É preciso libertar as bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Por padre Marcelo Barros

Neste IV Domingo comum, dia 29/01/2023, o evangelho proposto pelo lecionário ecumênico é Mateus 5, 1 – 12, ou seja, o início do sermão da montanha.
O evangelho de Mateus se organiza a partir de cinco grandes discursos de Jesus. Este que Jesus teria feito na montanha da Galileia é o primeiro. Na cultura de Jesus, a montanha é um local sagrado e simboliza a proximidade com o Divino. Até hoje, nas culturas de muitos povos originários, a montanha é local da manifestação divina. Em Pernambuco, o povo Xucuru considera a Serra do Ororubá como montanha sagrada. Na cordilheira dos Andes, os povos Quétchua e Aymara consideram os picos gelados (Apus) como pedras de cura. Para muitos povos originários, as montanhas são sagradas e nelas se fazem as cerimônias a Pachamama.
Para o evangelho de Mateus, a montanha da Galileia lembra o monte Sinai, a montanha da aliança. O evangelho mostra Jesus subindo a montanha como novo Moisés. Ali, ele proclama, não uma lei nova, mas a aliança de Deus com as pessoas pobres, aflitas, humildes e as que sofrem pela justiça. Para Mateus, a proclamação do reinado divino no mundo começa pela proclamação das chamadas “bem-aventuranças”.
Na montanha, Jesus revela que a aliança de Deus é com a humanidade. Não é mais apenas com um povo ou um grupo ou uma religião. É compromisso divino de que as pessoas pobres, sofredoras e desprezadas pelo mundo possam ser reconhecidas como felizes ou abençoadas de Deus. Até então, a tendência seria pensar que os ricos são ricos porque Deus os abençoa e os pobres são pobres porque Deus não olha para eles. Até hoje, há bancos que colocam na parede: Nós acreditamos em Deus. Subtende-se: por isso, ficamos ricos. Há quem coloque no vidro do carro: esse foi Jesus que me deu. E fazem isso como se fosse sinal de amor a Jesus ou devoção. Se é o Jesus dos evangelhos, ele só pode ficar irritado e ofendido com esse insulto. Ele diria hoje ao proprietário do carro ou do banco, o mesmo que disse ao homem ambicioso que lhe pediu para intermediar com o seu irmão sobre a herança. Jesus disse: “Quem me constituiu juiz dos negócios de vocês?” (Lc 12, 14).
O evangelho de hoje diz o contrário de uma bênção divina, como fazem padres e pastores que abençoam carros particulares e sedes de banco. Jesus proclama como bem-aventuradas as pessoas que são pobres, as que choram, as que são pessoas pacíficas e as que sofrem perseguições por causa da justiça. Não porque Deus quer que elas sofram, mas porque se Deus é Deus e por isso, elas vão deixar de sofrer. O reinado divino vai se manifestar para reinverter a realidade do mundo.
A sociedade antiga era toda baseada na honra. Em uma sociedade na qual a honra estava em lutar e em se impor às outras, geralmente, as pessoas pobres, aflitas e que amavam a paz e não a guerra eram consideradas sem honra. Jesus quer reverter isso. Reconhecer alguém como bem-aventurado significava afirmar que Deus dá a sua honra a essa pessoa Ao proclamar como bem-aventuradas as pessoas pobres, aflitas e que sofrem pela justiça, Jesus revela por quem Deus tem preferência. E é importante sempre deixar claro: as pessoas pobres são bem-aventuradas, não porque Deus gosta de que elas sejam pobres e sim porque vão deixar de ser pobres. O reinado divino vai realizar o que já cantava o cântico de Maria: “Deus derruba os poderosos de seus tronos e eleva os pequenos. Enche de bens as pessoas famintas e deixa os ricos sem nada”.
Algumas traduções da Bíblia traduzem bem-aventurados por felizes. Mas, isso pode ser redutivo no sentido de que ser feliz é um estado emocional. É condição psicológica. As bem-aventuranças são situações de vida. Vão além das emoções. Incluem as emoções, mas vão além. São posturas e comportamentos que manifestam a preferência de Deus por categorias humanas que a sociedade desprezou ou, pela injustiça social e política, fere e humilha.
Hoje e em todos os tempos, essa palavra de Jesus questiona e interpela, primeiramente, porque vai contra a lógica e o pensamento do mundo. Ninguém pode negar que, no mundo, as pessoas felizes e bem consideradas não são as que são pobres, as que sofrem e as que vivem famintas pela justiça. São as que conseguem como diz o mundo: vencer na vida. Serem economicamente autônomas, terem o que quiserem e alcançarem certo poder e certo saber. Na nossa sociedade, quando se fala em “realização pessoal”, todos sabemos o que isso implica e como todo mundo se prepara e se esforça para “crescer na vida”.
Que sentido, então, proclamar as bem-aventuranças de Jesus, se mesmo nós que nos dizemos discípulos e discípulas dele, pensamos de modo contrário? Diariamente, a experiência da vida e do mundo parece nos dizer que a proposta de Jesus não é real.
Às vezes, deveríamos ter coragem de dizer a Jesus: nos desculpe, mas não adianta você ter proclamado essas bem-aventuranças, porque as nossas bem-aventuranças são opostas as que você pregou. Nossas Igrejas e grupos cristãos, ligados à teologia da prosperidade pensam que bem-aventuradas são as pessoas ricas. Bem-aventurado seria quem tem poder e sabe se impor.
Jesus teria se enganado ao proclamar bem-aventurado quem é pacífico e quem constrói a paz. No Brasil, ainda há muitos crentes e pastores, tanto pentecostais, como evangélicos e católicos (até bispos e cardeais) que proclamam bem-aventurado quem propõe às pessoas se armarem e quem prega um Deus do ódio, da violência e fonte de discriminações.
Este fenômeno que parece novo, mas não o é. Desde séculos antigos, a Igreja aderiu a impérios conquistadores. Reduziu as bem-aventuranças aos muros dos claustros. Desde o século IV, monges e monjas entravam em mosteiros ou conventos para viverem o espírito das bem-aventuranças, como se se tratasse de ascese e de métodos de espiritualidade religiosa. Em sua história, a Igreja Católica proclamou como santos e santas a seus próprios papas, bispos, padres e freiras. Desde a Idade Média, os papas se autocanonizam. Recentemente, o papa canonizou também alguns leigos e leigas piedosos. E quem gosta de canonizações nem se dá conta de que, desse modo, a Igreja parece reduzir as próprias bem-aventuranças de Jesus a virtudes religiosas. Dividem as pessoas em crentes e não crentes e propõem a santidade como se essa consistisse em valores morais e não na graça de Deus dada a toda a humanidade, cristã ou não.
Hoje, mais do que nunca, é preciso libertar as bem-aventuranças do Evangelho dessas prisões institucionais e reconhecer que elas acontecem no mundo como ação do Espírito nas lutas dos povos por sua liberdade, na resistência dos povos originários e das comunidades negras, na dignidade dos/das pobres e de todas as pessoas que vivem a fome e a sede de justiça.
Jesus proclamou as bem-aventuranças baseado em textos bíblicos que já diziam que as pessoas consideradas sem importância (que a Bíblia chama de “pequenos”) possuirão a terra (Salmo 37), as comunidades pobres receberão o reino (Is 61), as pessoas aflitas serão consoladas (Is 65) e assim por diante.
Literatura mais ou menos semelhante encontraremos em outras escrituras sagradas, vindas da sabedoria ancestral da humanidade. Na história, no decorrer dos séculos vimos pessoas que viveram algumas dessas bem-aventuranças, sejam pessoas ligadas a tradições religiosas, como místicos budistas, hindus e islâmicos ou xamãs da América Latina, mas também pessoas que deram a sua vida pelo povo, mesmo sem nenhuma vinculação com a fé. No século XX, tivemos testemunhas das bem-aventuranças como o Mahatma Gandhi, Nelson Mandela e certamente poderemos colocar como pessoas bem-aventuradas mártires como Marielle Franco, Chico Mendes, a irmã Dorothy Stang e tantas outras pessoas que nos confirmam que Jesus não se enganou e as bem-aventuranças do evangelho são essas mesmas que Jesus proclamou, como bem-aventuranças da vida.
Jean-Yves Leloup comenta as bem-aventuranças recordando que, no hebraico, o termo significaria ao pé da letra: Em caminho! Em marcha. Então, ao declarar como bem-aventuradas as pessoas pobres, humildes, famintas e que choram, Jesus diz a elas e a todos nós: Não estacionem. Não desanimem. Não parem. Mesmo na aflição e na carência, caminhem e vão em frente. Aos irmãos e irmãs que veem o clero e muitos grupos de Igreja pararem, ou mesmo andarem para trás, Jesus nos diz: Vocês não parem. Retomem a cada dia a caminhada de inserção da fé no meio do mundo dos empobrecidos. Vamos em frente.
“Felizes são os/as pobres com espírito
e quem comparte com os pobres os riscos e a esperança,
porque eles (e elas) têm o reino em suas vidas.
Contrariamente a toda propaganda
de produtos que dão felicidade,
felizes as pessoas aflitas,
porque sentirão em suas cruzes
a ternura de Deus que é Pai e Mãe.
Felizes as pessoas que sabem se vencer
na conquista da mansidão diária:
a Terra será delas.
Felizes quem é justo
e busca a justiça, a defende e a forja.
e sentem fome e sede da justiça do reino.
o Reino saciará sua utopia.
Felizes as pessoas que têm misericórdia
e não deixam passar um sofrimento
sem achegar-se dele e nele derramar-se no óleo e no vinho:
eles/as encontrarão misericórdia.
Felizes os/as que trazem um coração sincero
e limpo o seu olhar:
mesmo na noite escura, verão a Deus.
Filhos e filhas do Deus da Paz,
irmãos e irmãs daquele que é a nossa Paz,
felizes os/as que lutam em paz e pela Paz,
construtores da estranha Paz do Reino:
deles e delas é o Shalom, o Axé, a Paz.
Felizes sois todos/as os/as perseguidos/as por causa da justiça; nas lutas pela terra do campo e da cidade,
nas lutas do trabalho, nas lutas pela vida.
Felizes vós, profetas, malditos do sistema,
pichados pela ordem,
Jogados no escanteio do Templo e do pretório:
felizes, alegrai-vos, o Reino já é vosso!
Felizes são os Pobres,
os meus/minhas Pobres,
os/as herdeiros/as do Reino! (Pedro Casaldáliga)[1]
[1] – CASALDÁLIGA, Pedro: Orações da Caminhada. Campinas: Ed. Verus, 2005, pp. 26- 27.