Família original e aberta ao mundo (Lc 2,22-40) – Por Marcelo Barros
No domingo que cai em meio aos oito dias do Natal, a Igreja Católica celebra a festa da Sagrada Família. Nós nos tornamos as pessoas que somos, em primeiro lugar, na família e pela educação afetiva e social. O primeiro presépio social de Jesus foi a sua família. Já no presépio natalino, o menino não está só. Na manjedoura, estão ao seu lado, José e Maria. No entanto, o presépio mais duradouro de Jesus foi a casa em Nazaré, a oficina de José e o convívio com seus pais, irmãos e irmãs.
Não sabemos mais do que isso sobre a família de Jesus, nem devemos inventar. Atualmente, como outras instituições sociais, também a família está em crise. No mundo atual, se espalham vários modelos de família. No entanto, há eclesiásticos que, a partir da leitura fundamentalista de textos bíblicos, canonizam o modelo patriarcal e burguês de família que a sociedade ocidental institucionalizou como “cristã”. Fazem com a família de Jesus algo semelhante a quem arma um presépio de Natal com pintura dourada e colocam as figuras de Maria, José e o menino na sala de visita de um quartel da polícia ou de prisão, ou na entrada de um shopping-center. O presépio se torna enfeite mentiroso. Do mesmo modo, a Sagrada Família assume uma fisionomia que, na realidade, nunca foi a sua.
Quem lê o evangelho sabe que Jesus ficou em sua família quando era criança. Quando adulto, rompeu com o modelo de família patriarcal e clânica. Certamente, para Maria e seus irmãos foi duro escutá-lo dizer: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos e irmãs? Toda pessoa que escuta a Palavra de Deus e a põe em prática” (Mc 3,34-35). Não foi fácil para os parentes assimilarem as palavras de Jesus: “Quem ama o seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim. Quem ama filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37).
O texto do evangelho escolhido para essa festa pode nos ajudar a compreender isso: Lucas 2,22-40. É a cena da apresentação do menino Jesus ao templo, quando se completaram 40 dias do seu nascimento. Conforme o Evangelho, quando Jesus é apresentado ao templo, passa a fazer parte do seu povo. Portanto, ao apresentar o menino a Deus, na realidade os pais o estão entregando ao povo. Estão ampliando a sua família.
José e Maria fazem isso para cumprir a lei. Mas são tão pobres que não podem oferecer o sacrifício “normal”. Fazem a oferta que a lei diz que as pessoas mais pobres podem oferecer: um casal de rolinhas (Lv 12,8). É o que Maria e José oferecem.
O evangelho de Lucas mistura dois ritos judaicos diferentes: a purificação da mãe e a apresentação do filho. Conforme a lei, no caso do primeiro filho de um casal, deveriam fazer o “resgate do primogênito”, sacrifício pelo qual a família pedia a Deus para ficarem com o menino que é consagrado a Deus. Ficavam com a criança, mas, ao mesmo tempo, ele se manteria como consagrado a Deus (Cf. Ex 13,2.12.15). Lucas não faz nenhuma alusão a esse rito de resgate do primogênito. Conforme o evangelho, a família de Jesus não o resgatou. Isso significa que, mesmo legalmente, José e Maria não teriam podido ficar com o menino em casa. Desde o começo, Jesus é do povo, pertence ao Pai e à sua missão: o testemunho do reinado divino no mundo.
No lugar de sublinhar os ritos da apresentação no templo, o evangelho centra sua narrativa em algo diferente: a profecia. Conforme Lucas, Jesus é, antes de tudo, reconhecido como Salvador pelos pobres (os pastores de Belém). Agora, no templo, é reconhecido não pelos sacerdotes e sim por um casal de profetas idosos: Simeão e Ana. Conforme o evangelho, a profecia tem um jeito masculino com Simeão e um estilo feminino com Ana. Simeão profetiza que Israel pode alegrar-se porque deu Jesus à humanidade. Jesus será luz para todos os povos. É como a Igreja em saída que o papa Francisco propõe. Ao tomar o menino Jesus nos braços, de certa forma, Simeão proclama que a primeira aliança se abre ao novo testamento.
Ana cumpre a profecia do louvor e a todos/as, fala sobre o menino. Esse casal de profetas representa a importância dos mais velhos na comunidade. Em um mundo dominado pela produção e pelo dinheiro, muitas vezes, as pessoas mais velhas são marginalizadas. Ao contrário, nas religiões afro-brasileiras e indígenas, os mais velhos têm papel preponderante.
Em algumas comunidades cristãs populares, mesmo se o rito do batismo ficar para mais tarde, o pai e a mãe apresentam a criança recém-nascida a Deus e à comunidade. É um gesto belo e de significado comunitário. Ao mesmo tempo, resgata as etapas do catecumenato batismal, o que é sempre uma boa sabedoria na iniciação da fé.
Neste momento, muitos jovens, rapazes e moças, e muitos/as adultos/as esperam de nós que como Simeão e Ana façamos da religião não apenas o culto do templo e sim a profecia. E que a gente fale bem do Menino (como Ana) e não dê de Deus a imagem de um Deus mesquinho, truculento, insensível à humanidade e a seus sofrimentos. A Palavra de Deus se fez carne e armou sua tenda de amor em nós e no meio de nós.
Marcelo Barros: Livro OS SEGREDOS DO NOSSO ENCANTO – fé cristã e espiritualidades indígenas e negras