonial, devastação socioambiental, militarismo, discriminações, preconceitos…, importante se faz adquirirmos chaves de leitura sensata e libertadora da Bíblia, assim como de textos sagrados de outras religiões.
Uma questão fundamental para uma boa compreensão de um texto bíblico em si mesmo é identificar a INTENÇÃO do texto. Qual o propósito do/a autor/a? Qual a mensagem que o texto quer transmitir? A intenção do texto é farol para uma boa interpretação. Sem captar a intenção do texto, andamos no escuro com farol apagado, o que pode levar a falsas interpretações.
Quando alguém pergunta: “Tudo bem?” e o interlocutor responde: “tudo bem” não está querendo dizer necessariamente que com ele está tudo bem. A intenção deste diálogo normalmente é revelar que quem perguntou se o outro estava bem gostaria de começar um processo de comunicação com o outro. Logo a intenção é abrir as portas para um diálogo.
Quando alguém chega para nós e diz: “eu te amo”, estaria a pessoa fazendo apenas uma declaração ou estaria confessando um sentimento profundo e querendo ter uma resposta positiva à altura? Descobrir a intenção de um texto é fundamental para não misturar uma exortação como se fosse uma lei, por exemplo. No 4º evangelho da Bíblia, em Jo 2,1-11, que narra que Jesus transformou água em vinho, a intenção do texto seria mostrar que Jesus tem um superpoder, para além do humano, de transformar água em vinho? Não, pois “toda graça supõe a natureza”, dizia o teólogo Tomás de Aquino. A intenção do texto é mostrar que a festa em Caná da Galileia era uma festa de pobre? Está presente este elemento, mas a intenção principal é criticar a religião oficial judaica que não consegue mais fazer com que a vida seja uma festa com vida e liberdade em abundância para todos/as e todes. Com seu projeto libertador, Jesus de Nazaré, com todas suas discípulas e seus discípulos, é que pode transformar a vida em uma festa duradoura, feliz e verdadeira. Logo, a intenção é dizer que Jesus é o vinho novo. O exame do gênero literário do texto – um dos sete sinais de Jo 2 a 11 e não um milagre – ajuda a compreender a intenção do/a autor/a e a finalidade da mensagem do texto.
Importante considerar como se formou a Bíblia, que não caiu pronta do céu e nem foi ditada por Deus diretamente aos escritores/as. A Bíblia foi escrita em mutirão durante cerca de 1.300 anos. Os primeiros textos bíblicos foram registrados, provavelmente, lá pelo ano 1.200 antes da era cristã e os últimos lá pelos anos 115 da era cristã. Muita gente contribuiu para que a Bíblia fosse escrita. Gastou muitos séculos. Foi uma longa gestação, durou mais de um milênio para todos os livros da Bíblia serem escritos. Há vários tipos de Bíblias. A dos católicos tem 73 livros; a dos evangélicos, 66 livros, pois não reconhecem os sete livros deuterocanônicos como inspirados; a dos católicos ortodoxos, 78 livros. Há dezenas de traduções da Bíblia, umas muito boas e algumas ruins e ultrapassadas.
Um dos textos mais antigos da Bíblia, provavelmente, seja o Cântico de Míriam – irmã de Moisés e Arão -, após a travessia do Mar Vermelho: “Cantai a Iahweh, pois de glória se vestiu; ele jogou ao mar cavalo e cavaleiro!” (Ex 15,21). Este canto brotou de um coração feliz que irradiava alegria ao ver que os povos escravizados estavam se libertando da escravidão do imperialismo dos faraós do Egito. O povo deve ter cantado muito este refrão pelo deserto afora, durante e depois da conquista da terra. Cantar este canto ecoava as maravilhas de Deus no meio do povo que marchava em busca da terra prometida. E logo depois, provavelmente, alguém registrou por escrito este canto que, após passar por muitas gerações, de boca em boca, foi escrito na Bíblia. Processo semelhante aconteceu com os outros textos bíblicos.
O capítulo 21 do quarto evangelho, o chamado Evangelho de João, é um dos últimos textos que entraram na Bíblia. Lá pelo ano 115, provavelmente, em Éfeso, Ásia menor, onde hoje é a Turquia, o redator final do quarto evangelho compôs o apêndice do evangelho do discípulo amado (Jo 21,1-23), no qual insiste no primado do amor (Jo 21,15-17), e fez uma nova conclusão (Jo 21,24-25).
Os livros bíblicos (e também as singulares páginas) são o estágio final de um longo e complexo processo literário. Depois de uma longa tradição oral – de boca a boca, passando de pai para filhos/as… -, alimentando as comunidades na vida cotidiana e nas celebrações, os textos eram reformulados, ampliados, atualizados, adaptados segundo as necessidades de cada época e dos grupos que liam os textos.
Um estudo mais acurado dos textos bíblicos revela incoerências, falta de homogeneidade, contradições, tensões internas e saltos bruscos de um assunto para outro, lacunas, transições sintáticas e temáticas mal feitas, inúteis repetições etc.. Em síntese, na Bíblia temos, muitas vezes, um texto desorgânico e, às vezes, contraditório. Por isso também não se pode fazer leitura ao pé da letra escolhendo os versículos que se enquadram nas nossas pré-compreensões. A cultura hebraico-semita é eminentemente plural, não é de pensamento único como na sociedade capitalista que sempre tenta impor a uniformização. Para os povos da Bíblia, quando apareciam diversas versões sobre um acontecimento inspirador, registravam-se as várias versões. O uniformismo é herdeiro da cultura grega racionalista e para dominar tenta sempre impor um pensamento único e desqualificar os diferentes. Para os povos bíblicos a unidade se constrói na diversidade e na pluralidade. É no esplendor da diversidade que a teia da vida se reproduz.
No decorrer do processo de gestação da Bíblia, os autores e as autoras bíblicas sofreram influência de outras culturas já desde os seus inícios em Canaã/Palestina sob o domínio egípcio e de povos circunvizinhos e mais tarde dos assírios, babilônios, persas, helenistas, romanos, gregos e de outras culturas. Mesmo assim os povos da Bíblia conservaram suas particularidades no campo cultural e religioso que se refletem nos escritos bíblicos pela diversidade de formas e gêneros literários conhecidos no seu tempo.
13/05/2024
Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.
1 – Um Tom de resistência – Combatendo o fundamentalismo cristão na política
2 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética
3 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)
5 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022
6 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
7 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
8 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
9 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023
10 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
11 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022
12 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. Autor de livros e artigos. E “cineasta amador” (videotuber) com mais de 6.000 vídeos de luta por direitos no youtube, canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos”. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III