“Sonhar mais um sonho impossível” (Mc 16,15-20) – Por Marcelo Barros
Neste penúltimo domingo do tempo pascal, celebramos a festa que a tradição chama de “Ascensão de Jesus”. Neste ano B, dia 12/05/2024, o evangelho lido nas comunidades é Marcos 16,15-20. Trata-se de um texto que, provavelmente, foi acrescentado ao evangelho de Marcos, no século II, meio século depois de que o evangelho de Marcos tinha sido escrito e publicado. Por essa razão e pelo seu conteúdo muito próprio e original, diferente de todo o evangelho anterior, esse texto que a liturgia das Igrejas lê nesse domingo pede de nós atenção especial. Ler ao pé da letra poderia nos levar a um jeito contrário de viver a fé ao que o conjunto do evangelho propõe.
Vamos esclarecer aqui algumas diferenças fundamentais entre esse texto do evangelho da Ascensão e o conjunto anterior do evangelho.
Marcos e todos os evangelhos nos apresentam uma imagem de Deus que é Pai de toda a humanidade, Deus Amor que salva a todos por sua graça. No sermão da montanha, Jesus diz: “Deus faz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e faz chover sobre os justos e os injustos” (Mt 5,45). Conforme o próprio evangelho de Marcos, Jesus tinha dito aos discípulos: “Quem não é contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,40).
Se isso é verdade, então, o que significa que nesse texto do evangelho que lemos hoje, Jesus ressuscitado afirma: “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado” (v. 16)?
Outra palavra estranha: em todo o evangelho, Jesus mostra aos discípulos e discípulas que a fé não pode se basear em milagres e sinais extraordinários. Durante o tempo de sua missão, Jesus se nega a dar sinais do céu (Mc 8,12). Como explicar que, agora, o Cristo Ressuscitado manda os apóstolos em missão e promete que a palavra será acompanhada por milagres extraordinários? Será que depois da ressurreição, Jesus que, antes, não gostava de dar sinais, agora, cede à religião de milagres que até hoje tanta gente nesse mundo prefere e procura?
Só podemos compreender essas palavras de Jesus pelo contexto histórico que mudou em relação ao tempo em que os textos anteriores tinham sido escritos. Esse evangelho pode nos ajudar a compreender o perigo de uma leitura fundamentalista dos textos evangélicos. Ele nos convida a escutar não apenas o que está escrito, mas “o que o Espírito diz, hoje, às Igrejas” (Ap 2,7).
O relato que lemos, hoje, nessa festa da Ascensão, como já expliquei, foi colocado no conjunto do texto de Marcos bem mais tarde e abre a fé cristã às dimensões do universo. Antes, os apóstolos eram testemunhas do reinado divino para o povo judeu. Agora, devem ir para o mundo todo. Devem ir ao mundo todo testemunhar o projeto divino no mundo: mergulhar as pessoas e os coletivos (povos) no projeto do Amor Divino. O texto não fala do batismo confessional desta ou daquela Igreja. Trata-se de ser batizados/as, ou seja, mergulhados/as no projeto divino da salvação. Salva-se quem entra na lógica divina do amor, ou seja, se reconhece ou não que o amor é a própria essência do Ser Divino.
Hoje, podemos compreender que quem não entra nessa perspectiva está condenado, não por Deus que não condena ninguém, mas porque a própria pessoa se nega a entrar na lógica do amor.
Os antigos imaginaram a ascensão de Jesus como subida, como se o céu estivesse acima das nuvens. O apóstolo Paulo nunca falou em ascensão. Afirmou que a humanidade de Jesus foi assumida plenamente em Deus (Ef 1,17-23). Ora, a humanidade de Jesus é exatamente a mesma de todos/as nós. Assim sendo, é nossa humanidade que foi divinizada. Na eucaristia, a louvação popular que serve de prefácio canta
“Os anjos aplaudem cantando:
na glória divina, o ser humano chegou”.
O que o evangelho conta com essa imagem da ascensão de Jesus é o processo de divinização interior que podemos, hoje, contemplar nas pessoas e comunidades que vivem na lógica da ternura do reino divino e testemunham que o amor é mais forte do que a morte. Quando ninguém imagina, a resistência das comunidades indígenas, negras, dos movimentos sociais e de todas as forças subversivas da história estão aí e revelam: um novo mundo é necessário, possível e estamos, sim, construindo.
Contemplemos essa força divina nas comunidades da resistência. Junto com elas, manifestemos o mistério do Cristo Vivo, o Jesus da gente, com rosto negro, sangue de índio e corpo de mulher. É isso que nos faz:
“Sonhar mais um sonho impossível,
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo, cravar esse chão
Não me importa saber se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão”
A música do Homem de la Mancha, (traduzida ao português por Chico Buarque) chama-nos a contaminar a Terra de utopia, re-significar como ressurreição os sinais de serviço aos irmãos/ãs marginalizados.
Nesta semana que vai da festa da Ascensão a Pentecostes, no Brasil, cada ano, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) nos convida para participarmos da Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos. Será o modo mais profundo de entrarmos na preparação para celebrarmos, no próximo domingo, a festa de Pentecostes e pedir que o Espírito Santo venha como dom da unidade para as nossas Igrejas. Sabemos que essa unidade só se construirá a partir de baixo e das fronteiras da fé. Precisamos ter coragem para ousar, para conspirar ressurreição fazendo daquilo que em nós é mais humano e frágil começo de nova humanidade.