Amor Solidário na Bíblia.

Amor Solidário na Bíblia.

Curitiba, PR, 30 de janeiro a 4 de fevereiro de 2012.

Frei Carlos Mesters, Carmelita

(Obs.: Esse artigo é o 5º de uma série de 10 artigos de frei Carlos Mesters que disponibilizaremos na internet, em www.gilvander.org.br , em breve.)

 

 

1

Amor solidário gera solidariedade

A história do Bom Samaritano

2

Amor solidário se radicaliza é na solidão

A história de Jeová, marxista ateu

3

Amor solidário, mesmo morrendo, renasce

A história de uma reforma que esqueceu o amor

4

Amor solidário se alimenta no amor maior de Deus

A história do amor expressa nos Salmos 146 e 119

5

Amor solidário irradia amor e gera testemunhos

A História de mulheres e homens de todos os tempos

6

Amor solidário se revela em Jesus, o filho de Maria

A história da encarnação das oito bem-aventuranças em Jesus

7

O Amor Solidário

é a maior poesia da humanidade

é a história do amor criador que realiza tudo que diz e canta

1 – Amor solidário gera solidariedade.

A História do Bom Samaritano.

O Texto da Parábola do Bom Samaritano.

Lucas 10,25-37

Um doutor em leis se levantou, e, para tentar Jesus perguntou: “Mestre, o que devo fazer para receber em herança a vida eterna?”  Jesus lhe disse: “O que é que está escrito na Lei? Como você lê?”  Ele então respondeu: “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente; e ao seu próximo como a si mesmo.”  Jesus lhe disse: “Você respondeu certo. Faça isso, e viverá!”  Mas o doutor em leis, querendo se justificar, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?”  Jesus respondeu:

“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo, e o espancaram. Depois foram embora, e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu, e passou adiante, pelo outro lado.  Mas um samaritano, que estava viajando, chegou perto dele, viu, e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele.  No dia seguinte, pegou duas moedas de prata, e as entregou ao dono da pensão, recomendando: ‘Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a mais’.”

E Jesus perguntou:  “Em sua opinião, qual dos três se tornou o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”  O doutor em leis respondeu: “Aquele que praticou misericórdia para com ele.” Então Jesus lhe disse: “Vá, e faça a mesma coisa.”

Toda vez que Jesus tem uma coisa importante para comunicar, ele conta uma história, uma parábola, para ajudar as pessoas a pensar na vida e descobrir dentro dela os apelos de Deus. Meditar uma parábola é como olhar num espelho para observar de perto nossa própria maneira de viver. Na Parábola do Bom Samaritano, Jesus procura levar o Doutor (e todos nós) a descobrir em que consiste o Amor Solidário.

Lucas 10,25-26: A pergunta do Doutor.

Um doutor, conhecedor da lei, quer provocar Jesus e pergun­ta: “O que devo fazer para herdar a vida eterna?” O doutor acha que deve fazer algo para poder herdar. Ele quer merecer e garantir sua herança. Mas uma herança não se merece. Herança, a gente a recebe, pelo fato de ser filho ou filha. Como filhos e filhas não podemos fazer nada para merecer a herança. Podemos é perdê-la! Isto sim! A atitude do Doutor não é a atitude de alguém que quer sair de si mesmo para os outros. Pois ele só pensa em si e na conquista da sua herança de vida eterna. Não é uma atitude de amor aos outros, mas de amor a si mesmo.

Lucas 10,27-28: A pergunta de Jesus e a resposta do doutor.

Jesus percebe a malícia do Doutor. Em vez de responder, faz nova pergunta: “O que diz a lei?” Ele quer que o próprio Doutor dê a resposta citando a Lei de Deus. O doutor responde corretamente. Juntando duas frases da Lei, ele diz: “Amar a Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e com todo o teu entendimento e ao próximo como a ti mesmo!” A frase vem do Deuteronômio (Dt 6,5) e do Levítico (Lv 19,18). Jesus confirma a resposta e tira a conclusão: “Você respondeu certo. Faça isso, e viverá!” (Lc 10,28). É como se dissesse: “Por que você pergunta uma coisa que já sabe? Quer viver sempre? Observe a lei, e pronto! Ame a Deus e ao próximo, e esqueça o resto!. O importante, o principal, é amar a Deus! Mas Deus vem até você no próximo. O próximo é a revelação de Deus para você. Ele é a porta para você chegar até Deus e viver sempre. Não há outra porta!”

Lucas 10,29: A nova perguntado Doutor.

Diante da resposta de Jesus, o Doutor entra na defensiva e pergunta: “Quem é o meu próximo?” (Lc 10,29). Nesta pergunta transparece a malícia. O Doutor conhece a lei, mas ele interpreta-a diferentemente de Jesus. Para o Doutor e seus colegas, se a lei manda amar o próximo, então a pessoa deve amar só o próximo, os outros, não! Ajudar alguém que não é próximo seria perder tempo, pois para alcançar a herança da vida eterna basta amar o próximo. Ele quer saber: “Em que próximo Deus vem até mim?” Ou seja, qual é a pessoa humana próxima de mim que é revelação de Deus para mim? Para os judeus, a expressão próximo estava ligada ao clã. Quem não era do clã, não era próximo (cf. Dt 15,2-3). A proximidade era baseada nos laços de raça e de sangue. No fundo, o Doutor e seus colegas não estavam interessados em amar o próximo. Eles estavam interessados só em si mesmos, em garantir para si a herança da vida eterna. O amor ao próximo era apenas um meio para chegar ao céu. Porém, vendo como Jesus vivia e ensinava, o Doutor deve ter percebido que Jesus tinha outra idéia de “próximo”. Por isso perguntou: “Quem é o meu próximo?” De fato, Jesus tinha um modo bem diferente de ver o próximo, e ele o expôs de maneira bem clara na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,30-35).

Lucas 10,30-35: A Parábola

Lucas 10,30: O assalto na estrada de Jerusalém para Jericó.

Entre Jerusalém e Jericó encontra-se o deserto de Judá, refúgio de marginais e assaltantes. Jesus conta um caso real que deve ter acontecido muitas vezes. “Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu na mão de assaltantes, que lhe arrancaram tudo, e o espancaram. Depois foram embora, e o deixaram quase morto”. O mesmo acontece hoje inúmeras vezes e de muitas maneiras.

Lucas 10,31-32: Passa um sacerdote e passa um levita.

São funcionários do Templo, gente da religião oficial. Os dois viram o assaltado, mas passaram adiante “pelo outro lado”. Não fizeram nada. Por que não fizeram nada? Jesus não o diz. Ele deixa você supor ou se identificar. Deve ter acontecido muitas vezes, tanto no tempo de Jesus como no tempo de Lucas e no nosso tempo, uma pessoa de igreja passar perto de um pobre sem dar-lhe ajuda. Pode até ser que os dois tenham tido a justificativa: “Ele não é meu próximo!” ou: “Ele está impuro e, se eu tocar nele, ficarei impuro também!” Ou: “Se é castigo de Deus para ele, como é que eu me atrevo a ajudá-lo?” Ou ainda: “Se eu ajudar, perco a missa do domingo e faço pecado mortal!” Ou ainda: “Como vou ajudar um “sem terra” que é ‘invasor de terras’? Como vou ajudar o desempregado, se ele é um preguiçoso? Como vou apoiar um homossexual, se ele é imoral? Como …. ?”

Lucas 10,33-35: Passa um samaritano.

Chega um samaritano que está “em viagem”. Ele vê, move-se de compaixão, aproxima-se, cuida das chagas, coloca o homem no seu próprio animal, leva-o até a pensão, cuida dele durante a noite e, no dia seguinte, dá ao dono da pensão duas moedas de prata, o salário de dois dias, dizendo: “Cuida dele e o que gastares a mais no meu regresso te pago!” É uma ação concreta, eficiente e eficaz. Ação progressiva: chegar, ver, mover-se de compaixão, aproximar-se, partir para a ação e envolver outra pessoa na dinâmica da solidariedade e da misericórdia. Este é o ideal do Amor solidário! O samaritano irradia solidariedade e leva os outros a comprometer-se com a mesma causa. De fato, ele conseguiu com que o próprio dono da pensão assumisse gratuitamente a causa da ajuda ao assaltado. Gratuitamente, sim! Pois, o dono da pensão não pediu dinheiro. Foi o samaritano que o ofereceu espontaneamente. É partilha de quem assume o outro como irmão, como parceiro na mesma causa.

Lucas 10,36-37: A pergunta final.

No início, o doutor tinha perguntado: “Quem é o meu próximo?” Por de trás da pergunta estava sua preocupação em saber: “A quem Deus me manda amar, para que eu possa herdar (merecer) a vida eterna e ter minha consciência em paz por ter feito tudo aquilo que Deus pede de mim!” Agora, no fim, depois de ter contado a parábola do samaritano, Jesus vem com outra pergunta: “Na sua opinião, quem dos três se tornou o próximo do homem assaltado?” A contragosto o Doutor responde: “Aquele que praticou misericórdia com ele”. De tanto desprezo que ele tinha pelo samaritano, nem disse o nome dele. E Jesus completa: “Vá e faça você a mesma coisa!” A condição de próximo não depende da raça, do parentesco, da simpatia, da vizinhança ou da religião. A humanidade não está dividida em próximos e não-próximos. Para você saber quem é o seu próximo, é só você se aproximar, mover-se de compaixão, e envolver outras pessoas na ação solidária da misericórdia. Se você se aproximar, o outro será o seu próximo. Depende de você e não do outro! Quem deve estar no centro das suas preocupações não é o seu ego com a sua vontade de herdar a vida eterna, mas sim o bem da pessoa do outro que sofre e precisa do seu amor. O caminho para a vida eterna passa pelo próximo. Não há outro caminho. Vá, faça isso e você terá a vida garantida para sempre!”Jesus inverteu tudo.

2.  Amor solidário se radicaliza é na solidão. A história de Jeová, marxista ateu.

Jeová, nascido em Goiás, se dizia marxista ateu. Tinha uma consciência muito forte de solidariedade e de compromisso. Nos anos sessenta, na época da ditadura, diante da situação de abandono e de exploração do povo, ele entrou num grupo de guerrilha. No fim dos anos sessenta, foi preso e barbaramente torturado. Mas durante a tortura, pendurado no pau de arara, ele dava risada na cara dos torturadores e dizia: “Vocês são muito fracos! É só assim que vocês pensam chegar a descobrir a verdade!” De tanta raiva, os torturadores quebraram as duas pernas e um braço de Jeová.

Nesta situação ele se encontrava na mesma cela com o padre Marcelo Carvalheira, que mais tarde ficou bispo de Guarabira e arcebispo de João Pessoa. Marcelo dizia para ele: “Mas Jeová, por que você foi dizer essas coisas aos soldados. Eles podiam ter matado você!” Jeová respondia: “Mas Marcelo, o sentido da vida da gente não é para viver para os outros? Não é isto que vocês ensinam? A vida não é lutar pela justiça e a verdade?”

Num domingo, padre Marcelo teve licença para celebrar a missa para os presos políticos. Um altar improvisado foi colocado no corredor. Jeová também pôde sair. Ficou perto do altar, não podia fugir mesmo com suas pernas engessadas. A missa foi seguindo o seu ritmo normal com muitas leituras, comentários e preces, que os presos políticos gritavam uns para os outros  através das grades de suas celas.

Quando chegou a hora da Comunhão, Jeová disse baixinho para Marcelo: “Eu também quero!” Marcelo contou que teve que fazer um raciocínio teológico rápido, pois Jeová lhe tinha dito que era marxista ateu. Marcelo se perguntava: “Será que posso dar a comunhão a ele que diz não ter fé?” Aí Marcelo lembrou a frase de Jesus: “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão!” Ele tirou a conclusão: “Pode, Sim!” E deu a comunhão para Jeová.

Depois que recebeu a comunhão, Jeová entrou num silêncio profundo. Recolheu-se para dentro de si numa estranha solidão. Ficou assim um tempão. Parecia esquecer-se de tudo. De volta na cela, continuou no seu silêncio. Depois de um certo tempo, ele disse para Marcelo: “Isso foi bom! Muito bom! Tem que repetir!” Foi a primeira vez que Jeová se deu conta da presença de Jesus em sua vida. Experimentou de perto, na própria pele, como Jesus foi torturado na cruz e chegou a entregar sua vida pelos irmãos, inclusive por ele, Jeová! Sentiu-se próximo de Jesus, identificado com a sua causa em defesa dos pequenos e com a sua luta pela justiça contra a prepotência que explora o povo. Foi uma revolução interior. “Marcelo! Tem que repetir. Isso foi bom! Muito bom!”

A celebração da memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus fez com que Jeová descobrisse um sentido mais profundo para a sua solidariedade. De repente, aquele breve momento de solidão abriu uma dimensão mais universal para a sua solidariedade e levou Jeová até à raiz mais profunda do amor solidário. Radicalizou-se!

Mais tarde, por ocasião do seqüestro do embaixador americano, Jeová foi um dos que foram libertados como exigência para que o embaixador fosse solto. Jeová foi deportado para o exterior. Tempos depois, ele voltou clandestino para o Brasil e continuou sua atividade de conscientização e de resistência contra a ditadura. Certo dia, num campo de futebol em Formosa de Goiás, Jeová foi descoberto e abatido a tiros pela polícia militar. A palavra de Jesus ilumina para nós a vida de Jeová: “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque dele é o Reino do céu” (Mt 5,10).

3 – Amor solidário, mesmo morrendo, renasce. A história de uma reforma que esqueceu o amor

“Com amor eterno eu te amei. Dei a minha vida por amor!” Esta frase do nosso canto vem do livro do profeta Jeremias. Ela representa o início de uma curva importante na história do Povo de Deus. Através do profeta Deus dizia ao povo: “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). Esta insistência no amor aconteceu numa época em que tudo estava desintegrando. Nabucodonosor, rei da Babilônia, já tinha feito uma primeira invasão contra Jerusalém em 598 aC. Já tinha levado muita gente para o cativeiro (2Reis 24,10-17). Dentro da visão teológica oficial daquela época, não havia mais horizonte, estava tudo perdido. Nós perguntamos: Como e por que estava tudo perdido? E o que significa esta insistência no amor eterno?

Nas entrelinhas da frase de Jeremias, a gente sente e adivinha o seguinte. É como se Deus, o namorado, dissesse ao povo, sua namorada: “Depois de tudo que fez você já não mereceria ser amada. Mas meu amor por você não depende do que você fez por mim ou contra mim. Quando comecei a amar você, eu o fiz com um amor eterno. Por isso, apesar de tudo que você me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de você, eu amo você para sempre! Pode confiar! “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). E a gente pergunta: “Então, o que houve para Deus falar assim? Qual foi a quebra que houve? E em que consiste esse amor eterno de Deus?

Na raiz de tudo está a Aliança que Deus fez com o povo depois da saída do Egito. Libertando o povo, Deus lhe revelou seu amor e conquistou um título de propriedade. É como se dissesse: “Agora você é meu!” (Is 43,1). Fez uma aliança, uma espécie de contrato: “Agora, vocês são o meu povo e eu sou o Deus de vocês” (cf. Ex 19,4-6; 24,8). O sinal que os unia era a aliança que selaram ao pé do Monte Sinai. Deus, para expressar seu amor, libertou o povo da injustiça e da opressão do Faraó e lhe indicou um caminho seguro para continuar a viver na liberdade e na justiça. Este caminho são os Dez Mandamentos. E o povo para expressar seu amor a Deus, comprometeu-se solenemente a observar os Dez Mandamentos e, assim, manter-se dentro do rumo da justiça e da liberdade (Ex 24,1-8).

Com outras palavras, na raiz de tudo está o amor gratuito de Deus, a livre escolha que Ele fez de amar sempre o seu povo, e está a resposta agradecida e amorosa do povo que se comprometeu a observar a Lei de Deus. Amor mútuo! A palavra amor em hebraico é hêsed. A tradução mais correta é “amor fiel”. Amor fiel da parte de Deus para com o povo, e amor fiel da parte do povo para com Deus. É a expressão do compromisso mútuo que os dois assumiram de fidelidade à Aliança. O resultado desta aliança de amor, fruto da observância da Lei de Deus, seria a convivência fraterna de partilha e de bem-estar numa harmonia total das pessoas entre si, com Deus e com a natureza. Numa palavra, seria vida em plenitude (Jo 10,10). Assim deveria ser. Assim seria o ideal.

Na realidade, o povo não foi fiel em observar as cláusulas da Aliança. Os Reis manipulavam a Aliança em favor dos seus próprios interesses. As conseqüências desta infidelidade progressiva foram aparecendo na desarrumação e desintegração da vida do povo. Apareceram o empobrecimento, a opressão e a desumanização. Tudo desandou e em 722 aC, como resultado desta desintegração, aconteceu a queda do Reino do Norte (Israel). O Estado de Israel e a sua capital Samaria foram destruídas pelos assírios e seu  povo foi levado para o cativeiro.

A destruição de Israel no Norte foi um aviso ameaçador para o povo de Judá no Sul: ou mudamos de vida, ou teremos o mesmo destino! Resolveram mudar de vida e proclamaram uma  grande reforma. Foi a assim chamada Reforma Deuteronomista. Iniciada pelo rei Ezequias e assumida com força pelo rei Josias, esta reforma obrigava o povo a voltar à observância da Lei. O acento caía na observância, na responsa­bilidade do povo, e não no amor.

A insistência na observância era tão forte que se chegou a dizer ao povo: Agora vai depender só de vocês. Diante de vocês está a opção de escolher entre a vida ou a morte, entre a bênção e a maldição. Observando a Lei vocês terão a bênção e a vida. Transgredindo a Lei vocês atraem sobre si a maldição e a morte. O capítulo 28 de Deuteronômio enumera as bênçãos como fruto da observância fiel (Dt 28,1-14) e os males como fruto das transgressões e da infidelidade (Dt 28,15-68). Coisas terríveis e castigos inacreditáveis são enumerados para obrigar o povo a observar a lei e, assim, evitar o desastre da desintegração, igual ao que aconteceu à Israel. Prevaleceu o medo do castigo sobre a vontade de servir por amor.

Apesar de tudo isto, a reforma não teve êxito. Apesar de todos os avisos, eles não deram conta de observar a lei. Com a morte de Josias em 609 aC. morreu também a reforma. Onze anos depois, em 598 aC Nabucodonosor veio uma primeira vez. Outros onze anos depois, em 587 aC, na segunda vinda de Nabucodonosor, tudo foi destruído, tudo! O templo, o rei, a terra, os palácios, o povo, os sacerdotes. Tudo que tinha sido sinal da presença de Deus desapareceu.

Quem semeia vento, colhe tempestade, diz o povo. Olhando esta situação terrível de destruição e de abandono, o povo concluiu: colhemos o que plantamos; não adianta chorar leite derramado. Abrimos as comportas e a água invadiu e destruiu tudo. Nós quebramos o contrato da aliança com Deus, e sobre nós caíram as maldições previstas no contrato (cf. Dt 28,15-68). Nós rompemos com Deus, e ele rompeu conosco. Acabou. Foi uma história bonita de 1300 anos, desde Abraão e Sara, mas agora terminou. Copo quebrado em mil pedaços não tem conserto! Fim de linha.

Esta situação de desespero e de desencanto está expressa, com todas as letras, na 3ª Lamentação. (Lam 3,1-18). Olhando assim a história, realmente, a conclusão lógica era esta: “Acabou-se minha esperança que vinha de Javé” (Lam 3,17-18). A reforma deuteronomista, feita de cima para baixo e baseada só na observância, falhou e matou a esperança na alma do povo. Este sentimento de fracasso jogou o povo no mais fundo do poço do desespero. Muita gente pulou fora do barco.

Ora, foi aí, nesta situação escura sem horizonte, que os profetas desenterraram a raiz do amor fiel, do amor solidário de Deus. Diz a mesma Lamentação: “No fundo da memória tenho alguma coisa que me faz ter esperança!” (Lam 3,21). É neste ambiente de desespero que aparece a frase de Jeremias como o início de uma curva importante na história do Povo de Deus: “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3). E esta outra afirmação de Isaías: “Num ímpeto de ira, por um momento eu escondi de você o meu rosto; mas agora, com amor eterno, volto a me compadecer de você, diz Javé, seu redentor” (Is 54,8). Foram os profetas, sobretudo Jeremias, Oséias e Isaías, que souberam redescobrir esta dimensão do amor gratuito de Deus e da sua promessa muito anterior à observância (cf. Is 41,8-14; 49,15;Jr 31,31-37; Os 2,16). E ainda: “É bom esperar em silêncio a salvação de Javé. Embora castigue, ele se compadecerá com grande amor” (Lm 3,26.32).

Foi a lembrança do que Deus fez no passado que desenterrou do fundo da memória do povo a esperança renovada no amor gratuito de Deus. Foi aí no cativeiro, no mais fundo do fundo do poço, que recomeçou a releitura da história, não mais para provocar a observância da lei como tinha feito a reforma deuteronomista, mas para provocar no povo a certeza do amor maior de Deus que supera as falhas e dá esperança. Descobriram que a história não começou com a imposição de leis que pedem observância. Muito antes da lei eles tiveram a revelação do amor e da promessa de Deus que gera esperança e provoca a resposta de amor na observância dos Dez Mandamentos.

Foi neste mesmo ambiente do cativeiro, que o povo redescobriu sua missão como Povo de Deus: não mais para ser um povo glorioso, colocado acima dos outros povos, mas sim para ser um povo servo, Servo Sofredor, cuja missão é revelar o amor de Deus, irradiar a bondade de Deus, difundir a justiça, não desanimar nunca e, assim, ser a Luz das Nações (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12).

Nasce aí uma nova experiência de amor de Deus que pode ser definido como o AMOR SOLIDÁRIO DE DEUS para com seu povo. Foi a fé no amor solidário de Deus que fez o povo renascer e ter esperança e que, como reflexo, produziu no povo atitudes e gestos de amor solidário. Renasce a aliança, a experiência do amor mútuo. É o que está acontecendo hoje nas Comunidades Eclesiais de Base e aqui no Mosteiro do Servo Sofredor.

É sob este aspecto do amor solidário de Deus para com o seu povo que eles agora vão reler toda a história, desde Abraão até o tempo do cativeiro. É sob este aspecto da promessa e da esperança, nascidas da experiência do amor solidário de Deus, que vai ser articulada a redação final do Antigo Testamento. O recado final, confirmado mais parte por Jesus, era este: Nós podemos romper com Deus. Somos fracos. Ele, Deus, nunca rompe conosco. Seu amor é eterno, nos dá esperança e coragem para voltar. É o que está acontecendo aqui no Mosteiro.

É nesta perspectiva da fé, da esperança e do amor que devem ser lidas, relidas e meditadas as histórias da criação, do paraíso, da aliança com Noé, da chamada de Abraão, da caminhada de Abraão, da libertação da opressão do Egito e da conclusão da Aliança com o compromisso da observância dos Dez mandamentos. Agora, eles observam a Lei não para merecer nem para escapar do medo do castigo, mas para expressar a gratidão e o amor que a ação de Deus despertou no povo. Quem procura viver e conviver na intimidade deste Deus, necessariamente vai irradiar os gestos do amor solidário deste Deus. Como dizia Jesus: Quem vê a mim, vê o Pai. É o que veremos na história do amor expressa nos salmos 146 e 119.

4 – Amor solidário se alimenta no amor maior de Deus. A história do amor expressa nos Salmos 146 e 119

O Salmo 145

A vivência do amor solidário se alimenta no amor maior e eterno do próprio Deus. Um retrato falado da história deste amor solidário de Deus está no salmo 146;  retrato que foi confirmado por Jesus.

O Salmo 146(145) convida a gente para louvar e agradecer a bondade de Deus. O salmista imagina o amor solidário de Deus a partir da bondade que ele via acontecer nas pessoas. As oito bem-aventuranças de Deus, que aparecem neste salmo, eram como os oito aspectos do amor solidário que via acontecer nas pessoas. Pois Deus, ele mesmo, não pode ser visto. “Nunca ninguém viu a Deus”, diz São João (1Jo 4,12), nem é possível vê-lo (Êx 33,10.23). “Ele habita uma luz inacessível” (1Tim 6,16). Mas, se nós somos a imagem de Deus, então a bondade de Deus deve ser como a bondade que aparece na vida de tanta gente boa no mundo inteiro. A bondade das pessoas em querer amar ajudar os outros e amá-los é um dom que Deus colocou no coração humano. É algo do próprio Deus, pois Deus, assim diz a Bíblia, “nos fez à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26). O salmista fez o retrato do amor solidário de Deus do jeito que ele via acontecer nas pessoas que procuravam ter amor solidário com o próximo. É retrato falado de Deus. É auto-retrato nosso.

Olhando no espelho do salmo 146 e vendo nele nossa própria imagem, olhamos para Deus e descobrimos como Ele vive e pratica as oito bem-aventuranças do amor solidário. Eis o texto do salmo 146:

RETRATO FALADO DEUS

Confirmado por Jesus

Aleluia! Louve a Javé, ó minha alma!

Vou louvar a Javé, enquanto eu viver.

Vou tocar ao meu Deus, enquanto existir!

Não coloquem a segurança nos poderosos,

num homem que não pode salvar!

Exalam o espírito e voltam ao pó,

e no mesmo dia perecem seus planos!

Feliz quem se apóia no Deus de Jacó,

quem coloca sua esperança em Javé seu Deus.

Foi ele quem fez o céu e a terra,

o mar e tudo o que nele existe.

Ele mantém sua fidelidade para sempre,

faz justiça aos oprimidos,

dá pão aos famintos.

liberta os prisioneiros.

abre os olhos dos cegos.

endireita os encurvados.

ama os justos.

protege os estrangeiros,

sustenta o órfão e a viúva,

mas transtorna o caminho dos injustos.

Javé reina para sempre.

O teu Deus, ó Sião, reina de geração em geração!

Aleluia!

Nos versículos grifados (Sl 146,6b a 9), temos as oito bem-aventuranças do Antigo Testamento que descrevem como o salmista imaginava o amor solidário de Deus para conosco. Deus (1) faz justiça aos oprimidos, (2) dá pão aos famintos, (3) liberta os prisioneiros, (4) abre os olhos dos cegos, (5) endireita os encurvados, (6) ama os justos, (7) protege os estrangeiros, (8) sustenta o órfão e a viúva. Temos aqui o retrato falado do Amor Solidário de Deus. É por meio deste amor que Deus “transtorna o caminho dos injustos”.

Como manter em nós a experiência viva do Amor Solidário de Deus e não cair no legalismo da observância da lei que, no passado, jogou o povo no desespero? Como entender a Lei de Deus? O Salmo 119 é uma resposta bonita a esta pergunta tão atual.

O Salmo 119

Vimos que a insistência exagerada na observância da Lei de Deus pode levar ao esquecimento e à morte do amor e fazer com que as pessoas se desintegrem num desespero sem horizonte, ameaçados e condenados por um Deus severo que só olha a lei e a sua observância. As pessoas obedecem por medo e não por amor. Vimos como isto aconteceu na história da reforma que esqueceu o amor.

O Salmo 119(118) nos deixa perceber como eles faziam para impedir que a insistência na observância da lei matasse novamente o amor solidário e também nos faz entender qual era o ambiente em que nasceu aquela afirmação tão bonita de Jeremias: “Eu amei você com amor eterno; por isso conservei o meu amor por você” (Jr 31,3).

Salmo 119(118) é o salmo mais comprido da Bíblia. São 176 versículos, e em cada um destes 176 versículos o salmista usa 176 vezes a palavra LEI ou algum sinônimo. Ele medita, reflete, ama, vive, observa, procura, divulga, rumina, busca, sem parar, a Lei do Senhor. A gente se pergunta: Em que será que o salmista estava pensando quando usava e repetia a palavra “Lei do Senhor”? Qual a imagem ou idéia que ele se fazia da Lei? Será que é a mesma idéia da reforma deuteronomista? Lei que ameaça, condena e exclui? Será que é a mesma imagem que nós temos quando pensamos em Lei? A resposta a estas perguntas é dada pelo próprio salmo, de duas maneiras: de maneira direta e de maneira indireta.

A maneira direta. A maneira direta transparece nos sinônimos que ele usa para indicar a Lei do Senhor. Eis alguns dos sinônimos que aparecem nos 176 versículos: Testemunho, Norma, Caminho, Preceito, Estatuto, Mandamento, Palavra, Promessa, Maravilha, Amor, Direito, Bem, Fidelidade e outros. O que predomina nestes sinônimos não é a idéia de uma imposição autoritária e jurídica de um legislador anônimo, mas sim a preocupação de um amigo ou de um pai amoroso que quer indicar um rumo para seus amigos, seus filhos, sua filhas.

A maneira direta também transparece quando o salmo fala do objetivo que a observância da lei quer alcançar na vida das pessoas. Para o salmista, o objetivo é a felicidade, pois logo nos primeiros dois versículos ele exclama duas vezes em seguida: “Felizes! Felizes!” A meditação e a observância da Lei do Senhor são para ele o caminho para se atingir a felicidade; viver feliz, sentir-se bem diante de Deus, procurar Deus de todo o coração, encher-se de amor. A sua maneira de olhar a observância da lei não tem nada de ameaça ou de legalismo. Não provoca medo, mas sim vontade de amar.

A maneira indireta. À primeira vista, o salmista se apresenta como um apaixonado pela lei de Deus, pois dela fala do começo ao fim, em todos os versículos, 176 vezes! Mas o curioso é que ele nunca diz o que a lei pede. Nunca cita alguma norma ou decreto da lei. Nos primeiros três versículos ele afirma que quer falar sobre a Lei de Javé, mas já no versículo 4 ele muda o discurso e começa falar diretamente com Deus, o Autor da lei, e diz: “Tu promulgaste os teus preceitos para serem observados à risca” (Sl 119,4). E desde o versículo 4 até o fim, (com exceção talvez do versículo 115) ele não fala mais sobre a lei, mas fala diretamente com o próprio Autor da Lei, Deus. Assim, em vez de ser uma meditação sobre a Lei, o salmo se tornou uma conversa amorosa com Deus que nos deu a lei e que, até hoje, continua entregando-a a todos que o desejam. Em todos os versículos, de 4 até 176, o salmista fala na segunda pessoa do singular e se dirige ao TU de Deus. A paixão dele não é a lei. A paixão dele é o autor da lei, o próprio Deus, Javé, Ele mesmo! Eis umas afirmações do salmista que aparecem constantemente ao longo dos 176 versículos do salmo 119 e que confirmam esta paixão por Deus, o autor da Lei: “Minhas delícias são os teus mandamentos que eu amo tanto” (Sl 119,47). Veja também: Sl 119, 97.113.119.127.132.140.159.163.165.167. Em outro lugar ele afirma: “que teu amor seja a minha consolação conforme a promessa ao teu servo” (Sl 119,76) Veja também: Sl 119,64.124.149. Em outro lugar ele fala da vida plana que a Lei lhe comunica: “Tua promessa me traz vida” (Sl 119,50). Veja também: Sl 119, 25.37.40. 77. 93.116. Aqui sobra pouco espaço para o medo de castigo.

É aqui, neste amor pelo Autor da lei, que está também a chave principal para entendermos o sentido e o objetivo da Regra do Carmo quando ela pede para a gente “Meditar dia e noite na lei do Senhor”. O amor ao Autor da lei faz a gente olhar a lei com um olhar diferente e nos ajuda a entender como nós carmelitas devemos “Meditar dia e noite na Lei do Senhor”.

5 – Amor solidário irradia amor e gera testemunhos. A História de mulheres e homens de todos os tempos.

Foi a partir da fé no amor solidário de Deus, que nasceu o povo do Deus. Se o fruto é igual à sua semente, então os membros deste povo serão necessariamente uma revelação e um reflexo vivo deste amor solidário. Tal pai, tal filho! A cara do pai! Jesus dizia: “Quem vê a mim vê o Pai!” (Jo 14,9). “Assim como o Pai me amou, assim também eu amei vocês. Permaneçam no meu amor” (Jo 15,9). A Bíblia descreve as histórias dos membros do povo de Deus. São muitos! Uma multidão imensa. Homens e mulheres, velhos e crianças, rapazes e moças, casados e solteiros, santos e safados, grandes e pequenos, vindos de quase todas as raças e regiões da terra. A Bíblia é o álbum que traz o retrato deles.

O conjunto destas histórias narradas na Bíblia é como o panorama majestoso de uma serra bonita, vista de longe. Você admira os altos picos de muitos e variados tamanhos, destacados contra o fundo luminoso do céu. Chegando mais perto, os picos desaparecem da vista e você vê o chão, a base, que sustenta os picos e que você não enxergava de longe. Mas sem a base, os picos não existiriam.

O povo de Deus tem as suas figuras de destaque, seus picos: os grandes profetas, os santos, as santas, as lideranças que aparecem. Mas na raiz dos picos está a base. O chão da vida, que não tem destaque e não aparece de longe. Se Jeremias foi um grande profeta, é porque teve pai e mãe, teve uma comunidade, teve uma tradição que o gerou e sustentou. Jesus teve mãe e pai, teve parentes, família, teve comunidade.

Antes de falar dos picos e descrever os galhos bonitos das árvores, vamos lembrar a base, a raiz que não aparece, mas sem a qual não haveria árvore nem galho bonito. O amor solidário dos grandes profetas vem desta raiz escondida dos pequenos. Lembramos só alguns deles. Doze! A multidão delas, só Deus a conhece.

O Amor Solidário dos pequenos que quase não aparece nos jornais

1. As parteiras (Êxodo  1,15-22)

2. A mãe e a irmã de Moisés (Êxodo 2,1-10)

3. O sogro de Moisés (Êxodo 4,18; 18,1-27)

4. Raab, a prostituta (Josué 2,1-24)

5. A filha de Jefte (Juízes 11,29-40)

6. Rute, a estrangeira (Rute 1-4)

7. Ana, mãe de Samuel (1Samuel 1,1 a 2,10)

8. A namorada de Jeremias (Jeremias 12,7)

9. A mãe dos Macabeus (2Macabeus 7,1-42)

10. O velho Eleazar (2Macabeus 6,18-31).

11. A mulher anônima do perfume caríssimo (Marcos 14,3-9)

12. As mães das Comunidades (2Timóteo 1,3-5)

Amor solidário que aparece nos frutos do povo anônimo

1. O pai Abraão

2. O levita Moisés

3. O profeta Elias

4. O casal profético Oséias e Gomer

5. O profeta Jeremias

6. João Batista, o maior do Antigo Testamento

7. Barnabé, o quebra-galho amigo e generoso

8. Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios

9. Estevão, o primeiro mártir

10. Maria Madalena, a grande amiga de Jesus

11. José, o carpinteiro

12. Maria, a Mãe de Jesus

6 – Amor solidário se revela em Jesus, o filho de Maria. A história da encarnação das oito bem-aventuranças em Jesus.

Jesus irradiava o Amor Solidário de Deus para com os pobres, com os que choram, com os mansos, com os que têm fome e sede de Justiça, com os misericordiosos, como os puros de coração, como os que lutam pela paz e com os que são perseguidos por causa da justiça: Jesus era a encarnação revista e aumentada das oito bem-aventuranças do Salmo 146.

O Amor Solidário de Jesus para com os pobres em espírito

Jesus via como os doutores da lei ensinavam aos pobres a tradição dos antigos (Mc 7,1-5). Eles explicavam tudo direitinho conforme a letra da lei, mas a muitos deles faltava o espírito da lei. Em nome da fidelidade à letra, querendo ou não, eles marginalizavam muita gente: os pobres, os doentes, os deficientes físicos, as mulheres, os impuros, as crianças, os pobres. Diziam que a pobreza, o sofrimento, os males da vida e as deficiências eram castigos de Deus. Em vez de ensinar a lei de Deus como expressão do rosto carinhoso do Pai, eles escondiam a imagem do Pai atrás de uma máscara de normas e obrigações que tornavam impossível a observância da lei para os pobres (Mc 7,6-13).

Jesus experimentava Deus de maneira diferente. Sentia Deus como Pai, como Mãe. Ele tinha um outro espírito, que o fazia meditar a letra da lei com um novo olhar e o levava a escutar os pobres com muita ternura. Jesus também era pobre. Vivia no meio dos pobres da sua terra, igual a eles.

Porém, para Jesus, nascer pobre e ser pobre não eram uma fatalidade nem um castigo de Deus, mas sim a expressão de um apelo de Deus. Jesus não era um pobre revoltado com inveja daqueles ricos que acumulavam toda a riqueza para si. Na sua pobreza Jesus tinha uma riqueza maior: Deus estava com ele. O Reino de Deus vivia nele e o espírito do Reino o levava a lutar para que a injustiça fosse eliminada e os bens da terra fossem partilhados e se tornassem fonte de fraterni­dade para todos. Esta riqueza do Reino de Deus e da fraternidade, Jesus a irradiava no meio dos pobres e queria que todos a descobrissem.

Jesus e seus discípulos viviam misturados com os pobres e os excluídos (Mc 2,16; 1,41; Lc 7,37). Jesus reconhecia a riqueza e o valor dos pobres (Mt 11,25-26; Lc 21,1-4), e proclamava-os felizes (Lc 6,20; Mt 5,3). Não possuía nada para si, nem mesmo uma pedra para reclinar a cabeça (Lc 9,58). E a quem desejava segui-lo para conviver com ele, mandava escolher: ou Deus, ou o dinheiro! (Mt 6,24). Mandava fazer opção pelos pobres (Mc 10,21). A pobreza, que caracterizava a vida de Jesus, caracterizava também a sua missão. Ao contrário dos outros missionários (Mt 23,15), os discípulos e as discípulas de Jesus não podiam levar nada, nem ouro, nem prata, nem duas túnicas, nem sacola, nem sandálias, mas somente a Paz! (Mt 10,9-10; Lc 10,4-5). Eram pobres em espírito, pois iam animados pelo mesmo espírito de Jesus.

Jesus anunciava o Reino para todos, para pobres e ricos. Não excluía ninguém. Mas o anunciava a partir dos pobres e excluídos: prostitutas eram preferidas aos fariseus (Mt 21,31–32; Lc 7,37-50); publicanos tinham precedência sobre os escribas (Lc 18,9-14; 19,1-10); leprosos eram acolhidos e limpos (Mc 1,44; Mt 8,2-3; 11,5; Lc 17,12-14); doentes eram curados em dia de sábado (Mc 3,1-5; Lc 14,1-6; 13,10-13); mulheres faziam parte do grupo que acompanhava Jesus (Lc 8,1-3; 23,49.55; Mc 15,40-41); crianças eram apresentadas como professores de adultos (Mt 18,1-4; 19,13-15; Lc 9,47-48); samaritanos eram apresentados como modelo para os judeus (Lc 10,33; 17,16); famintos eram acolhidos como rebanho sem pastor (Mc 6,34; Mt 9,36; 15,32; Jo 6, 5-11); cegos recebiam a visão (Mc 8,22-26; Mc 10,46-52; Jo 9,6-7) e os fariseus eram declarados cegos (Mt 23,16); possessos eram libertados do poder do mal (Lc 11,14-20); a mulher adúltera era acolhida e defendida contra os que a condenavam em nome da lei de Deus (Jo 8,2-11); estrangeiros eram acolhidos e atendidos (Lc 7,2-10; Mc 7,24-30; Mt 15,22). Os pobres perceberam a novidade e acolheram Jesus dizendo: “Um novo ensina­mento dado com autoridade!” (Mc 1,27), diferente dos escribas e dos fariseus (Mc 1,22). Todo este carinho de Jesus na convivência com os pobres era a maneira de ele revelar a preferência do amor solidário do Pai para com eles.

O Amor Solidário de Jesus para com os que choram

Não existe pessoa neste mundo que nunca chorou. Nem Jesus escapa. Nascemos chorando. Uns choram mais que os outros. O choro pode ter muitas causas: choro de raiva e de ódio, choro de amor e de compaixão. Choro alegre e choro triste. Jesus chorou várias vezes. Chorou sobre Jerusalém, a capital do seu povo, porque ela não soube perceber o dia da visita do Senhor (Lc 19,41-44). Jesus se comovia diante do povo faminto que o procurava (Mc 6,34). O evangelho de Mateus diz que, diante da tristeza de tanta gente, causada pela pobreza e opressão, Jesus imitava o Servo de Javé anunciado por Isaías: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e carregou as nossas doenças” (Mt 8,17).

Jesus deve ter enxugado muitas lágrimas e devolvido a alegria a muita gente. Ele imitava Deus que, como diz Isaias, “enxugará as lágrimas de todas as faces, e eliminará da terra inteira a vergonha do seu povo” (Is 25,8). Como devem ficado alegres a viúva de Naím, cujo filho único ele ressuscitou (Lc 7,11-17); a Cananéia, cuja filha curou (Mc 7,24-30); a mulher de hemorragia irregular que se curou graças a sua fé em Jesus (Mc 5,25-34); o cego Bartimeu (Mc 10,46-52), o velho Zaqueu (Lc 19,1-10), a Samaritana (Jo 4,7-42), a mulher adúltera (Jo 8,1-11), a mulher curvada (Lc 13,11), Madalena (Lc 8,2; Jo 20,11-18), Marta e Maria, irmãs de Lázaro (Jo 11,17-44), tantos e tantas! Não dá para enumerar todos os casos de aflição que se converteram em consolo e alegria graças à bondade de Jesus.

Ele combateu os males que faziam o povo sofrer e chorar: combateu a fome, pois alimentou os famintos (Mc 6,30-44; 8,1-10); combateu a doença, pois curou os enfermos (Mt 4, 24; 8,16-17); combateu os males da natureza, pois acalmou as tempestades (Mt 14,32; 8,23-27); expulsou os maus espíritos e os proibia de falar (Mc 1,23-27.34; Lc 4,13); combateu a ignorância, pois ensinava o povo (Mt 9, 35; Mc 1,22); combateu o abandono e a solidão, pois acolhia as pessoas e não as marginalizava (Mt 9,36; 11,28-30); combateu as leis que oprimiam, pois colocou o ser humano como objetivo de todas as leis (Mt 12,1-5; 23,13-15; Mc 2,23-28); combateu a opressão, pois acolhia o povo oprimido (Mt 11,28-30; Lc 22,25); combateu o medo, pois dizia sempre: “Não tenham medo!” (Mt 28,10; Mc 6,50).

Consolando assim os tristes e irradiando alegria do Reino, Jesus revelava o amor solidário do Pai. Ele mesmo se alegrava vendo a alegria dos pequenos: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado” (Lc 11,21; Mt 11,25-26).

O Amor Solidário de Jesus para com os mansos

Jesus disse: “Venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração.” (Mt 11,28-30). A mansidão a que Jesus se refere não é a de uma pessoa sem fibra, sem vontade própria, que aprova tudo e concorda com tudo, pois Jesus não era assim. A mansidão a que ele se refere é a mansidão resistente do Servo de Javé, anunciado pelo profeta Isaías: “Ele não grita, nem levanta a voz, não solta berros pelas ruas, não quebra a planta machucada, nem apaga o pavio que ainda solta fumaça. Com fidelidade promove o direito sem desanimar nem desfalecer, até estabelecer o direito sobre a terra” (Is 42,2-4).

Assim era a mansidão de Jesus. Isaías completa a descrição da mansidão dizendo que ela consiste em “saber dizer uma palavra de conforto a quem está desanimado” (Is 50,4). E o próprio Servo acrescenta: “O Senhor me abriu os ouvidos e eu não resisti, nem voltei atrás. Ofereci minhas costas aos que me batiam e o queixo aos que me arrancavam a barba. Não escondi o rosto para evitar insultos e escarros. O Senhor é a minha ajuda! Por isso, estas ofensas não me desmoralizam. Faço cara dura como pedra, sabendo que não vou ser um fracassado” (Is 50,5-7).

A mansidão de Jesus é a resistência que nasce da certeza de fé de que a vitória final não será dos violentos, dos corruptos, dos prepotentes, mas sim dos que tem a mansidão do Servo. Jesus era uma amostra viva desta mansidão resistente. Para ele, tudo se resumia em imitar Deus: “Vocês ouviram o que foi dito: Ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo. Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês! Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos. Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu” (Mt 5,43-45 e 48; cf Lc 6,36).

Jesus imitou o Pai e revelou o seu amor. Cada gesto, cada palavra de Jesus, desde o nascimento até à morte na cruz foi um crescendo contínuo. A manifestação plena desta mansidão foi quando na Cruz ofereceu o perdão ao soldado que o torturava e matava. O soldado, empregado do império, prendeu o pulso de Jesus no braço da cruz, colocou um prego e começou a bater. Deu várias pancadas. O sangue espirrava. O corpo de Jesus se contorcia de dor. O soldado bruto e ignorante, alheio ao que estava fazendo e ao que estava acontecendo ao redor, continuava batendo como se fosse um prego na parede da sua casa para pendurar um quadro. Neste momento Jesus dirige ao Pai esta prece: “Pai, perdoa! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lc 23,34) Olhando aquele soldado ignorante e bruto, Jesus teve dó do rapaz e rezou por ele e por todos nós: “Pai, perdoa!” E ainda arrumou uma desculpa: “São ignorantes. Não sabem o que estão fazendo!” Diante do Pai, Jesus se fez solidário com aqueles que o torturavam e maltratavam. Era como o irmão que vem com seus irmãos assassinos diante do juiz e ele, vítima dos próprios irmãos, diz ao juiz: “São meus irmãos, sabe! São uns ignorantes. Perdoa. Eles vão melhorar!” Era como se Jesus estivesse com medo que o mínimo de raiva contra o rapaz que o matava pudesse apagar nele o último restinho de humanidade que ainda sobrava nele. Este gesto incrível de humanidade e de mansidão foi a maior revelação do amor de Deus. Jesus podia morrer: “Está tudo consumado!” (Jo 19,30). Sua vida foi uma revelação do amor solidário do Pai.

O Amor Solidário de Jesus para com os que têm fome e sede de justiça

No tempo de Jesus, muitos escribas e fariseus ensinavam que a justiça só se alcançaria observando a lei até nos seus mínimos detalhes. Era aquela mesma visão da reforma deuteronomista e do Doutor da parábola do Bom samaritano. O relacionamento com Deus se tornava comercial: Eu ofereço algo a Deus, para que Ele me pague. Se eu observar bem toda a lei, posso exigir que Ele me dê a herança prometida da vida eterna. No ensino deles o acento caía na observância, no merecer. Não deixavam espaço para a gratuidade do amor e a misericórdia (cf Mt 9,13). Jesus não concordava com esta justiça e dizia: “Se a justiça de vocês não for maior que a justiça dos fariseus e escribas, vocês não vão poder entrar no Reino dos céus” (Mt 5,20).

Na raiz desta falsa justiça estava a injustiça maior da falsa imagem de Deus que a religião comunicava ao povo. Por causa da insistência na observância da Lei, Deus aparecia como um juiz severo que ameaça com castigo, provoca medo e condena, e não como um pai que acolhe e perdoa. Esta tremenda injustiça para com Deus se manifestava nas coisas mais comuns do dia-a-dia e transformava a vida de muitas pessoas num inferno. Por exemplo, eles não podiam comer sem lavar as mãos (Mc 7,3); não podiam sentar à mesa com quem era de outra raça ou de outra religião (Mc 2,16); não podiam entrar na casa de um pagão (At 10,28); não podiam arrancar espigas em dia de sábado para matar a fome (Mt 12,1-2); não podiam curar um doente em dia de sábado (Mc 3,1-2). E assim havia muitas outras normas, observâncias e costumes. A impureza que a lei assim exigia ameaçava o povo de todos os lados: “Pecado! Proibido! Não Pode!” O “pecado” estava em toda parte! O povo, em vez de sentir-se em paz diante de Deus e feliz com a perspectiva do Reino, tinha a consciência pesada, pois não conseguia observar a Lei, nem alcançar a justiça (cf. Rom 7,15.19).

Jesus não pensava assim. Ele tinha fome e sede de uma outra justiça. Tinha outra imagem de Deus no coração. O amor de Deus por nós não é fruto das nossas observâncias, mas é um dom que recebemos de Deus. A mãe ama a criança não porque a criança é boa e lhe obedece em tudo, mas porque ela mesma é mãe. Mãe é Mãe! Amor de mãe não se compra, nem se merece, mas se recebe de graça pelo simples fato de nascer. “Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor, seria tratado com desprezo” (Ct 8,7). Temos que observar a lei de Deus, sim, sempre, mas não para merecer ou comprar o céu. Observamos a lei para retribuir e agradecer a imensa bondade com que Deus nos acolhe e “nos amou primeiro”, sem mérito algum da nossa parte (1Jo 4,19). Aqui está a raiz do Amor Solidário!

Esta visão da justiça cresceu em Jesus, desde pequeno, convivendo em casa com sua mãe que lhe falava do amor e da misericórdia de Deus (cf Lc 1,54-55) e lembrava as histórias de Jeremias, Oséias e Isaías e tantas outras pessoas. Ele descobria o amor de Deus Pai no amor que recebia de Maria, sua mãe, de Ana, sua avó, e de José, seu pai, que era um homem justo (Mt 1,19). Jesus, por sua vez, traduzia este amor naqueles gestos tão simples de ternura com que recebia e acolhia as pessoas, desde as criancinhas até os velhos: Zaqueu (Lc 19,1-10), Bartimeu (Mc 10,46-52), Talita (Mc 5,41), Nicodemos (Jo 3,1-15), Madalena (Lc 8,2; Jo 20,11-18), Levi (Mc 2,13-17), a mulher adúltera (Jo 8,1-11), a moça do perfume (Lc 7,36-50), a Samaritana (Jo 4,7-26), a Cananéia (Mt 15,21-28), as mães com crianças pequenas nos braços (Mc 10,13-16). Irradiando esta sua fome e sede de justiça, Jesus irradiava o Amor Solidário de Deus.

O Amor Solidário de Jesus para com os misericordiosos

Jesus era a misericórdia em pessoa. Como o samaritano da parábola, tinha o coração na miséria dos outros. Ele conhecia de perto a miséria e o sofrimento do seu povo. Nas parábolas ele menciona a angústia dos trabalhadores desempregados que viviam à espera de um biscate e nem sempre o conseguiam (Mt 20,1-6); a situação do povo cheio de dívida e ameaçado de ser escravizado (Mt 18,23-26); o desespero que chegava a levar o pobre a explorar seu próprio companheiro (Mt 18,27-30; Mt 24,48-50); a extravagância dos ricos que ofendia os pobres (Lc 16,19-21); a luta da viúva pobre pelos seus direitos (Lc 18,1-8). Jesus sabia o que se passava no seu país. A miséria do povo o rodeava e enchia o seu coração.

O que Jesus mais fazia era atender às pessoas que o procuravam em busca de alguma ajuda ou alívio. Ele fazia isto desde pequeno. Lá em Nazaré, como todo mundo, ele trabalhava na roça e, além disso, ajudava o povo como carpinteiro. Carpinteiro era aquela pessoa bem prática do povoado a quem todos recorriam para resolver seus pequenos problemas domésticos: mesa quebrada, telha estragada, arado desregulado, etc. Este seu jeito natural de servir aos outros, Jesus o deve ter aprendido de sua mãe que chegou a viajar mais de 100 quilômetros só para ajudar sua prima idosa Isabel, no primeiro parto (Lc 1,36-39.56-57). Jesus dizia de si mesmo, resumindo o sentido da sua vida: “Eu não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45).

Sim, Jesus era a misericórdia em pessoa. Certa vez, ele queria descansar um pouco e foi de barco para o outro lado do lago (Mc 6,31). O povo soube e foi a pé na frente dele e ficou esperando por ele na praia (Mc 6,33). Vendo o povo, Jesus esqueceu o descanso e dizia: “Tenho dó desse povo. São como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Outra vez, em Cafarnaum, terminado o sábado, no momento de aparecer a primeira estrela no céu, o povo levou a ele todos os doentes da cidade, e ele curou a todos (Mc 1,32-34). Era tanta gente que o procurava, que nem sobrava tempo para ele comer (Mc 3,20; Mt 6,31). O evangelho conta muitos episódios desta atenção misericordiosa de Jesus para com as pessoas: com a mulher adúltera (Jo 8,11), com o paralítico (Mc 2,9), a moça pecadora (Lc 7,47), o bom ladrão (Lc 23,34). Perdoou até o soldado que o estava matando (Lc 23,34).

Pedro, ouvindo Jesus falar tanto em misericórdia e perdão, perguntou: “Quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (Mt 18,21) O número sete significava a totalidade. No fundo, Pedro pergunta: “Então devo perdoar sempre?” E Jesus responde: “Não lhe digo que até sete vezes, Pedro, mas até setenta vezes sete”. Ou seja: “Não lhe digo até sempre, mas até setenta vezes sempre!”

O evangelho conta também as brigas e discussões que Jesus sustentava para defender os sofredores contra as agressões injustas das autoridades religiosas. Defendeu a mulher que vivia curvada há 18 anos e que foi agredida pelo coordenador da sinagoga (Lc 13,10-17). Defendeu a moça que foi agredida como pecadora na casa de um fariseu (Lc 7,36-50). Defendeu as mães que queriam uma bênção para suas crianças, contra a má vontade dos discípulos (Mt 19,13-15). Defendeu os discípulos quando criticados por arrancarem espigas em dia de sábado (Mt 12,1-8). Defendeu a mulher acusada de adultério por alguns fariseus (Jo 8,1-11). Defendeu e curou o rapaz com mão seca dentro da sinagoga em dia de sábado (Mc 3,1-6). Acolhia os leprosos, os doentes, os cegos, os coxos, todos e todas que o procuravam. E ele explicou o motivo que o levava a ter esse seu comportamento. Ele disse: “Quero misericórdia e não sacrifício” (Mt 9,13; 12,7; 23,23). Agindo assim, Jesus irradiava para os outros o amor solidário que ele mesmo recebia do Pai. Colocava em prática o que ensinava aos outros: “Sede misericordiosos como o Pai de vocês é misericordioso” (Lc 6,36).

O Amor Solidário de Jesus para com os puros de coração

Fazia parte do programa de Jesus “abrir os olhos dos cegos” (Lc 4,18). Ele dizia aos discípulos: “A lâmpada do corpo é o olhar. Quando o olhar é sadio, o corpo inteiro também fica iluminado. Mas, se o olhar está doente, o corpo também fica na escuridão. Portanto, veja bem se a luz que está em você não é escuridão” (Lc 11,34-35). Quem tem um olhar de inveja, não enxerga corretamente as pessoas e não percebe a presença de Deus nos outros. Quem tem um olhar de orgulho, de raiva ou de vingança, não consegue apreciar direito os fatos da vida. Tais pessoas são cegas. Jesus dizia que alguns fariseus eram cegos, porque não enxergavam direito nem a vida nem as coisas de Deus (cf. Mt 15,14; 23,16-17; Jo 9,40-41). Mas quem tem um olhar puro, esse consegue perceber os apelos de Deus na vida.

Jesus, ele tinha um olhar limpo, puro, e o mantinha puro por meio da oração, tendo sempre presente a vontade do Pai (Jo 4,34; 5,19). Ele só fazia aquilo que o Pai lhe mostrava que era para fazer (Jo 5,19). Ele falava só aquilo que ouvia do Pai (Jo 5,30).

Jesus procurava ajudar os discípulos a limpar o olhar: “Cuidado com o fermento dos fariseus e de Herodes!” (Mc 8,15-16). A mentalidade do “fermento de Herodes e dos fariseus” (Mc 8,15) tinha raízes profundas na vida daquele povo. Também hoje, o “fermento do consumismo” tem raízes profundas na nossa vida e exige uma vigilância constante. Jesus procurava atingir essas raízes para poder arrancar o “fermento” que os impedia de perceber a presença de Deus na vida. É bonito ver como Jesus, através do diálogo, ia ajudando as pessoas a enxergar melhor. O evangelho de João é que dá uma atenção especial a esta preocupação de Jesus: a conversa de Jesus com a Samaritana (Jo 4,7-26), com Nicodemos (Jo 3,1-15), com Marta (Jo 11,21-27), com o cego que foi curado (Jo 9,35-39). Jesus ajudava até mesmo as pessoas que resistiam contra ele: alguns judeus (Jo 8,31-59) e Pilatos (Jo 18,33-38).

Vale a pena ver de perto como ele fazia para purificar os olhos dos discípulos e como combatia os vários tipos desse falso fermento, dessa falsa mentalidade, que até hoje impedem a visão correta das coisas: Certa vez, alguém, que não era da comunidade, usava o nome de Jesus para expulsar os demônios. João viu e proibiu, pois, assim ele dizia, aquela pessoa não fazia parte do grupo (Mc 9,38). Era o falso fermento da mentalidade de grupo fechado.  Jesus responde: “Não impeçam! Quem não é contra é a favor!” (Lc 9,39-40). Outra vez, os discípulos brigavam entre si pelo primeiro lugar (Mc 9,33-34). Era o falso fermento da mentalidade de competição e de prestígio. Jesus reage: “O primeiro seja o último” (Mc 9,35). “Não vim para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45; Mt 20,28; Jo 13,1-16). Outro dia, mães com crianças queriam chegar perto de Jesus. Os discípulos as afastavam. Era o falso fermento da mentalidade de quem marginaliza o pequeno. Jesus os repreende: ”Deixem vir a mim as crianças!” (Mc 10,14). “Quem não receber o Reino como uma criança, não pode entrar nele” (Lc 18,17). Outro dia ainda, vendo um cego os discípulos perguntavam: “Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9,2). Era o falso fermento da mentalidade de quem segue a opinião da ideologia dominante. Jesus responde: “Nem ele, nem os pais dele, mas para que nele se manifestem as obras de Deus” (cf Jo 9,3).

Em todas estas atitudes Jesus se esforçava para que as pessoas modificassem seu olhar sobre o próximo. Por exemplo, ele dizia: “Tudo que vocês fizerem a um destes meus irmãos mais pequeninos é a mim que o fizeram” (Mt 25,40). Ele se identifica com os pequenos: “Era eu!” (Mt 25,40.45). Ele levava as pessoas a perceber a presença dele até nas coisas mais simples da vida como dar um copo de água (Mt 10,42; Mc 9,41).

O Amor Solidário de Jesus para com os que lutam pela Paz

A construção da Paz começa nas coisas miúdas como desejar um “Bom Dia!”, e só terminará quando o mundo estiver reconstruído: sem guerra, sem fome, sem doenças, sem injustiça, sem opressão, todos vivendo como irmãos e irmãs, uns dos outros. Este é o objetivo da construção da Paz, da Paz completa. SHALÔM. A Paz é como uma casa para morar: ela é construída tijolo por tijolo. Quem não cuida do tijolo, nunca terá casa para morar. Qual é o tijolo que serve para construir a casa da Paz?

A vida de Jesus é uma amostra de como ser construtor de paz. Onde havia ódio, levava o amor; onde havia ofensa, levava o perdão; onde havia discórdia, levava a união; onde havia dúvida, levava a fé; onde havia erro, levava a verdade; onde havia desespero, leva a esperança; onde havia ofensa, levava o perdão; onde havia tristeza, levava a alegria; onde havia injustiça, levava a justiça e o direito; onde havia trevas, levava a luz.

Aos discípulos amedrontados dizia: “A paz esteja com vocês!” Soprou sobre eles dizendo: “Recebam o Espírito Santo!”, e deu a eles e a todos nós o poder de perdoar e de reconciliar (Jo 20,21-23). E quando os enviou em missão, não permitia levar nada, a não ser uma única coisa: a Paz. E quando chegavam em algum lugar, eles deviam dizer: “A Paz esteja nesta casa!” (Lc 10,5). Assim começou e recomeça o processo da Paz que reverte o processo do ódio, da confusão, da discórdia, da ofensa, da destruição, iniciado com Adão e Eva (Gn 2,1-7), com Caim e Lamec, (Gn 4,8.24), com o Dilúvio (Gn 6,13-17) e a Torre de Babel (Gn 11,1-9). Assim recomeça sempre a reconstrução do Paraíso Terrestre da Paz.

Não se começa a construção da casa pelo telhado, mas pelo alicerce. Qual o alicerce da casa da Paz? É a reconstrução do relacionamento humano entre as pessoas, bem na base, para que possa nascer e renascer a vida em comunidade. No tempo de Jesus, o povo esperava que o profeta Elias voltasse “para reconduzir o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais” (Ml 3,23-24). Eles esperavam que fosse refeito o tecido básico da convivência humana, pois sem este alicerce, o resto não teria consistência. Seria construir a casa em cima da areia (cf Mt 7,26).

O que Jesus mais fez foi exatamente isto: refazer a vida comunitária nos povoados da Galiléia. Conforme o Evangelho de Marcos, a primeira coisa que Jesus fez foi chamar discípulos para formar comunidade com eles (Mc 1,16-20; 3,14). Ao redor dele nascia a nova fraternidade, expressão do amor solidário de Deus, fundamento na construção da Paz. Ele acolhia as pessoas, dava lugar aos que não tinham lugar, era irmão para os que viviam isolados, denunciava as divisões que impediam a construção da paz: divisão entre próximo e não-próximo (Lc 10,29-37); entre pagão e judeu (Mt 15,28; cf. Lc 7,6); entre puro e impuro (Mt 23,23-24; Mc 7,13-23); entre pobres e exploradores (Lc 20,46–47; 22,25). Quando curava uma pessoa ou perdoava um pecador, dizia: “Vai em paz!” (Lc 7,50; 8,48; Mc 5,34). Quando, depois da ressurreição, aparecia aos discípulos, ele dizia: “A Paz esteja com vocês!” (Lc 24,30; Jo 20,19.26). Ele trouxe a paz que só Deus nos pode dar (Jo 14,27). É a paz fruto da justiça, fruto de longa luta e de muito sofrimento. Por isso disse em outro lugar que não veio trazer a paz, mas sim a espada e a divisão (Mt 10,34; Lc 12,51).

Jesus reforçava a vida em comunidade que é o fundamento da Paz, o lugar da reconstrução da Aliança. A Paz existe quando todos e todas são acolhidos como irmãos e irmãs, uns dos outros, todos sendo filhos e filhas do mesmo Pai. Jesus procurava reintegrar as pessoas marginalizadas na convivência humana (Mc 1,40-45). A Comunidade deve ser como o rosto de Deus, transformado em Boa Nova para o povo. Jesus era ecumênico e universal. Acolhia a todos: judeus, romanos, samaritanos, a mulher Cananéia.

O Amor Solidário de Jesus para com os perseguidos por causa da justiça

Como dissemos anteriormente, a maior injustiça na época de Jesus era a falsa imagem de Deus que a religião oficial comunicava ao povo: um Deus severo, juiz que ameaçava com castigo e condenava. Por causa desta falsa imagem de Deus, a própria vida humana era falsificada e aparecia de um jeito que já não correspondia mais ao projeto de Deus. Em vez de abrir a porta do Reino, a religião parecia querer fechá-la. Jesus dizia: “Vocês fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que o desejam” (Mt 25,13).

Jesus não agüentava esse tipo de religião que, em nome da lei de Deus mal interpretada, matava na alma do povo a alegria de viver. Ele não veio para condenar o mundo, mas sim para salvá-lo (Jo 12,47). Jesus anunciava a Boa Notícia de um Deus amoroso e solidário que acolhe e salva e não a notícia triste de um Deus severo que condena e castiga. Ele dizia: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, e sim para que o mundo seja salvo por meio dele” (Jo 3,17). Jesus irradiava este amor solidário em atitudes bem concretas para com os pobres, os mansos, os aflitos, os que tinham fome e sede de justiça, os que buscavam ter misericórdia com os miseráveis, os que buscavam ver e experimentar a presença de Deus na vida, os que lutavam pela paz.

Por causa deste seu amor à justiça, Jesus foi criticado e perseguido. Quando perdoou o paralítico, foi criticado (Mc 2,6-7). Quando foi jantar na casa do publicano Levi, foi reprovado (Mc 2,16). Quando num sábado curou o cego de nascimento, foi denunciado (Jo 5,16). Quando comia sem lavar as mãos, era ridicularizado (Mt 15,2). Tentaram desmoralizá-lo dizendo que ele era um possesso (Mc 3,22), um comilão e beberrão (Mt 11,19), um louco (Mc 3,21), um pecador (Jo 9,24), um blasfemo (Mc 14,64). Quando Jesus desafiou as autoridades e dizia que a maneira de elas interpretarem a Lei de Deus era contrária à vontade de Deus, elas decidiram matá-lo (Mc 3,6).

Jesus sabia que não conseguiria mudar a cabeça dos líderes do povo. Sabia que a sua fidelidade ao Deus amoroso que acolhe a todos como filhos e filhas seria interpretada como heresia e que o seu destino seria prisão, tortura e morte de cruz. As profecias sobre o Servo de Javé não deixavam dúvida a este respeito (cf. Is 50,6; 53,3-10). Se quisesse, Jesus poderia ter escapado da morte. Mas Jesus não quis escapar. “Pai, não se faça a minha, mas a tua vontade!” (Lc 22,42). Até o último respiro da sua vida, ele continuou revelando a face do Deus amor aos excluídos. Era esta sua obediência radical ao Pai, que o levava a desobedecer às autoridades religiosas do seu tempo.

Por este seu jeito de ser e pelo testemunho de sua vida, Jesus encarnava o amor de Deus e o revelava ao povo e aos discípulos (Mc 6,31; Mt 10,30; Lc 15,11-32). Revelando o Pai em gestos bem concretos, Jesus revelava ao mesmo tempo a podridão do sistema. Por isso era perseguido, mas mesmo perseguido, Jesus estava em paz. Esta atitude de paz frente à perseguição era o Reino Deus presente em Jesus. Ele queria que todos os perseguidos pudessem ter esta mesma experiência do Reino. Por isso dizia: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do céu!”

Foi esta a Boa Nova do amor solidário de Deus que Jesus viveu e irradiou durante os três anos que andou pela Galiléia anunciando o Reino de Deus. Sua mensagem desagradou aos poderosos e eles o prenderam, condenaram e mataram na cruz. Mas Deus o ressuscitou, confirmando-o diante dos discípulos por meio de muitas aparições (1Cor 15,3-8). O resumo são as oito bem-aventuranças.

As oito bem-aventuranças.

Resumo do amor solidário

Bem-aventurados

os pobres em espírito,

porque deles é o Reino do Céu.

 

Bem-aventurados

os que choram,

porque serão consolados.

 

Bem-aventurados

os mansos,

porque possuirão a terra.

 

Bem-aventurados

os que têm fome e sede de justiça,

porque serão saciados.

 

Bem-aventurados

os que são misericordiosos,

porque encontrarão misericórdia.

 

Bem-aventurados

os puros de coração,

porque verão a Deus.

 

Bem-aventurados

os que promovem a paz,

porque serão chamados filhos de Deus.

 

Bem-aventurados

os perseguidos por causa da justiça,

porque deles é o Reino do Céu”.

Amor Solidário

é a maior poesia da história humana

é a história do amor criador que realiza tudo que diz e canta

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