A Missão de Maria, a Mãe de Jesus
Frei Carlos Mesters, carmelita
(Obs.: Esse artigo é o 9º de uma série de 10 artigos de frei Carlos Mesters que estamos disponibilizando semanalmente na internet, em www.gilvander.org.br.)
A Bíblia fala pouco de Maria. Só sete livros: Gálatas (Gl 4,4), Marcos Mc 3,20-21.31-35), Lucas (Lc 1 e 2; 11,17), Atos (At 1,13), Mateus (Mt 1 e 2), João (Jo 2,1-13; 19.25-26) e Apocalipse (Apc 12,1-17).
Ela mesma fala menos ainda. Só em dois livros: Lucas e João. Ao todo, a Bíblia conservou apenas seis frases de Maria. Nada mais! Mas cada um dos sete livros e das seis palavras frases nos revela algo da Missão de Maria.
1. Carta aos Gálatas
1. O texto:
“Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4)
2. Um breve comentário
Paulo não focaliza a pessoa de Maria nem pronuncia o nome dela. Referindo-se a Maria, acentua dois aspectos fundamentais a respeito de Jesus: 1) Ao dizer que Jesus é “nascido de uma mulher”, ele afirma a sua humanidade. 2) Dizendo que é “nascido sob a lei”, afirma que Jesus é judeu e que conhece a situação dura de quem vive sob a lei. Por ter “nascido de uma mulher, nascido sob a lei”, Jesus se tornou capaz de remir os que eram escravos da lei e fazer com que pudessem receber a adoção filial. Acentua a humanidade e a encarnação bem concreta na vida do povo de que fazemos parte.
3. A Missão
Participar da vida do povo, ser humano e solidário e ajudar os outros a ser humano e solidário..
2. Evangelho de Marcos
1. O texto:
“A multidão se apinhou de tal modo que eles não podiam se alimentar. Quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo, porque diziam: “Enlouqueceu!” Chegaram então sua mãe e seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: “Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procuram. Ele perguntou: “Quem é minha mãe e meus irmãos?” E repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe!” (Mc 3,20-21.31-35).
2. Um breve comentário
Este texto aparentemente duro deve ser entendido no contexto da época. Como Paulo, Marcos não valoriza a pessoa de Maria, nem a desvaloriza. Ele quer mostrar como Jesus rompe o círculo estreito da família fechada sobre si mesma, para abri-lo para a dimensão da comunidade.
3. A Missão
Não permitir que as famílias se fechem sobre si mesmas; insistir para que elas se abram para formar comunidade como uma alternativa para elas poderem transmitir aos filhos os valores em que acreditam.
3. Evangelho de Mateus
1. Uma chave:
No evangelho de Mateus Maria aparece como a esposa de José. Ela não fala. Não diz uma só palavra. É José que faz com que Jesus seja filho de Davi, capaz de realizar as promessas. Como esposa de José e Mãe de Jesus, Maria participa no destino de Jesus. Uma atenção especial merece a genealogia, em que Maria aparece ao lado de quatro outras mulheres. A Companhia de Maria.
2. Os textos:
1. Mateus 1,1-17:
A “Companhia de Maria” que aparece na genealogia de Jesus: Tamar (1,3), Raab (1,5), Rute (1,5) e Betsabéia (1,6). A genealogia de Jesus termina com esta frase: “José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo”
2. Mateus 1,18-25:
O aviso a José: “José, filho de Davi, não tenha medo de receber Maria como esposa!”
Saber acolher a Palavra de Deus também quando ela pede o que não se espera.
3. Mateus 2,1-12:
Os Magos do Oriente: “Ao entrar na casa, viram o menino com Maria sua mãe”
Saber reconhecer a presença da salvação num menino recém nascido com sua mãe
4. Mateus 2,13-23:
A Fuga para o Egito: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito!”
Levanta! Vai! Fica lá! Levanta! Volta! Vai! E eles foram, foram, foram, …!
3. Um breve comentário
Surpreende o fato de Mateus ter colocado cinco mulheres entre os antepassados de Jesus: Tamar, Raab, Rute, a mulher de Urias e Maria. Nenhuma rainha, nenhuma matriarca, nenhuma juíza, nenhuma das mulheres lutadoras do início do êxodo. Por que? As quatro eram estrangeiras e não satisfaziam às exigências das leis da pureza da época. Tamar, uma Cananéia, viúva, se vestiu de prostituta para obrigar Judá a ser fiel à lei e dar-lhe um filho (Gn 38,1-30). Raab, uma Cananéia, prostituta de Jericó, fez aliança com os israelitas. Ajudou-os a entrar na Terra Prometida e professou a fé no Deus libertador do Exodo (Js 2,1-21). Betsabea, uma Hitita, mulher de Urias, foi seduzida, violentada e engravidada pelo rei Davi, que, além disso, mandou matar o marido dela (2 Sm 11,1-27). Rute, uma Moabita, aconselhada pela sogra, tomou a iniciativa de imitar Tamar e de passar a noite na eira, junto com Booz, forçando-o a observar a lei e dar-lhe um filho (Rt 3,1-15;4,13-17). Foi através do comportamento destas mulheres que Deus realizou seu plano e enviou o Messias prometido. Realmente, o jeito de agir de Deus surpreende e faz pensar! E Maria? A sua gravidez acontece antes de ela conviver com José. O próprio Deus burlou as leis de pureza, para que o Messias pudesse nascer no meio de nós!
4. A Missão
Qual seria?
4. Evangelho de Lucas
1. Uma chave:
Lucas, quando fala de Maria, pensa nas Comunidades e lhes apresenta Maria como modelo. É na maneira de Maria relacionar-se com a Palavra de Deus que Lucas vê a maneira mais correta para a comunidade relacionar-se com a Palavra de Deus: acolhê-la, encarná-la, vivê-la, aprofundá-la, ruminá-la, fazê-la nascer e crescer, deixar-se moldar por ela, mesmo quando não a entendemos ou quando ela nos faz sofrer. A chave para isto nos é dada no elogio à sua mãe: Feliz quem ouve e pratica a Palavra (Lc 11,27)
2. Os textos:
1. Lucas 1,26-38:
A Anunciação: “Faça-se em mim segundo a tua palavra!”
Saber abrir-se, para que a Palavra de Deus seja acolhida e se encarne.
2. Lucas 1,39-45:
A Visitação: “Bem-aventurada aquela que acreditou!”
Saber reconhecer a Palavra de Deus nos fatos da vida.
3. Lucas 1,46-56:
O Magnificat: “O Senhor fez em mim maravilhas!”
Um canto subversivo de resistência e de esperança
4. Lucas 2,1-20:
O Nascimento: “Ela meditava sobre os fatos em seu coração”
Não havia lugar para eles. Os marginalizados acolhem a Palavra.
5. Lucas 2,21-32:
A Apresentação: “Meus olhos viram a tua salvação!”
Os muitos anos de vida purificam os olhos.
6. Lucas 2,33-38:
Simeão e Ana: “Uma espada vai atravessar sua alma”
Ser cristão, ser sinal de contradição.
7. Lucas 2,39-52:
Aos doze anos no templo: “Então, não sabiam que devo estar com o Pai?”
Eles não compreenderam a Palavras que lhes foi dita!
3. A Missão
Como Maria, meditar e aprofundar a Palavra de Deus na vida e na Bíbllia. Ela nos orienta na escuta e no uso da Palavra de Deus.
5. Atos dos Apóstolos: Fonte de união e de unidade
1. O texto:
“Então voltaram para Jerusalém, do monte chamado das Oliveiras, o qual está perto de Jerusalém, à distância do caminho de um sábado. E, entrando, subiram ao cenáculo, onde habitavam Pedro e Tiago, João e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelote, e Judas, irmão de Tiago. Todos estes perseveravam unanimemente em oração e súplicas, com as mulheres, e Maria mãe de Jesus, e com seus irmãos” (Atos 1,12-14)
2. Breve comentário
Lucas parece um pintor. Pintou o famoso quadro das 120 pessoas (At 1,15), homens e mulheres, todos tendo os mesmos sentimentos, unânimes, todos rezando, preparando-se para a nova manifestação do Espírito Santo. Neste quadro aparecem reunidas, em perfeita harmonia, aquelas pessoas que, nos anos 80 (época em que Lucas escreve), estavam divididas em conflitos e tendências, brigando entre si: a tendência de Paulo, a de Pedro, a de Tiago e dos irmãos de Jesus (1Cor 1,11-12; Gl 2,11-14). Nos anos 80, as comunidades tinham muita autonomia. Cada comunidade tinha o seu rosto e seguia o seu caminho. Umas comunidades, porém, achavam que o seu caminho era melhor que o das outras. Isto provocava tensões e conflitos (1Cor 1,11-12). Ora, aqui, na pintura de Lucas, na descrição da Comunidade Original, bem no começo dos Atos, todos eles estão reunidos em torno de Maria, a mãe de Jesus, que aparece assim como símbolo e fator de unidade.
3. A Missão
Lucas propõe um ideal para preservar a unidade sem destruir a diversidade e sem massificar as pessoas. O fundamento desta unidade se enraíza no fato de todas elas estarem reunidas ao redor de Maria a Mãe de Jesus, rezando, tendo os mesmos sentimentos e vivendo à espera da promessa de Jesus que é o dom do Espírito Santo.
6. No Evangelho de João
1. Os textos:
1. João 2,1-12:
As bodas de Caná: O recado de Maria: “Façam o que ele mandar!”
Seiscentos litros de vinho! O que fizeram com o vinho que sobrou?
2. João 19,25-30:
Ao pé da cruz”: Eis aí o seu filho! Eis aí a sua mãe!”
Na hora da morte nasce vida nova!
2. A Missão
A Mãe de Jesus aparece duas vezes no evangelho de João: no começo, nas bodas de Caná (Jo 2,1-5), e no fim, ao pé da Cruz (Jo 19,25-27). Nos dois casos ela representa o Antigo Testamento que aguarda a chegada do Novo e, nos dois casos, contribui para que o Novo chegue. Maria é o elo entre o que havia antes e o que virá depois. Em Caná, é ela, a mãe de Jesus, símbolo do Antigo Testamento, que percebe os limites do Antigo e dá os passos para que o Novo possa chegar. Na hora da morte, é novamente Maria, a Mãe de Jesus, que acolhe o “Discípulo Amado”. O Discípulo Amado é a Comunidade que cresceu ao redor de Jesus, é o filho que nasceu do AT. A pedido de Jesus, o filho, o NT, recebe a Mãe, o AT, em sua casa. Os dois devem caminhar juntos. Pois o Novo não se entende sem o Antigo. Seria um prédio sem fundamento. E o Antigo sem o Novo ficaria incompleto. Seria uma árvore sem fruto.
7. No Apocalipse de João
1. O texto:
Apoc 12,1-17
O grande sinal no céu: “Uma mulher revestida do sol”
A Vida, apesar de frágil, vence o poder da morte
2. A Missão
A visão da Mulher e do Dragão oferece às comunidades um resumo da história da humanidade, desde a criação até o momento atual, anos 90, época do Apocalipse, em que elas estão sendo hostilizadas pela política do império romano. No momento da criação, Deus tinha pronunciado a sentença contra a serpente e anunciado a vitória da descendência da Mulher (Gn 3,15). Esta vitória acabou de realizar-se no momento da morte e ressurreição de Jesus. Encarando a história desta maneira, o povo das comunidades encontrava força e coragem para continuar na resistência e na luta, sem desanimar. A Mulher em dores de parto simboliza a vida, a humanidade, o povo de Deus, as comunidades perseguidas. Simboliza as mulheres que lutam gerando vida. Simboliza Maria, a mãe de Jesus. Simboliza tudo aquilo que fazemos, as pequenas e grandes lutas do dia-a-dia, para melhorar a situação da vida do povo. As dores de parto simbolizam o sofrimento que a humanidade suporta para defender a vida e fazer nascer vida nova. Simbolizam o momento em que Jesus, a descendência da mulher, está nascendo.
Na Bíblia, a grande luta da história humana é entre Vida e Morte. Desde o primeiro anúncio desta luta no livro de Gênesis (Gn 3,15) até o seu final no Apocalipse (Ap 12,1-3), a Mulher aparece como símbolo da Vida e de todos que lutam pela vida. A figura da Mulher, de Maria, que, no Apocalipse, enfrenta e vence o Dragão continua sendo o símbolo da luta contra a morte em defesa da vida. Assim ela aparece nas grandes devoções populares em quase todos os países da América Latina. Ela inspira a devoção do povo católico a Nossa Senhora de Guadalupe e a Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Este mesmo símbolo da Mulher em luta contra o Dragão chama a atenção para o lugar central que a mulher ocupa nas Comunidades Eclesiais de Base, nas lutas populares, na cultura e nos mitos dos índios, na tradição, na resistência e na religião dos negros.
Concluindo: sugestões para a devoção a Nossa Senhora
1. Evangelho de Lucas: Maria como símbolo e imagem da Igreja:
+ O documento Lúmen Gentium do Vaticano II faz como Lucas. Apresenta Maria integrada na vida da Igreja e não separada como se fosse uma grandeza distinta, à parte.
* É importante que nossas Comunidades saibam aprender a viver a devoção a Nossa Senhora como modelo de como devemos relacionar-nos com a Palavra de Deus e meditar dia e noite na lei do Senhor.
2. Evangelho de Mateus: Maria como mãe de Jesus
+ A imagem que Mateus na genealogia nos apresenta de Maria é bem diferente da imagem tradicional. Maria aparece como pessoa marginalizada pela lei, mas devotada à causa do povo.
* É importante que nossas Comunidades aprendam viver a devoção a Nossa Senhora como acolhimento às pessoas marginalizadas que são a Companhia de Maria.
3. Evangelho de João: Maria como símbolo do Antigo Testamento
+ A imagem de Maria como representante das esperanças do Antigo Testamento que se realizam em Jesus. Ela sabe reconhecer os limites das tradições do seu povo e faz com que o novo possa chegar.
* É importante que, como Maria, nossas Comunidades saibam reconhecer os limites das tradições e saibam apresentar Jesus como a resposta de Deus para as grandes esperanças do povo.
4. Atos dos Apóstolos: Maria como símbolo da unidade
+ A imagem de Maria como símbolo e fator de unidade que através da oração e da espera do Espírito consegue fazer com que as várias tendências aprendam a conviver em harmonia.
* É importante que, nas nossas comunidades, a devoção a Nossa Senhora nos ajude a cultivar a unidade e nos leve a criar formas novas de união e de ecumenismo.
5. Apocalipse de João: Maria como defesa da vida dos perseguidos
+ A imagem de Maria como símbolo da fraqueza na qual se revela o poder libertador de Deus em defesa das comunidades perseguidas pelo império romano (e pelo império neoliberal).
* É importante que nossas comunidades saibam tirar a imagem de Maria da mão dos grandes e saibam descobrir a força de Deus que se esconde na fraqueza.