Guia para quem aceita perder (Mc 9,29-36) – por Marcelo Barros
Reflexão bíblica para o XXV Domingo comum, dia 22/09/2024. No campo social e político, a questão do poder continua a ser um desafio fundamental. Nos ambientes tradicionais de direita, há uma cultura do autoritarismo, considerado como liderança. No entanto, mesmo nos movimentos populares e nos grupos que optam pela transformação do mundo, o desafio do poder também é muito presente. Políticos progressistas se comportam como coronéis e é comum que a ambição pessoal continue a ser o modo normal de agir das pessoas.
Nas Igrejas cristãs, apesar de que conforme os evangelhos, Jesus propôs uma total reviravolta nas relações de poder, desde os tempos mais antigos, a questão do poder tem sido fonte de divisão entre os ministros e de conflito por predominância entre as Igrejas locais.
Em nossos dias, o papa Francisco tem denunciado o clericalismo como verdadeira chaga na Igreja. No entanto, a divisão entre clérigos e leigos é tão arraigada que, mesmo uma proposta importante como a Sinodalidade, apresentada pelo papa como “modo normal da Igreja ser”, esbarra na cultura eclesiástica, que confunde ministério com hierarquia e aceita sinodalidade, desde que salvaguarde o poder do clérigo ordenado.
É a partir dessa realidade e desse apelo de Jesus à conversão que podemos reler e procurar entender o evangelho lido neste XXV domingo comum do ano B: Marcos 9,29-36.
O contexto histórico parece ser o fato de que Jesus já não atuava mais com a multidão. Embora ainda estivesse na Galileia, agia como se fosse clandestino. Não queria que as pessoas soubessem da sua presença.
A experiência humana revela que ninguém opta pela clandestinidade simplesmente porque gosta de se esconder, ou porque prefere ser incógnito. Geralmente, as pessoas entram na clandestinidade para salvar a vida ou poder realizar algo que seria impossível fazer publicamente. O evangelho explica que Jesus se colocou como clandestino, porque se dedicava a formar os discípulos/as e fazia isso preparando-os para o grande trauma que seria a sua prisão e morte na cruz.
No tempo de Jesus ou mesmo décadas depois, na época em que o evangelho foi escrito, o que significava preparar alguém para aceitar a cruz? Mesmo hoje, como nos preparamos para assumir a cruz?
Desde a Idade Média, se desenvolveu um Cristianismo dolorista que falava da cruz como a capacidade de aceitar sacrifícios e dores. Nas Igrejas, predominava uma espiritualidade baseada no que, então, se chamava de mortificação. Hoje, optamos por uma fé centrada na vida e na alegria e não na dor. No entanto, no tempo de Jesus, na Palestina, não se poderia imaginar um Messias que se propunha a libertar o povo e aceitava ser preso, condenado pelo império e morto na cruz, como, na época, era o suplício imposto aos rebeldes e subversivos políticos. Para os discípulos e discípulas de Jesus, esse foi o maior dilema de Jesus: conforme a cultura deles e a cultura religiosa até hoje comum, se a pessoa é de Deus, Deus está no comando e o sinal disso é a vitória contra os inimigos. Se as coisas não acontecem assim, não seria de Deus que nunca poderia aceitar o fracasso e a cruz.
Esse foi o desafio de Jesus: assumir a missão de Cristo (Messias) e fazer as pessoas compreenderem que ele cumpriria sua missão libertadora não pela vitória política contra o império e sim ao dar sentido positivo e fecundo à entrega da sua vida. Ele tomou como meta da sua missão não a tomada do poder e sim a inserção na condição de condenado pelo sistema político. Ao assumir a cruz, Jesus revela uma nova proposta de relações humanas e de organização da sociedade, baseada no amor gratuito e incondicional, na justiça como condição para a Paz e no cuidado com a Vida em todas as suas dimensões.
Assim, a primeira parte deste texto do evangelho de hoje contém a segunda advertência que Jesus fez aos discípulos avisando o que iria sofrer em Jerusalém.
A segunda parte mostra a conversa mais íntima e tranquila que ele teve com o seu grupo quando chegou em casa, na comunidade (isto é, na Igreja doméstica). Essa conversa teve como tema os conflitos de poder que ele, Jesus, percebia haver no grupo e a sua proposta de que para ser discípulo dele a pessoa tem de tomar o lugar do serviço e não o do poder.
Tanto a predição de Jesus sobre a sua cruz como a conversa sobre o poder na comunidade dos discípulos foram ambas entendidas de forma espiritualista e nem uma nem outra parece ter sido compreendida pelos discípulos. O exegeta espanhol Jabier Pikassa comentou este evangelho afirmando:
“O que Jesus critica não é o “egoísmo” na busca de cargos. Jesus é contra a própria existência de cargos na Igreja (Mc 9,35-37). Geralmente, os eclesiásticos interpretam as palavras de Jesus como uma crítica ao simples autoritarismo. Se se tratasse de uma discussão sobre formas de exercer a autoridade, seria um problema secundário que se resolveria com uma ética de boa conduta. No entanto, o problema não é de formas e sim de princípios. Não se trata de mandar bem ou mal e sim de não mandar. Não se trata de governar sem egoísmo e sim de superar o próprio governo, superando assim toda lógica humana, na linha da gratuidade, como fazem as crianças e é uma criança que Jesus apresenta como modelo”[1].
Em pouco tempo, já nas primeiras gerações da Igreja, santos bispos como Clemente de Roma, Irineu e outros interpretaram os textos evangélicos para dizer que Jesus instituiu sacerdotes e colocou Pedro como papa na Igreja. Desde quase o começo da Igreja sempre houve luta pelo poder entre ministros e estes lutaram para evitar a cruz e serem aceitos pela sociedade.
Se prestarmos atenção à própria linguagem, os discípulos perguntavam quem seria o maior e o mais importante. Jesus responde que não se trata de ser primeiro. Deve-se procurar ser o último. E no anúncio da cruz, a expressão que ele usa é se entregar. O Filho do Homem vai ser entregue…
Na realidade, ambas as afirmações, tanto a palavra sobre a cruz, como a palavra sobre o antipoder podem ser compreendidas a partir do princípio de que é preciso entregar a vida para ganhá-la definitivamente (Mc 8, 35). Ao dar a própria vida, Jesus dá o exemplo do que acabava de afirmar como Mestre. Morre como um lavrador que se revolta contra o império. Para o mundo, a sua morte é humilhante e vergonhosa. Para quem é discípulo ou discípula, a mesma doação da vida se torna referência de entrega e consagração, a qual todos nós somos chamados/as.
Em nossos dias, a rebelião dos povos indígenas do Sul do México se organizou como movimento zapatista desde a segunda metade do século XX e se tornou pública no dia do ano novo de 1994. Atualmente, organiza a região de Chiapas em caracoles, ou seja, formas circulares e comunitárias de governos municipais. Ali, o princípio básico é mandar obedecendo. Não há chefe, nem comandante. Há apenas um (ou uma) representante do governo sempre colegiado a que chamam de “bom governo” e esses ou essas são sub-comandantes. O “mandar obedecendo” é o princípio ético de relações novas.
De acordo com esse evangelho de hoje, a ressurreição de Jesus não é uma vitória através do poder, como até hoje, cantam algumas canções do tempo pascal e sim uma afirmação da Vida e do Amor a partir do fracasso, da humilhação e da morte. O evangelho de hoje tem para nós a grande boa notícia de que será possível aceitarmos, um dia (tomara que logo) que quem na entrega da vida e no jogo do amor perde acaba ganhando e, ao mesmo tempo, deixa o desafio de como ver ressurreição e vida em meio a tantas calamidades e sofrimentos dos povos crucificados de hoje e das nossas crucifixões de cada dia…
[1] – PIKAZA, Jabier, Comentario al Evangelio de Marcos, Vida Publishers, Madrid, 2014, p, 443.