O QUE JÁ É RUIM PODE FICAR AINDA PIOR! Privatização das prisões?
Prof. Dr. Virgílio de Mattos
Prisão privada, em PPP, é inconstitucional e cavalo de tróia.
Ao saber da inauguração do 1o presídio em PPP – Parceria Público Privado – do Brasil, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais, recordei-me do povo Nevense que tanto grita “Basta de presídios! Não queremos mais presídios em Ribeirão nas Neves!”
E pedi ao prof. Dr. Virgílio de Mattos, doutor em criminologia, que comentasse a notícia veiculada no BOM DIA BRASIL DA TV (G)Lobo, dia 17/01/2013. Virgílio me enviou um texto que precisa ser lido por todos os brasileiros. Veio com a seguinte observação: “Não retiro nenhuma palavra do texto, abaixo, e apenas posso acrescentar; NÃO VAI FUNCIONAR!!! Minha certeza cresce ainda mais com a Rede Globo fazendo campanha.
O texto do prof. Dr. Virgílio de Mattos foi publicado originalmente no Estudos de Execução Criminal – Direito e prof Psicologia. TJMG/CRP, 2009, pp. 47-58. ISBN 978-85-98923-02-4. Eis, abaixo, o texto do prof. Virgílio, de leitura necessária que, agora, também disponibilizamos que em nosso sítio: www.gilvander.org.br – Abraço terno. Frei Gilvander Moreira.
O que já é ruim pode ficar ainda pior
Virgílio de Mattos [1]
Il timore è tenuto da una paura di pena che non ti abbandona mai.[2]
Com muita alegria e orgulho falo a todos vocês hoje. Alegria por poder ver o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais ouvir a sociedade civil e dar esse importantíssimo passo, que é este Seminário, para sepultarmos de vez essa ideia nefasta de privatização do público, em área especialmente sensível como é o sistema prisional. Orgulho por fazer parte desse momento histórico em que a sociedade civil pode sentar-se ao lado dos representantes do Estado e dizer não. “Não queremos ir nessa direção” e ser ouvida e assumir um protagonismo sempre negado aos pobres de todo o gênero, exceto quando são alvos do direito penal, exercitando e cumprindo seu papel primordial, do direito penal, que fique claro, que é o de servir de cão de guarda dos poderosos, de controlador impiedoso dos consumidores falhos, para dizermos com Massimo Pavarini; de garantidor dos privilégios dos exploradores, venham de onde vierem, mas que, quando vêm do lugar do controle total, sempre vêm armados. Armados e mal treinados, ou bem adestrados, o que não é o mesmo, mas resulta igual.
Assim como a sociedade civil o Tribunal tem mudado muito, embora os pobres continuem na qualidade de alvos, como sempre. Mudanças, na maior parte das vezes, são bem-vindas, e não é preciso temê-las, embora incomodem, quando nada, pelo próprio processo de modificação em si: toda movimentação produz incômodo no ideário conservador. Mas com a privatização a questão é de outro nível.
Privatizar não é mudar, bom que se diga. É mais do mesmo. Antiga mesmice patrimonialista por nós conhecida desde a “invenção” do Brasil, em 1500, que nos trouxe e legou o que havia de pior em Portugal: poderosos de ocasião, arruinados ou não; aventureiros, bandidos condenados e os pobres de então.
Temos aqui hoje, neste espaço, uma oportunidade ímpar e fundamental para repensarmos o modelo prisional, qualquer que seja o seu nome; quer seja pena privativa de liberdade ou medida de segurança. Desgastados “remédios” que matam o doente, não a doença, para utilizarmos uma metáfora tão ao gosto do século XIX, que é de onde vem esse tipo de pensamento, mas que ao final e ao cabo realimentam o penoso círculo vicioso de conduta definida como crime-segregação-nova conduta definida como crime, dentro da criminosa realidade de nosso sistema prisional, exemplo acabado de barbárie em pleno século XXI.
Qual é mesmo o paradigma do controle social? O direito penal. Pensado em frias cidades alemãs, foi transportado para os trópicos sem bula ou qualquer advertência quanto ao seu abuso. É fundamental que digamos, e isso sabe qualquer estudante de primeiro período de direito, que o Direito Penal só deve ser chamado, para qualquer tipo de discussão, como ultima ratio. Que seus efeitos iatrogênicos são extremamente danosos. Que faz mal ao Estado Democrático de Direito. Que cria dependência. Que mata.
A leitura dos princípios constitucionais deve ser a primeira tarefa dos pensadores e operadores das políticas de segurança pública, sob pena de virmos a transformá-la em insegurança coletiva, como tem sido o espetáculo do medo, incentivado e servido pela mídia, em um duvidoso – para não sermos deselegantes – cardápio de indigestas barbaridades.
Tem gente que gosta disso. Tem gente lucrando muito com isso. Tem gente que quer lucrar ainda mais com isso, transformando preso em mercadoria. Sua força de trabalho em mercadoria barata, para não dizer em mão de obra escrava.
Vamos, propositadamente, afastar certo tipo de pensamento mal-intencionado que diz: “direitos humanos é coisa de bandido”. Não são. Os direitos humanos são aqueles que garantem esse espaço democrático, para a discussão e crítica de ideias, como temos a possibilidade de estar fazendo aqui hoje. Vitória da cidadania. Conquista das liberdades democráticas, que custou tanto sangue, desespero e lágrimas neste País.
Discutimos hoje a absurda e ilegal – por violação ao art. 5º, incisos XLVI, alínea a, e XLVII, alínea c, da Constituição da República – proposta de privatização do sistema prisional do Estado de Minas Gerais.
Para quem gosta de privatização, a descrição histórica de Eduardo Galeano[3]:
Nos Estados Unidos há cada vez mais presídios privados, embora a experiência, breve mas eloqüente, fale de péssima comida e de maus-tratos e prove que os presídios privados não são mais baratos do que os públicos, pois seus lucros desmesurados anulam os baixos custos […] uma empresa norte-americana de presídios privados, Corrections Corporation, figura entre as cinco empresas de mais alta cotação na Bolsa de Nova York. Corrections Corporation nasceu em 1983, com capitais que vinham dos frangos de Kentucky, e desde a largada anunciou que ia vender presídios como se vendem frangos. No fim de 1997, o valor de suas ações se multiplicara setenta vezes e a empresa já estava instalando presídios na Inglaterra, Austrália e Porto Rico. O mercado interno, contudo, é a base do negócio. Há cada vez mais presos nos Estados Unidos: os presídios são hotéis sempre cheios. Em 1992, mais de cem empresas se dedicavam ao desenho, à construção e à administração de presídios […] Os presídios privados se especializam em alta segurança e baixos custos, e tudo indica que continuará sendo próspero o negócio da dor e do castigo. A National Criminal Justice Commission estima que, no ritmo atual de crescimento da população carcerária, no ano de 2020 estarão atrás das grades seis de cada dez homens negros. Nos últimos vinte anos, os gastos públicos em presídios aumentaram em novecentos por cento. Isto não contribui nem um pouco para atenuar o medo da população, que padece de um clima geral de insegurança, mas contribui bastante para a prosperidade da indústria carcerária.
Ainda em relação ao modelo estadunidense, fundamental ter em mente a advertência de Loïc Wacquant, em seu indispensável Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos[4]:
[…] o meio milhão de reclusos que abarrotam as quase 3.300 casas de detenção do país – e os 10 milhões que passam por seus portões a cada ano – são recrutados prioritariamente nos setores mais deserdados da classe operária, e notadamente entre as famílias do subproletariado de cor nas cidades profundamente abaladas pela transformação conjunta do assalariado e da proteção social. E mostra, portanto, que, reelaborando sua missão histórica, o encarceramento serve bem antes à regulação da miséria, quiçá à sua perpetuação, e ao armazenamento dos refugos do mercado. […] no ritmo em que a América aprisiona, ela teria que abrir o equivalente a uma penitenciária de mil lugares a cada seis dias, e nenhum governo tem nem os meios financeiros nem a capacidade administrativa de fazê-lo. […] o número de detentos mantidos nas prisões com fins lucrativos cresceu em um ritmo frenético: de 3.100 em 1987 saltou para 15.300 três anos mais tarde, ultrapassando 85 mil em 1996.
São números eloquentes e chocantes ao mesmo tempo. Exemplo do que não queremos. NÃO QUEREMOS MAIS PRIVATIZAÇÕES. JÁ CHEGA O PREJUÍZO QUE ELAS CAUSARAM A TODOS NÓS! NÃO QUEREMOS, EM ESPECIAL, A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL.
Mas por que essa ideia de privatização dos presídios foi trazida como “solução” aos menos avisados? Porque ao Estado Democrático de Direito, temos a contraposição do “Estado do Medo”, o medo generalizado, agigantado pela mídia. Medo de não voltar inteiro para casa. Medo de “achar” uma bala perdida. Medo em relação à integridade dos filhos e medo dos próprios filhos. Medo da qualidade de ensino, que produz analfabetos funcionais. Medo do ensino pago, acrítico e sem qualidade. Medo de perder o emprego. Medo de ter medo. A quem interessa – esta é sempre a pergunta clássica do criminólogo crítico – o “Estado do Medo”?
Por óbvio não nos interessa viver sobressaltados. Mas a solução seria a privatização do controle penal? Tenho certeza de que não. Vejamos os porquês.
O “inimigo apropriado“, para utilizarmos a brilhante expressão de Nils Christie e Alessandro De Giorgi[5], é objeto de campanhas de pânico, pouco importando que sejam mescladas categorias tão díspares quanto terroristas, imigrantes e traficantes, em uma mesma tentativa de controle total. Seja aqui, seja do outro lado do Oceano Atlântico.
De fato, em tristes tempos neoliberais de terror ao estranho, a grande “política social” é a política penal. Estratégia de pânico generalizado contra os pobres de todo o gênero. O medo sempre maior do que a ameaça de dano concreto, ou de risco de dano.
Oportuna a fina análise de Vera Malaguti Batista: “o medo não é só uma conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, o medo é um projeto estético, que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo coração”[6].
A sociedade civil organizada não tem medo do novo, tem dado exemplos disso, mas aprendeu – a duras penas – a descrer de velhas propostas, mesmo e sobretudo se coloridas de modernidade; quer se creia em pós-modernidade, quer se entenda que é preciso esgotar primeiro a própria modernidade para falarmos em pós. Pós tudo, não estamos mudos. E é isso que me parece o fundamental: termos voz e vez neste espaço que é público, que permanecerá público. Nos últimos cinquenta anos não creio ter a sociedade civil, exceto quando seus representantes se sentavam nos bancos dos réus nesse mesmo local onde funcionava o plenário do antigo Tribunal do Júri, podido ter assento neste local. Ter podido ter fala neste local, exceto quando perguntado pelo juiz qual a sua versão sobre os fatos…
Os tempos são outros e o Judiciário traz visibilidade ao trabalho dos militantes dos movimentos sociais que têm provocado discussão das mais difíceis: encarceramento pode ser privado? Ou, mesmo antes disso, encarceramento é algum tipo de solução?
Essa proposta de privatização, agora também dos presídios, vendida como moderna, mas, na verdade, velha de 1819[7] pelo menos, fez-me lembrar a fala do Príncipe Fabrizio Salina, no magistral romance de Tomasi di Lampedusa, Il gattopardo: “Tudo será diferente, mas será pior”[8]. Pode-se garantir o pior desde já. A privatização transforma ainda mais o preso em mercadoria e, por via de consequência, a pergunta que não cala é a seguinte: quem pagará esse pacto? O lucro do “investidor” na contenção é pago pelo preso e sua família, ou pelo preso, sua família e todos nós? Já não estariam satisfeitos com a privatização da saúde e da educação, com os resultados negativos a que assistimos? Por que mais do mesmo? Mais do pior? Por que mais do pior? Como se fosse um jogo, por que apostar no perdedor? Que lógica, sem lógica, é essa?
Sobretudo em se tratando do sistema prisional, a privatização encerra uma verdadeira crônica de um “muito pior”, que, aliás, diga-se, vem sendo implementada nos últimos cinco, seis anos de modo estarrecedor no Estado de Minas Gerais. Inacreditavelmente estarrecedor. Certeza absoluta do que não queremos, do que não pedimos e, muito respeitosa e incisivamente: não admitimos.
Por que dividirmos o custo social, a débito do Estado, com um grupo empresarial lucrando com a miséria humana? Como dizia o Professor José Luiz Quadros de Magalhães em sua magistral conferência da data de ontem: essa privatização, além de inconstitucional, é imoral!
Em todo o planeta assiste-se a uma verdadeira disputa entre o Direito Penal Mínimo e o chamado Movimento da Lei e Ordem. O minimalismo tem suas origens no Iluminismo – e é preciso iluminar o iluminismo! – e lutamos, desde então, para sua implantação. As teorias penais vendidas como modernas, verdadeira “maravilha” do neoliberalismo, têm data e origem: são gestadas nos EUA e Reino Unido, quando Tatcher e Reagan dominam o mundo e a maldade, início dos anos 1980. 1982, para ser mais exato. A partir daí, tudo o que poderia ser considerado como risível, no espectro político da direita mais raivosa e enlouquecida, toda excentricidade – para dizermos elegantemente – passou a ser seguida como se fosse um avatar: metade touro indomável, metade mente brilhante.
Na periferia crédulos terceiro-mundistas criam, velha moda de acreditar que tudo o que vem de fora seria de melhor qualidade, que dar um passo adiante era prender mais. Mesmo à beira do abismo era preciso avançar. E o avanço da mesmice é a cópia. Mesmo que mal feita. O paladino das privatizações, o primeiro Fernando, não conseguiu vender e entregar tudo porque foi defenestrado antes. Veio o segundo Fernando, de triste memória, e conseguiu vender e entregar quase tudo. Nem eles chegaram a ousar tanto: transformar o preso em mercadoria e privatizar a execução penal. Disso estamos tratando aqui. A escolha que se faz é entre a nefasta ideia de “lei e ordem”, que deu no que deu, ou se podemos pensar inteligentemente.
Mais de 25 anos passados e o modelo de encarceramento em massa transborda em todos os lugares nos quais foi adotado. Fracasso retumbante no mundo inteiro. Essa máquina de moer gente, para dizermos com Darcy Ribeiro, faz gerar um lucro gigantesco para cada dólar estadunidense investido. O grande lucro, capitalizado na mão de poucos, por onde o modelo foi implementado, se encarrega de aplainar todos os terrenos, aplacar todas as sedes, calar quase todas as vozes dissonantes. Afinal, pensam os defensores do lucro acima de tudo, ética é apenas uma palavra. “Às favas com os escrúpulos”[9], os poderosos repetem sempre o mesmo refrão. O conjunto da população mais carente e com menos acesso à educação formal – a quem se destinam as medidas de contenção – ainda aplaude, pateticamente, todas as manobras de violência institucional como se pedissem mais. O senso comum ultrapassa todos os limites e é instado a pedir mais sangue, sofrimento, mágoa, esses ingredientes de um circo moderno videotizados após a luta diária pela sobrevivência, diuturna, sem clemência.
A mentira repetida inúmeras vezes vai perdendo o seu caráter de farsa, parece.
Enganada e enganosa a propaganda que diz que nunca no Brasil se tentou nada tão ousado… O fazimento de execução privada foi banido entre nós porque seus exemplos não são recomendados[10] ou recomendáveis. A modernização reside exatamente no contrário: retirar do privado determinadas “gerências” – para usar uma expressão ao gosto dos teóricos da privatização – que só ao público competiriam, como saúde, educação e, sobretudo, execução penal.
Mas, antes de passar uma vista d’olhos em alguns pontos intoleráveis da proposta inexequível, vejamos que essa estética da privatização remonta àquilo que Vera Malaguti Batista denomina de “estética do medo”.
A prática da execução penal tem utilizado, desde tempos imemoriais, do espetacularização do terror do crime e do terror na sua repressão. Espécie de princípio da proporcionalidade às avessas, a lógica que vige é a de que é preciso ser sempre mais bárbaro do que o facínora. É preciso erradicar, pelo exemplo do castigo bárbaro, sem garantias, a ação daquele que arrosta a norma penal, pouco importando que não haja violência, pouco valendo tratar-se de mero dolo de perigo abstrato. Exemplo mais bem acabado disso que estamos dizendo, e bem recente, é a admissão legal da prática de tortura, por via do Congresso estadunidense, no denominado Ato Patriótico. Utilização do terror contra algo denominado terrorismo. O Estado Sionista de Israel foi pioneiro. Os Estados Unidos da América seguiram-lhe os passos.
A distinção entre o medo real e o construído vem clara na criminalização do imigrante, na Europa, ou do “alienígena”, significando “não nacional”, mesmo que nascido em território estadunidense – os novos bárbaros – naquela visão. Qualquer que seja o estranho, o comum é o encarceramento, mesmo que não tenha feito nada. Mesmo que esteja circulando pelas ruas “sem propósito lícito definido”[11]. A ideia é exatamente esta: encarcerar a priori para que não possa fazer nada. O curioso, para não sermos contundentes, é que a política do encarceramento em massa, no início do “tudo penal”, toma corpo e cresce enquanto os índices de criminalidade baixavam há tempos, tanto nos EUA quanto no resto do mundo. Aí o paradoxo, que os sistêmicos tanto admiram.
Para dizermos com Dario Melossi, o
[…] arquétipo das evocações do medo se pode encontrar nos Estados Unidos em alguns discursos dos anos sessenta, que geralmente exprimiam posições impopulares de parte dos expoentes da direita, que naquela época eram vistos como reacionários excêntricos e um pouco loucos[12].
Tanto faz que seja um regicida, um homicida, um ladrão de carros, um usuário de drogas, um bêbado ao volante, um traficante de substância proibida ou um militante social: são todos perigosos agentes antiordem. É preciso neutralizá-los igualmente. A criminalidade só existe porque há “impunidade”[13] – como se os pobres pudessem escapar do aprisionamento – e o aparelho policial e carcerário precisa de mais recursos e nenhum controle externo. Esta a base sobre a qual será erguido o “consenso conservador’, ou o Pacto de Washington, que consagra o liberalismo sem freios e uma nova espécie de novo inimigo interno: o criminoso. Nenhuma novidade, nenhum avanço. Voltamos no tempo aos anos 1960. Só que o que era considerado uma esquisitice da direita, virou sinônimo de “modernidade”.
Vontade fazer coro a Macunaíma, o herói sem nenhum caráter: “Ai que preguiça!” O direito penal, desigual por excelência, para dizermos com Alessandro Baratta, passa a ter uma acentuação classista acelerada, veloz na modernidade do flash, da tecla enter, do direito penal atuarial, do número único para todo cidadão, da suspeição que mata primeiro e desculpa-se pelo equívoco depois. Do “tudo penal”. Do “controle penal”. Do encarceramento em massa.
O movimento teórico, circular sobre o próprio eixo, é instilar massivamente o terror, oferecer repressão em alta escala, na qual a morte de cidadãos é justificada pela mecânica do dano colateral[14], relativa diminuição dos números dos crimes – supervalorizados pela exposição também massiva na mídia e na exploração de programas tipo “mundo cão”, investimento no controle da miséria e da pobreza para garantia do patrimônio dos privilegiados e manutenção da exploração. Mas isso, evidentemente, não aparece na televisão.
Algumas perplexidades reforçam minha opção: PRIVATIZAÇÃO PENAL? NÃO, OBRIGADO!
Observem comigo alguns pontos do EDITAL[15]. Gostaria, primeiramente, de lembrar que o prazo de 27 (vinte e sete) anos para a “exploração” do público pelo privado, “podendo ser prorrogado de forma a assegurar a efetiva e adequada gestão”, de que nos fala o edital da PPP do Sistema Penitenciário, bem pode ser para sempre, dada a nenhuma regulamentação das prorrogações. Conter gente não é o mesmo que construir estradas e colocar pedágio para cobrar o “investimento”. Assim como o direito penal esse capital tem as mãos sujas de sangue!
O capital há de ser estrangeiro. Poucas as empresas nacionais que contam com capital social de sessenta milhões de reais. E, além da remuneração de CONTRAPRESTAÇÃO MENSAL, há ainda mais uma PARCELA ANUAL DE DESEMPENHO e mais uma PARCELA REFERENTE AO PARÂMETRO DE EXCELÊNCIA. O sinal é claro: fiquem tranquilos, senhores capitalistas, especuladores internacionais, garantimos o retorno do seu dinheiro com boa margem de lucro. E ainda passamos uma bela imagem para a sociedade. Contem com nossa máquina publicitária. Contem conosco, dizem os alvoroçados em “não perder essa oportunidade”.
À p. 3 do corpo do edital, temos que a vaga é limitada a R$70,00 (setenta reais) dia, logo, teremos um custo de R$ 2.100,00 (dois mil e cem reais) mês, por preso. Obviamente que seremos nós a pagar essa conta. Certamente não é um preço baixo. Enquanto escrevo este texto, este valor representa mais do que cinco salários mínimos. Outra contradição, ou outro paradoxo? Por que não investir o Estado em geração de emprego e renda? Há enorme dificuldade na conquista de postos de trabalho, sobretudo o primeiro emprego, onde, se e quando, ganhará o cidadão R$ 415,00 reais[16]. Por que pagarmos cinco vezes mais e “terceirizarmos” isso para alguém que ainda lucrará com a desgraça alheia? Não seria mais crível, mais sensato, investirmos na geração de emprego e renda, em mais escolas e menos cadeias?
Percebem-se ainda alguns sustos, já na página 7 (sete) do edital eletrônico, observem: “A licitação será processada com inversão da ordem das fases de habilitação e julgamento”. Não me entendam mal, é comezinho de hermenêutica que devemos interpretar todas as coisas no que façam sentido, ou de modo a fazerem sentido. Mas tenho dificuldade em entender o sentido dessa inversão. Primeiro far-se-á o julgamento e depois a habilitação? Confuso, não?
Essa linguagem da iniciativa privada soa estranha aos ouvidos daqueles que têm o público como princípio e da Lei de Execuções Penais em particular, observem:
SUPERTOTALIZADOR: representa o medidor da quantidade de VAGA DIA efetivamente disponibilizadas no período em questão.
VAGA DIA: unidade utilizada pelo SISTEMA DE MENSURAÇÃO DE DESEMPENHO E DISPONIBILIDADE bem como para o cálculo da CONTRAPRESTAÇÃO PECUNÁRIA MENSAL e que representa uma vaga durante um dia (p. 13).
Se se faz uma análise, ainda que bastante superficial, percebe-se sem esforço que, para o vencedor da licitação, interessa que a megaestrutura prisional esteja sempre lotada durante todo o tempo, de molde a obter a contraprestação pecuniária mensal máxima. Parece lógico, não? Dentro do sistema capitalista das relações de produção, onde tudo pode ser transformado em mercadoria; seja saúde ou prisão, fé ou educação. É lógico, mas é sórdido, não? Assim como é estúpida a ideia de construirmos uma megaprisão, para 3 mil almas!, em pleno século XXI.
No caderno de encargos, anexo IX do edital eletrônico, temos que os profissionais serão contratados e mantidos pela própria empresa que explorará o “negócio”. Além de cumprir a pena imposta, deverá o preso gerar lucro para o seu “patrão”. Haverá geração de empregos para aqueles que trabalham em regime de contratação, como assistimos em mais de 9 a cada 10 trabalhadores do sistema prisional em Minas – já aí uma gritante ilegalidade, uma vez que o regime jurídico de serviço público essencial só pode ser o concurso público – e festival de lucro entre empreiteiros, construtores e assemelhados.
Empresto as insuspeitas palavras do autor da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, então Ministro de Justiça da Ditadura Militar:
É comum, no cumprimento das penas privativas da liberdade, a privação ou a limitação de direitos inerentes ao patrimônio jurídico do homem e não alcançados pela sentença condenatória. Essa hipertrofia da punição não só viola medida da proporcionalidade, como se transforma em poderoso fator de reincidência, pela formação de focos criminosos que propicia[17].
Com todo o respeito que a culta plenária merece, mesmo porque seria deseducado brincar com coisa tão séria, a política perversa do Governo do Estado de promover acelerado encarceramento em massa mais parece o artista de rua que ameaça pular dentro da roda de bicicleta, espetada com facas e vender o maravilhoso “cura tudo”, de câncer a mal de amor, na praça da rodoviária de Belo Horizonte. Encarcerar mais e mais, assim como o “será que ele vai pular?”, é o show. O gosto é muito duvidoso, seja plástica ou espetáculo. Solução, nenhuma.
É preciso ter a coragem de dizer que o exponencial encarceramento:
a) não reduz a criminalidade, pelo contrário, traz mais reincidência;
b) os moldes de controle pregados pelo movimento de lei e ordem já ultrapassaram todos os limites e o modelo está falido em todo o mundo;
c) privatizar a execução penal, além de inconstitucional, não resolve a questão em si; a questão social não é e nem pode ser considerada “caso de polícia”;
d) mais do que nunca é preciso utilizar o direito penal como ultima ratio, sua vulgarização só trouxe superlotação ao sistema e efeitos iatrogênicos nas medidas de segurança;
e) investimento massivo em medidas não encarceratórias e transformação do sistema prisional no método APAC; MAIS ESCOLAS, MENOS CADEIAS!
f) minimização da custódia ante tempus;
g) investimento massivo na ampliação e fiscalização de penas substitutivas ao cárcere.
Não há de ser com o encarceramento que se conseguirá a ressocialização, isso tem que ser compreendido de início, mas por que os propalados conceitos de qualidade e eficiência da propaganda privatista não podem ser públicos? O que é público é ineficaz e o que é privado é que é de qualidade? Só pode ser assim? É dogma ou praga?
Apenas exemplificativamente, a desmentir a propaganda dos defensores da privatização, quanto à quantidade e qualidade da assistência jurídica e psicológica dos internos – e particularmente tenho fundadas dúvidas quanto à legalidade desses atendimentos -, já na página 2 do Caderno de Encargos do Edital, temos que haverá 0,25 (isto mesmo: zero vírgula vinte e cinco) advogados por grupo de 100 presos, ou um advogado para cada grupo de 400 presos! (estamos avançando para trás!), que deverão prestar meia hora de atendimento por bimestre a cada sentenciado! O que também é difícil de entender é o que significa 0,67 (zero vírgula sessenta e sete) atendimento jurídico por bimestre. Demoraria quase quatro meses para que o preso tivesse um atendimento jurídico inteiro?
Tristes tempos modernos!
Dentre tantas dúvidas, a certeza de que alguma coisa na propaganda, dentre tantas mentiras inexoravelmente intrínsecas, é verdadeira: em termos de maldade no encarceramento, de retrocesso com discurso de modernização, de maus-tratos a presos e visitantes, de revistas vexatórias, de precariedade no atendimento jurídico e de saúde; verdadeiramente Minas avança, sem deixar ninguém para trás, em breve todos os pobres estarão dentro dos campos de concentração, sejam públicos ou privados, geridos pela Secretaria de Defesa Social. Se esta é a defesa, fico imaginando o ataque.
Tempos sombrios. O que já é muito ruim pode ficar ainda pior.
Gostaria que vocês pensassem nisso.
Não à privatização! Para a redução dos índices de criminalidade, devemos investir em mais escola, mais saúde, mais educação crítica. Para o sistema penitenciário, APACs.
Em outras palavras: desnecessário importarmos um modelo selvagem de transformação do preso em mercadoria, pensando resolver o problema da criminalidade e da violência, que tem sido atacado apenas com “respostas” penais. Nós não queremos, não pedimos e não aceitamos que se transforme o Estado de Minas Gerais em um campo de concentração continental. E pior: que tenhamos que pagar, e caro, por isso.
VAMOS VARRER A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PENAL MINEIRO PARA UMA SALA EMPOEIRADA DO MUSEU DA PALEONTOLOGIA DAS IDEIAS NEFASTAS E SEM SENTIDO! A HORA É AGORA!
Muito obrigado.
[1] Doutor em Direito pela Università Degli Studi de Lecce (IT). Graduado, Especialista em Ciências Penais e Mestre em Direito pela UFMG. Coordenador do Grupo de Pesquisas Violência, Criminalidade e Direitos Humanos. Professor de Criminologia nos Cursos de Pós-Graduação da SENASP/RENAESP do Ministério de Justiça. Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Autor de Crime e psiquiatria: uma saída – Preliminares para a desconstrução das medidas de segurança e A visibilidade do invisível, dentre outros livros. Advogado criminalista.
[2] Revista a ancestral e inútil figura das “prevenções” penais, sabidamente não funcionais. O ovo da serpente é o velho e atualíssimo “consigliere” Nicollo Machiavelli, 1513, Il principe. Nardò (Lecce): Edizione Storica, 2001, p. 152-3.
[3] De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 114.
[4] Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2001, p. 33 e 85.
[5] Confronte-se. Zero tolleranza – strategie e pratiche della società di controllo. Roma: Derive Approdi, 2000, p. 104.
[6] O medo na cidade do Rio de Janeiro – dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 65.
[7] Na origem e na fundação do sistema prisional “moderno”, no início do século XIX, também a gestão privada era vendida como “novidade”. Novo em relação a qual antigo?
[8] “E dopo sarà diverso, ma peggiore”. Il gattopardo. 85. ed. Milano: Feltrinelli, 2005, p. 168.
[9] Da fala do Coronel Jarbas Passarinho, então ministro da ditadura militar, quando da reunião sobre a promulgação do AI-5, que suspendia as garantias constitucionais.
[10] Ilustrativamente a possibilidade do preso ter um servidor só é abolida em 1914, Cf. art. 114, do Decreto n° 10.873: “a nenhum preso será permitido ter creado dentro do estabelecimento”.
[11] Cf. legislação penal do Estado da Califórnia.
[12] Paura, lotta di classe, crimine; quale “realismo”? In: Studi sulla questione criminale. Bologna: Carocci, Anno I, n. 1, 2006, p. 59. Tradução nossa.
[13] Uma expressão do léxico da direita, para dizermos com Nilo Batista.
[14] Metáfora estadunidense para identificar a morte de civis em locais de ocupação militar.
[15] Disponível no endereço eletrônico www.ppp.mg.gov.br.
[16] Salário mínimo vigente à época do Seminário.
[17] Exposição de Motivos 213, de 9 de maio de 1983, item 20. Diário do Congresso, Seção II, 29.05.1984. Grifo original.