‘Já deu tudo certo’

‘Já deu tudo certo’

Antonio Claret Fernandes[1]

No primeiro dia do ano me levantei e liguei a TV na esperança de assistir ao Bom Dia Brasil e ver as notícias da Virada, quando deparei com uma missa celebrada por dom Fernando e padre Marcelo Rossi.

Era o momento da comunhão. Agitavam-se lenços brancos e Rossi, de microfone à mão, puxava a música, acompanhado por uma multidão, que lotava o santuário.

 

O refrão do cântico era bastante curioso: ‘Já deu tudo certo (bis), pode confiar, não precisa se preocupar, já deu tudo certo’. É semelhante, embora numa perspectiva diferente, à música de Waldecy Aguiar, na qual talvez a primeira tenha se inspirado: ‘Vai dar tudo certo (bis), se a gente colocar nossa fé em ação, vai dar tudo certo’.

Via-se pelo semblante das pessoas como a melodia lhes entrava na mente e no coração e tomava conta de todo o seu corpo, nesse dia 1º de janeiro de 2013. Fiquei pensando na força psicológica e ideológica da música, e na sua ambigüidade.

Por um lado, aquela espécie de entrega pode significar a fé e a confiança em que Deus, em toda e qualquer circunstância, ainda que na derrota, não abandona os seus filhos. Isso me fez lembrar dom Luciano, mais profeta que santo, comparando a vida a um campeonato: ‘a gente pode perder uma ou outra partida, mas o jogo está ganho’. A vida dele mostra bem o que significa essa afirmação.

‘Já deu tudo certo’ pode significar, por outro lado, uma completa alienação; a ideologia da acomodação, transferindo para Deus o que é responsabilidade nossa. Pode significar, ainda, uma tentativa de se ‘tapar o sol com a peneira’, escondendo a divisão de classe e trabalhando o consenso, tão comum hoje; nesse consenso, é natural a concentração de renda, a exploração do patrão sobre o empregado e a apropriação da natureza. É tida como normal, também, a existência de mansões dos Herodes devidamente protegidas ao lado das manjedouras, sob o bafo dos animais, o risco de deslizamentos, de inundação por enchentes e das balas perdidas.

Penso que por causa dessa ideologia, e não pela fé de quem quer que seja, é que a Globo disponibiliza espaço tão nobre para uma celebração de missa semanal. É como uma matriz virtual que invade todas as casas.

A imagem é invejável. Não chamaria a isso, porém, de evangelização, a qual, numa sã teologia, supõe a pertença a uma comunidade. No máximo, seria um show da fé, barato e com audiência garantida.

Há outra música de comunhão, entre tantas, nascidas no chão da vida, no coração das Comunidades Eclesiais de Base, lugar da evangelização libertadora. A música é singela, mas creio não caber na telinha da Globo, apesar de tão grande e tão abrangente.

Parte de seu refrão canta que ‘comungar é tornar-se um perigo, viemos para incomodar’. E na estrofe afirma que ‘o poder tem raízes na areia, o tempo faz cair, união é a rocha que o povo usou para construir’.

Pela ideologia do consenso, essa música não caberia, também, em nossas vidas. Por que se há de ser um perigo se ‘já deu tudo certo?’. Se nas igrejas se aninham cobras e lagartos? Se trabalhadores e patrões sobem no mesmo palanque? Se o Trabalho e o Capital vão de mãos dadas para a festa de 1º de maio?

Mas as músicas engajadas e a luta ainda cabem nas vidas comprometidas. Ao menos aqui na Amazônia existe muita coisa dando errado.

No dia 31 de dezembro, por exemplo, fomos ajudar Evandro plantar milho. Uma roça pequena. Após a capina de enxada, sem nenhum subsídio para nada, e sem luz em casa, ele junta o mato maior e joga a semente na terra com uma plantadeira manual. O proprietário do lado, porém, faz capina química de forma intensiva. O veneno usado é o Roundup Original, da Monsanto; incluído na categoria III, e representa sérios riscos à saúde humana. Os trabalhadores sequer usam equipamentos de segurança e a terra está esturricada.

Esse fato ilustra um processo de colonização da Amazônia que, definitivamente, não deu certo. Depois da terra mansa, com o suor do trabalhador, entra o veneno, o boi, a soja. Milhares de famílias migraram para cá de diferentes regiões do Brasil movidas pela falácia ‘terra sem homem para homem sem terra’. Com muito sacrifício, quando muitos pagaram com a própria vida, conquistaram um lote, mas hoje voltam a ficar sem terra, pressionados por madeireiros, criadores de gado, plantadores de soja, mineradoras e barrageiros. Ou desmotivados com a vida no campo por falta de políticas públicas que lhes garantam o mínimo de dignidade.

Não é verdade que a história se repete. É o mesmo processo de colonização acontecendo, nas suas diferentes fases, onde o Capital e o Estado brasileiro caminham de mãos dadas.

Dom Hélder falava, com esperança, da ‘minoria abraâmica’, uma alusão à força do pequeno. Há um projeto de igreja engajada que tem seus seminários praticamente vazios porque lideranças leigas, padres e bispos são perseguidos e mesmo mortos. Por outro lado, há um tipo de evangelização que assimilou a libertação na sua linguagem, mas sem um conteúdo histórico.

Esse projeto de evangelização segue crescendo. Não sei se ela é poderosa porque não explicita os conflitos ou se não explicita os conflitos porque é poderosa.

Seus seminários e conventos ficam cada vez mais cheios. Em suas dioceses, os padres se atropelam uns nos outros. Seus santuários arrebatam multidões, a ponto de esvaziarem as comunidades vivas e comprometidas. As ofertas gordas, provenientes das mais longínquas regiões do Brasil, são bem maiores do que o dízimo partilhado e consciente, em comunidade.

Nessa mesma vertente, igrejas se abrem como botecos, a cada esquina. Existe promessa de cura para tudo, e de muita prosperidade.

Nada disso significa, porém, que, finalmente, ‘já deu tudo certo’ e, como se diz, agora ‘o mundo encontrou Deus’. Muito ao contrário! Não pode ter tanto sucesso quem é seguidor de um derrotado, morto na cruz. O lugar do encontro com Deus não será nunca entre os que crucificam, mas entre os crucificados.

Altamira, Pará, Brasil, 06/01/2013.

 

 

 


[1] Padre da Arquidiocese de Mariana, MG; militante do MAB – Movimento dos Atingidos por barragens. Email: claret13@yahoo.com.br

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