Quem é Jesus para nós? (Mt 16,13- 20). Por Marcelo Barros
Neste XXI domingo comum do ano (A), o evangelho de Mateus 16,13–20 nos faz retomar hoje a mesma pergunta que Jesus fez aos discípulos: E vocês, quem dizem que eu sou?
Essa pergunta deve ressoar hoje para cada um/uma de nós. Ela não pede resposta apenas intelectual, a ser dada de acordo com o Credo recitado nas Igrejas. Não basta. É um tipo de pergunta que só se responde profundamente com o testemunho de nossas vidas. É pelo modo de sermos e de vivermos que as pessoas poderão entender quem é Jesus para nós, ou seja, o papel e a importância que Jesus tem na nossa vida.
É normal que a mesma pessoa possa ser vista a partir de ângulos diversos, a depender de quem a vê e da experiência que tem com ela ou ele. Durante séculos, nos habituamos a ver Jesus a partir de imagens europeias. Apresentaram sempre um Jesus branco e identificado com títulos e funções de poder na sociedade ocidental. Foram astutos em trocar a mística do reinado divino no mundo (reino de Deus) pela espiritualidade do Cristo Rei, cujo poder é exercido através da Igreja e de seus legítimos representantes.
Foi em nome de Jesus e trazendo a cruz de Jesus junto da espada que os conquistadores colonizaram nosso continente, escravizaram os seus habitantes originais e estabeleceram uma estrutura que até hoje mantém as desigualdades e discriminações da colonização. Não podemos esquecer que as fortalezas de guerra que os colonizadores armaram contra os povos originários se chamavam e alguns se chamam até hoje: Forte do Bom Jesus, Senhor do Bonfim e outros nomes semelhantes. Até hoje, vemos crucifixos em câmaras municipais e assembleias legislativas que fazem leis injustas e discriminatórias. E vemos eclesiásticos católicos, evangélicos e pentecostais coniventes com essa estrutura iníqua, sempre e ainda em nome de Jesus.
É normal, então, nos perguntarmos que relação tem esse Cristo que a Igreja apresenta como rei, como Senhor e como Deus com o Jesus de Nazaré que viveu na Palestina 21 séculos atrás.
De fato, com exceção de duas ou três referências em obras de escritores do final do século I, o pouco que sabemos sobre Jesus nos vem do testemunho dos evangelhos. E estes já falam de Jesus a partir do olhar de comunidades cristãs que, mesmo baseadas em testemunhos mais antigos, escreveram seus relatos mais de 40 ou 50 anos depois da sua morte.
Estudos contemporâneos comparam relatos e fazem pesquisas arqueológicas sobre as sociedades do Oriente Médio no primeiro século. Em seus escritos, John Crossan mostra Jesus como “camponês judeu do Mediterrâneo”. Reza Aslan descreve o Jesus histórico como zelota, isso é, como militante que lutava contra o Império Romano. Ligando história e adesão da fé, José Antonio Pagola publicou vários livros para nos ajudar a redescobrir a humanidade de Jesus em seu mundo cultural, suas opções e sua proposta.
Apesar de todos os estudos e pesquisas, Jesus continua desconhecido, não somente para o mundo, mas sobretudo para as próprias Igrejas. Muitos preferem olhar Jesus como mito do que levar a sério sua humanidade e segui-lo como mestre de vida.
Recentemente, o amigo espanhol José Maria Castillo (96 anos), teólogo formado na tradição jesuíta, publicou o livro: O Evangelho marginalizado (Ed. Vozes). Ali, o autor mostra que o evangelho foi e é marginalizado, em primeiro lugar, pelas próprias Igrejas cristãs.
Quando, a partir do século IV, o Cristianismo foi absorvido pelo Império Romano, os cristãos começaram a falar de Jesus como “Cristo Pantocrator”, isto é, como imperador no trono. Este “Senhor de tudo” tinha como vigários na terra os reis e imperadores. Pouco a pouco, se ensinou que esse vigário de Cristo seria o bispo de Roma, o papa.
No século XIII, São Francisco de Assis insistiu na contemplação do Cristo pobre e nu, na Cruz. E inventou como espiritualidade a adoração do presépio de Natal e a devoção ao Caminho da Cruz (a chamada Via Sacra).
No século XVI, diante das heresias e das divisões da Igreja, Santo Inácio de Loyola e a hierarquia, a partir do Concílio de Trento, preferiu mais ver Jesus como mestre da doutrina correta e da moral.
Há mais de 50 anos, as comunidades latino-americanas veem Jesus como o Cristo Libertador e recebem dele força e inspiração para a resistência em um mundo desigual e para testemunhar o projeto divino como justiça, paz, libertação para todos/as e comunhão com a Terra e toda a natureza.
Para as pessoas comprometidas com a transformação do mundo, o que mais atrai na pessoa de Jesus libertador é que Ele assume essa função a partir da inserção no mundo como pobre, testemunhando o amor de Deus pelos pequeninos e vulneráveis do mundo e se identificando com eles nos diversos tipos de cruz em que até hoje a sociedade dominante os crucifica.
Nenhuma dessas imagens esgota a realidade de Jesus. Nenhuma nos exime de procurar sempre e de aprofundar cada vez mais o mistério de sua pessoa e de sua vida.
O desafio para as Igrejas e religiões estabelecidas é que Jesus se identifica e se une não apenas às vítimas da exploração social, política e econômica. O que mais escandaliza os religiosos é que Jesus convive e “come com as prostitutas e com as pessoas consideradas de má vida”.
Ainda hoje, mesmo eclesiásticos abertos ao social têm dificuldade de alargar essa abertura às relações de gênero, à luta contra o colonialismo não só econômico e social, mas também cultural e religioso.
Religiosos estranharam que, há poucos anos, na festa de Natal, um grupo de humor cáustico e agressivo apresentasse a figura de um Jesus gay. Ficaram escandalizados com o fato de que, no Rio de Janeiro, no desfile de Carnaval de 2020, a Escola de Samba Mangueira tomasse como enredo o Jesus da Gente. Isso é triste quando sabemos que Jesus sempre se opôs ao poder religioso, quando esse pretende aprisionar Deus em sua gaiola sagrada.
Sobre a identidade de Jesus, há quem o veja como africano. Estudos mais atentos à História nos lembram que até a abertura do Canal de Suez, em 1864, a região da atual Palestina era considerada como pertencente à África. Portanto, Jesus nasceu, viveu e morreu como africano.
Jesus se revela nas vítimas e excluídos do mundo. O testemunho que ele pede de nós é claro: “Tudo o que fizerem a um desses pequeninos, é a mim que fazem” (Mt 25,31ss).
Estamos ainda sem conhecer Jesus. Sinto-me pequena diante da realidade de hoje. Mesmo indo à Igreja. Ainda estou longe de Jesus que está entre os mais pobres. Como conhecê-lo melhor?
Marcelo, você nos alimenta com esta maneira ( metodológica) de passear nas diversas visões que estudamos a cerca da figura de Jesus pelos autores e pela sociedade em geral. Como você é profundo em suas colocações. Qdo crescer quero ser como você meu mestre.