UMA LUZ PARA ESTA ERA DE TREVAS – Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Ninguém acende uma lâmpada para cobri-la com uma vasilha (Lc 8,16)
Há quase trinta anos Marcos Arruda, grande companheiro na criação do Movimento Nacional Fé e Política, falou que a inserção da economia brasileira na globalização neoliberal pelo governo FHC ofuscava nossa visão, nos fazendo cofiar no dólar como moeda de referência. No entanto, dizia ele, essa crença era como um holofote que ofusca a visão, mas pode vir a sofrer um apagão. E esse apagão aconteceria, mais cedo ou mais tarde, obrigando o mundo a recorrer a quem tivesse lamparinas… Hoje algumas pessoas poderiam contestar essa previsão, dizendo que em vez de retornar às lamparinas do passado, pode-se usar as modernas lâmpadas de led controladas por I.A. Mas não é o progresso tecnológico que salvará o mundo. Para isso temos que levar em consideração a natureza histórica desse “apagão”, que teve seu marco inicial no dia 20 de janeiro deste ano, com a posse de Trump: inaugurou-se a Era de Trevas que o mundo está atravessando, sem saber aonde essa travessia pode levar. Na Esperança de que a luz que vai dar fim às trevas não seja a da bomba nuclear, vejamos mais de perto em que consiste essa Era de Trevas.[1]
Falo de Era de trevas para designar a confluência de três diferentes crises globais: catástrofes climático-ambientais de âmbito cada vez maior; falência do sistema geopolítico sob hegemonia dos EUA; e concentração do capital rompendo a solidariedade humana e gerando o neofascismo. Embora independentes entre si, essas crises se sobrepõem de modo a devastar a comunidade de vida da Terra e a ameaçar a sobrevivência da espécie humana
1. Catástrofes climático-ambientais resultantes do aquecimento global, perda da biodiversidade, acelerada extinção de espécies, exploração de recursos naturais além do nível de segurança. Apesar disso, não há pacto internacional de contenção: Economia e vida cotidiana não mudam e até pioram com os bombardeios. Basta lembrar a COP-30 e a exploração de combustíveis fósseis na Amazônia.
- As informações sobre isso são espetacularizadas: Mídia e redes digitais passam imagens que impressionam, narrando a realidade para despertar emoções, não reflexão. Suscitam no máximo um gesto de solidariedade com as vítimas de catástrofes, evidenciando nossa impotência diante da natureza e da crueldade de outros, para nos conformarmos com o inevitável. (Quem não gostar mude o canal da TV ou evite essa rede digital). Resultado: Somos tratados/as como espectadores até o momento em que nos tornarmos vítimas.
2. Falência do atual sistema geopolítico: 1991, com a vitória dos EUA na guerra fria: fim do sistema soviético e globalização do capital, mas sem criar uma ordem mundial multipolar > EUA perde força moral e se impõe só pela força militar reforçada por redes digitais que difundem informações capazes de derrubar governos contrários: é a guerra híbrida. Em 2007-08 a crise financeira abala a economia dos EUA e UE e permite a emergência da China, Índia, Rússia, Brasil e África do Sul – BRICS – no cenário geopolítico mundial.
- Hoje: Estado de pré-guerra mundial: EUA sem liderança moral, mas ainda principal potência militar e econômica do mundo > rompe-se a ordem civilizacional e inicia-se a luta de todos contra todos, cada qual defendendo seu território e seus interesses > vitória da força sobre o Direito. É a 3ª Guerra Mundial “em capítulos” – espetacularizada ou silenciada (Até nós mesmos temos receio de mencioná-la…).
3. Concentração do capital: antiga nova forma de capitalismo
Obs. Analiso só o Ocidente, por não conhecer bastante os casos da Índia, Rússia, Irã e especialmente China, cujo modo de produção é regido pelo mercado, mas sob planejamento estatal.
Crise de 2007-08: o capital (Fundos de Investimento) busca ganhos de curto prazo > pilhagem de bens-comuns: minérios, terra agriculturável, água, petróleo, conhecimentos, empresas públicas, locais aprazíveis e tudo que dê lucro imediato (dividendos que valorizam as ações). É a “economia que mata”: em vez conter sua ambição para evitar a catástrofe ambiental, o capital acumula lucros hoje para ter reservas na hora da crise. A apropriação privada de bens comuns. A rapina é a mais antiga forma de capitalismo!
- Novidade é o alto desempenho tecnológico combinado com “pedágio” feudal: empresas de informática (big techs) facilitam a transação entre produtor e consumidor e cobram ágio (p. ex: Uber, mercado livre, cartão de crédito). > Apropriam-se da riqueza sem contribuir no processo produtivo. (Tecno feudalismo). Apoio político oferecido pelo Estado militarista, nacionalista e protetor do comércio que rejeita organismos de controle > Ultraliberal: supera o neoliberalismo e a globalização
- Consequência: enorme concentração da renda e da riqueza (no mundo e no Brasil) afeta principalmente as classes médias, cujo padrão de vida vem piorando. (Mas elas culpam os programas sociais do Estado para quem está na pobreza extrema).
Estimativas para o mundo (Brasil tem aproximadamente as mesmas proporções):
As pessoas super-ricas e ricas (1% ao todo) definem o rumo da economia e da política. Sendo donos das redes digitais, os super-ricos têm nelas também sua fonte de poder: dirigir corações e mentes da população > oligarcas que mandam no mundo.
750 milhões de pessoas (10%) atuam na produção (de rapina ou de transformação), comércio, ou prestam serviços políticos, jurídicos e culturais: empresários, políticos, magistrados, militares, artistas e influenciadores que definem o pensamento e o estilo de vida a ser seguido (imitado): formam o conjunto social dominante – “normal”. Talvez aqui se incluam também os chefes de organizações criminosas.
Conjunto dominado: 7 bilhões de pessoas alocadas no processo produtivo pelo trabalho legal ou precário, subemprego, agricultura familiar, ou na economia informal cujo sonho é ganhar dinheiro (jogos de aposta) para escapar de ser “massa sobrante” no mundo. São a base do sistema, mas “não contam”.
Nas margens desse sistema, estão os componentes de povos originários e outros não integrados no mercado vivendo em seus territórios. (Voltarei a eles no final).
Fato novo: a oligarquia destrói a democracia > Neofascismo!
Promessa iluminista de progresso se esfumou. Solidariedade (de classe, vizinhança e família) se esgarça e a pessoa é objeto do mercado de trabalho, sentindo-se enganada pelo “sistema que está aí” > faz sucesso quem promete restaurar os “bons tempos” de ordem e progresso > nova forma de fascismo: adversário é inimigo. Quem não se enquadra naquela ordem torna-se alvo de perseguição. (Fascismo clássico: judeus, comunistas, ciganos e opositores políticos. Neofascismo: migrantes pobres e quem se opõe à ordem estabelecida: comunistas, feministas, gente LGBTQIA+ e os supostos inimigos de Deus, da Pátria e da Família). O governo Trump polariza hoje o neofascismo, mas não existe uma central neofascista mundial: cada grupo é autônomo no combate aos inimigos.
O resultado é a vitória mundial da violência, da qual o massacre de Gaza é o símbolo maior, mas não único. Lembrar o feminicídio, as matanças na periferia a pretexto de combate à droga, a pedofilia, o abandono das populações empobrecidas à própria sorte. Enfim, o massacre sem pudor de quem “não conta”. Aqui reside o núcleo das trevas do nosso tempo, só parecidas com as conquistas coloniais, a escravidão e a caça às bruxas na transição para a Era Moderna e no século XX os campos de concentração, a expulsão de populações e as bombas em Hiroshima e Nagasaki.
Brasil
A maré neofascista começa a subir aqui em 2015-16, trazida pelas redes digitais e logo avança sobre a mídia corporativa. Apesar do fracasso do governo Bolsonaro, mantém sua força e avança no campo religioso (evangélico e católico), policial, militar, político (Congresso, governo estaduais e municipais), cultural, educacional. Encontra resistências importantes (governo Lula, Judiciário, universidades, redes alternativas, as manifestações do 21 de setembro) mas isso não basta para impedir seu êxito eleitoral em 2026. Daí a importância da luta democrática e antifascista.
Neste cenário mundial e nacional somos provocados a buscar uma fonte de luz capaz de romper as trevas, sem deixar de lado o combate ao neofascismo. Temos que conciliar o que é urgente – a luta antifascista pela democracia – com o que é indispensável: encontrar uma fonte de luz capaz de superar as trevas do modo de produção capitalista!
4. Luz para o mundo
Pouco espero das religiões nessa Era de Trevas, embora elas sejam portadoras de promessas de vida. No caso da Igreja católica, constato que após o pontificado de Francisco ela pouco olha a realidade histórica porque se atém aos calendários litúrgicos e santoral, voltados para o mundo celestial. Quando fala da realidade vivida, restringe-se ao âmbito da vida doméstica. As importantes inovações do Concílio Vaticano II, hoje esquecidas pela maioria do clero, sobrevivem, mas na periferia eclesiástica e nos espaços ecumênicos ou macroecumênicos, onde começam a ganhar novas formas. Elas não têm força suficiente para dissipar as trevas atuais, mas teimam em afirmar que outro mundo é possível. Entre esses resistentes estamos nós, no Movimento Fé e Política…
Buscar novas fontes de luz
Precisamos olhar com atenção o que está nas periferias do mundo capitalista, espaços de quem “não conta”. Ali há grupos que resistem à ordem mundial e lutam pela construção de outra ordem socioeconômica: são os grupos cujas relações econômicas e políticas são regidas pelo sistema da dádiva: dar – receber – retribuir, que fundamentam as relações de comunidade. Elas estão no polo oposto ao sistema da dívidaque rege as modernas sociedades de mercado: relações de compra e venda determinadas pelos preços das mercadorias.[2]
O sistema da dádiva é o princípio implícito na economia das comunidades tradicionais, bem como da economia doméstica: dentro de casa, não se vendem os bens necessários aos membros da família. Pode-se dizer que está na base das relações de solidariedade, porque a assimetria entre o que é recebido e o que é retribuído só pode ser moralmente preenchida por um laço de solidariedade, que se amplifica nas relações de comunidade. Daí o ideal ético das sociedades de tipo comunitário/comunista: “de cada pessoa conforme sua capacidade, a cada pessoa conforme sua necessidade”. Aqui reside sua diferença com as relações de compra e venda, necessariamente simétricas: o preço da venda tem que ser o mesmo da compra, e quem pagar leva a mercadoria.
Nossa dificuldade para resgatar o sistema da dádiva é que ele só se encontra em comunidades de pouca amplitude (como as aldeias tribais e camponesas). A utopia comunista/comunitária reside em aplicá-lo a grandes coletividades, inclusive a grande comunidade planetária (a espécie humana, outras espécies, e a própria Terra). O desafio do nosso tempo é encontrar pistas para a solução desse problema. Onde buscá-la? Nas periferias, onde quem “não conta” para o sistema de mercado vive baseado em relações de solidariedade próprias de comunidades ditas tradicionais.
Penso em povos andinos que resgataram o ideal do Sumak Kausay em oposição ao capitalismo neoliberal e propõem uma ordem social, econômica e política que se relaciona com os espíritos das Montanhas (Pachamama). Penso também na proposta Maia dos Caracóis, em Chiapas; na Terra sem males dos Guarani; no Umbutu africano… Mas penso também na Tradição cristã que proclama a Fé numa sociedade onde “Justiça e Paz se abracem”: o Reino de Deus anunciado nas primeiras comunidades, na pregação de Antônio Conselheiro, e em outros movimentos ditos “messiânicos”.
Olhemos com carinho o que está sendo feito nas periferias, porque suspeito que ali encontraremos as lamparinas que vão dissipar as trevas geradas pelo modo de produção capitalista.
Juiz de Fora, 25 de setembro de 2025