Nossas(os) ancestrais e todas as santas e santos de Deus (Mt 5,1-12): orar não por eles e elas, mas com eles e elas. Por Marcelo Barros

Desde séculos antigos, a Igreja Católica celebra no dia 1º de novembro a festa de todos os santos e santas de Deus e no dia 2 de novembro a comemoração de todos os nossos irmãos e irmãs falecidos.
A sociedade contemporânea tem muita dificuldade de lidar com a morte. A visão mecanicista da vida faz com que se tente esconder e disfarçar o medo da morte. No entanto, a morte faz parte do processo da vida. As culturas originárias valorizam ritos de despedida e de transição. Assumem o luto e a saudade. Ensinam-nos a viver esse processo comunitariamente. No Mato Grosso, o povo indígena Bororo celebra o funeral durante 30 dias. Assim, as pessoas vivas convivem com a que morreu. No Candomblé, o Axexê, cerimônia feita quando morre algum membro da comunidade, é das mais importantes da religião dos Orixás.
Desde tempos ancestrais, as culturas do Norte do mundo celebram no dia 1 de novembro o Dia das Bruxas ou o Halloween. No México, no tempo dos Aztecas, no dia 2 de novembro, celebrava-se Mictlantecuhtli, o deus da passagem para o reino da morte. Até hoje, os mexicanos fazem em torno desse dia, uma grande festa na qual convivem com as pessoas falecidas da família. Em outros lugares, a comemoração de todos os santos e santas, assim como a memória dos defuntos, tem sua origem nas celebrações à Mãe Terra.
A cristianização dessas tradições criou o costume de rezar pelas pessoas que partiram. No entanto, o sentido mais profundo dessa celebração é recordar a Santidade Divina que marca a vida de todos/todas nós e nos liga a nossos/as ancestrais.
Se Deus é Amor, salva a todas as pessoas de graça e não precisa que lhe peçamos para ser bom com nossos(as) parentes que faleceram. Deus é Bondade, Amor infinito e Salvação que não exclui ninguém. Fazemos memória dos irmãos e irmãs que faleceram, não para orar por eles e elas, mas para orar com eles e elas. É um dia de aprofundamento da comunhão que nos une às pessoas que partiram para a vida plena e estão vivas de muitos jeitos em comunhão com todo o universo.
Cada tradição espiritual tem seu jeito de entrar em comunhão com os ancestrais e receber deles a energia espiritual para enfrentarmos os desafios da vida. Na fé cristã, cremos na comunhão dos santos e santas de Deus. Isso significa que há profunda unidade entre as pessoas vivas e as que já partiram para a vida plena. Nessa comunhão, somos abençoados e abençoadas pela energia amorosa que recebemos dos ancestrais. O apóstolo Paulo escreveu: “Nem a morte, nem a vida, nada nos separará do amor de Deus que está em Cristo Jesus” (Rm 8, 38).
Neste dia, a liturgia nos propõe a escolha entre vários textos do evangelho. Aqui escolhemos Mateus 5, 1 – 12; texto escolhido para a liturgia de 1º de novembro e que serve bem para o dia de todos os santos e santas para recordarmos a comunhão dos santos e santas do céu e para o dia 2 de novembro, a memória dos irmãos e irmãs falecidos, nossos ancestrais na vida e na fé.
Mesmo nas comunidades cristãs, ainda persiste uma concepção de santidade desligada do cotidiano. Conforme essa concepção, alguém é considerado santo ou santa quando é diferente de todo mundo e parece sem defeitos. Não é essa a concepção bíblica e dos evangelhos. Na Bíblia, só Deus é Santo e tem o sentido de “totalmente outro”, ou seja, transcendente. Mas, o livro do Levítico repete o mandamento divino: “Sejam santos, porque Eu sou santo” (Lv 11, 44; 19, 1). Ser santo e santa tornou-se um modo de dizer que a pessoa é consagrada. Pertence a Deus.
Nas primeiras comunidades de discípulos e discípulas de Jesus, fundadas pelo apóstolo Paulo, ele chamava a todos e todas de santos e santas, porque, pelo batismo, todos e todas recebem o Espírito e, por isso, somos todos e todas santificados/as. No discurso da montanha, o evangelista Mateus diz que Jesus pedia: “Sejam perfeitos/as, como o Pai do céu é perfeito” (Mt 5, 47), isto é, sejam íntegros como Deus é íntegro. Lucas preferiu traduzir: “Sejam misericordiosos/as, como o Pai do céu é misericordioso” (Lc 3, 36).
O evangelho de Mt 5,1-12 traduz isso nas bem-aventuranças proclamadas por Jesus. Ao proclamar abençoadas de Deus e vistas por Deus como benditas as pessoas pobres de coração, as que sofrem, as que o mundo considera sem importância e as perseguidas por causa da justiça, Jesus revela que a santidade não é algo que acontece, somente e nem principalmente, dentro das Igrejas.
A festa de hoje nos convida a reconhecer e honrar a santidade em todas as tradições espirituais e mesmo fora do mundo das religiões. Em todos os lugares e culturas, existem pessoas admiráveis que se deixam mover pelo Espírito e expressam o Amor Divino, sem ser, necessariamente, religiosas.
A santidade proclamada nas bem-aventuranças não é virtude moral. É a boa notícia de que as pessoas e comunidades empobrecidas podem se alegrar, porque o reino de Deus está chegando e elas vão deixar de ser empobrecidas. As que choram vão deixar de chorar e as que têm fome serão saciadas. De graça, Deus lhes promete a inversão das situações dolorosas e injustas em que vivem.
Em nossos dias, essas bem-aventuranças de Jesus se estendem às multidões de pessoas migrantes e refugiadas que são hostilizadas nas ilhas de riqueza e bem-estar do mundo, às pessoas vítimas do genocídio na Palestina e que sofrem nas mais de 50 guerras que as indústrias de armas e o colonialismo imperial sustentam no mundo, além é claro, das que sofrem a violência de cada dia nas esquinas e portas de nossas cidades.
Ao apresentar as bem-aventuranças, Jesus as revelou como caminhos possíveis da graça divina. A pobreza como miséria nunca é graça divina, mas assumi-la comunitariamente para dela se libertar é um caminho de bem-aventurança. Quem convive diariamente com pessoas em situação de rua, ou com pessoas com deficiência física ou mental descobre a felicidade que consiste em viver o amor solidário.
Atualmente, a teologia latino-americana nos propõe: Junto com os pobres, na luta por direitos e pelo bem comum, contra a pobreza injusta. Deus não quer o choro, a fome e a perseguição. Quer nos dar força para juntos sairmos dessas situações e vivermos a alegria, em Deus e com Deus. A santidade consiste em nos deixar cada vez mais conduzir pelo Espírito que inspira e gera vida para todos e todas.
Nesse dia em que comemoramos os irmãos e irmãs que já partiram para vida plena, mas continuam vivos em nós de muitas formas, recordemos afetivamente o seu convívio e que a herança afetiva que recebemos deles e delas nos façam conviver melhor com as pessoas vivas e sermos pessoas de amor e que testemunham para todos e todas as bem-aventuranças de Jesus, valorizando as pessoas que, hoje, vivem essas situações que Jesus apontou e nas quais o Amor Divino quer mostrar sua preferência.
“Quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace.
Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste.
Quando eu estiver fogo
Simplesmente se encaixe.
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce.
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate
de dentro de si…” (Nando Reis).