AS RELAÇÕES DE GÊNERO E A UTOPIA DE JESUS (Lc 20,27-38). Por Marcelo Barros

AS RELAÇÕES DE GÊNERO E A UTOPIA DE JESUS (Lc 20,27-38). Por Marcelo Barros

Marcelo Barros, monge irmão, biblista e teólogo da Teologia da Libertação

Nesse 32º domingo comum do ano C, o evangelho de Lucas (20, 27- 38) nos traz o único contato que os evangelhos mostram ter havido entre Jesus e a classe sacerdotal do templo que era do grupo dos saduceus.

Os evangelhos, escritos nos anos 70 e 90, revelam forte conflito entre Jesus e dois grupos religiosos: o dos fariseus e o dos escribas. De fato, esses dois grupos coordenaram o Judaísmo rabínico depois da guerra do Império Romano contra Israel e da destruição do templo de Jerusalém (ano 70 da era cristã). Provavelmente, as polêmicas que os evangelhos contam terem ocorrido entre Jesus e os fariseus e entre Jesus e os escribas foram escritos nos anos 80 e retratam mais os debates e dificuldades das comunidades cristãs do final do século I com os rabinos do Judaísmo daquela época do que os conflitos que, em sua época, anos 30, Jesus tenha vivido com esses grupos religiosos.

Conforme os evangelhos, com o grupo dos sacerdotes (saduceus), Jesus não teve, praticamente, contatos. Eles representavam a religião atrelada ao poder imperial. A única coisa que sabemos sobre esse grupo é que os saduceus se diziam descendentes do sumo sacerdote Sadoc, por isso se chamavam saduceus e só aceitavam como livros sagrados a Torá (o Pentateuco,os cinco primeiros livros da Bíblia) e não acreditavam na ressurreição dos mortos.

Conforme o evangelho de hoje, é esse o assunto da polêmica que alguns saduceus armam com Jesus. Ele estava em Jerusalém já consciente do que lhe iria acontecer, pois estava ameaçado de morte e de ressurreiçãoPor isso, esse debate sobre a ressurreição ainda parece mais estranho. Provavelmente, ninguém entre nós escolheria esse texto do evangelho para ler em um encontro com juventude ou com pessoas de fora da Igreja e ligadas à cultura contemporânea. No entanto, para Jesus, deve ter soado como se aqueles homens religiosos estivessem discutindo a sorte dele. É como se dissessem: “Você vai morrer inutilmente e nada vai sobrar de tudo isso. Sua luta não vale a pena”.

Para Jesus, a ressurreição não era apenas uma questão de continuidade da sua vida pessoal. Não se tratava apenas de sobrevivência, ou de revitalização do seu corpo. Jesus acreditava na ressurreição da vida. Plenitude de Vida, ou, como afirma o quarto evangelho: vida em abundância (Jo 10,10). Isso significa que o projeto divino é a ressurreição. Por isso, Jesus diz: “Deus é Deus dos vivos e não dos mortos”. Portanto, nessa discussão de Jesus com os saduceus, o que está em jogo não é apenas a crença na vida depois da morte. É o projeto divino a partir do aqui e do agora.

O texto parece totalmente preso à cultura antiga. Para compreendê-lo, é preciso conhecer, na antiga cultura judaica, a chamada “lei do levirato”. Conforme essa lei, uma mulher que ficava viúva pertencia, por direito, ao parente mais próximo do falecido. Portanto, a mulher era sempre propriedade dos homens da família. Assim, a herança do falecido continuava com a família dele. A viúva deveria casar com o parente mais próximo do marido falecido.   

Para mostrar que a ideia de ressurreição parecia um absurdo, os saduceus teriam contado a Jesus uma história quase impossível sobre uma mulher que ficou viúva de sete irmãos, com os quais foi se casando sucessivamente. Os saduceus queriam saber de qual dos sete, ela seria esposa na ressurreição dos mortos. E Jesus responde:

“Vocês estão errados em imaginar a ressurreição como continuidade dessa sociedade patriarcal, na qual a mulher sempre pertence a algum homem. Na ressurreição, todos serão como anjos, isto é, livres. Não haverá casamento patriarcal”.

Em determinados tempos da história, esse evangelho foi contado por monges para justificar o celibato. Diziam que as pessoas celibatárias inauguram desde agora um estilo de vida que seria essa que Jesus anuncia ser a dos anjos do céu: não casam, nem se dão em casamento.

É claro que esse tipo de interpretação é projeção dos costumes da Igreja medieval na cultura dos evangelhos. De modo algum, Jesus quis falar sobre celibato. A cultura semita era de valorização das relações corporais e da família, só que patriarcal e para preservar a propriedade patriarcal. É a cultura patriarcal que Jesus contesta e diz que o reino de Deus deve superar. 

Atualmente, a discussão sobre esses assuntos não incide mais sobre celibato. Em grupos conservadores de Igreja a discussão agora é sobre o que chamam de “ideologia de gênero”. É triste ver, em nome de Jesus, ministros cristãos inventarem “ideologia de gênero” e lutar contra esse fantasma que os próprios intelectuais de direita inventaram. Pior ainda perceber que fazem isso para defender o Patriarcalismo e lutar contra a liberdade das pessoas e a igualdade nas relações de gêneros. Exatamente como os saduceus da época de Jesus, membros da classe alta que dominavam o templo e o sinédrio, esses eclesiásticos mais ligados ao fundamentalismo, ao dualismo, ao moralismo e ao rigorismo litúrgico, identificam a fé cristã com a cultura patriarcal.  

Ao contrário do que essas pessoas dizem, Jesus deixa claro que a ressurreição, ou seja, a utopia que, em nome de Deus, ele traz ao mundo, vai transformar todas as estruturas humanas e inaugurar nova forma das pessoas se relacionarem.

Esse evangelho ensina que não é possível ser revolucionário no ponto de vista social e político e, ao mesmo tempo, ser fechado e conservador no que diz respeito à ética pessoal e às relações de gênero. O evangelho nos chama a antecipar a utopia de um mundo novo possível aqui e agora.

Existe, sim, um chamado divino a viver hoje as relações afetivas e sociais de um modo novo, onde se supera o machismo e o patriarcalismo, o que antecipa o reino de Deus e a ressurreição. Vivemos isso quando conseguimos desprivatizar a irmandade e alargar a comunhão das pessoas que amamos, para um amor cada vez mais amplo.

Nas comunidades negras e de espiritualidades originárias, as pessoas podem viver sua vida afetiva e sexual com liberdade, embora devam obedecer a certas normas, próprias de cada Orixá ou entidade. Deve respeitar as diferentes energias não as misturando. Podemos dizer que, como em todo caminho de espiritualidade autêntica, é possível liberdade afetiva e sexual, mas todos e todas são chamados(as) a integrar sua vida afetiva e sexual no conjunto do seu projeto de vida.

É esse novo modo de viver as relações, que expressa a canção chilena “Gracias à la Vida”, de Violeta Parra. Ali se canta a alegria de um amor apaixonado e, portanto, único, mas que é tão forte que transcende e faz com que a pessoa que ama desse modo, passe a olhar com amor a todas as outras pessoas e a todo o universo. “Ao ver teus olhos, amo os olhos de todas as outras pessoas”. “Ao ouvir tua voz, aprendo a escutar com amor os outros”. Ao sentir teus passos, passo a amar os passos de todos os humanos” e assim por diante. Esse é o desafio de uma transcendência no modo de amar. Nos evangelhos, Jesus diz de forma contundente e provocadora: “Quem faz a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 35). 

Sobre a vida depois da morte, o próprio Jesus não esclarece nada. A única coisa que diz é que se Deus é Deus, só pode ser “Deus dos vivos e não de mortos”. Para afirmar isso, se baseia no relato do Êxodo que conta a manifestação divina a Moisés na sarça ardente (Êxodo 3). Isso significa que Deus é Deus, ao se apresentar como Libertador. Apresenta-se como Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, que para Moisés eram ancestrais que tinham morrido, há muito tempo. Mas, que para Jesus, estão vivos.

Isso revela a importância da nossa relação com os ancestrais. A sociedade atual rompeu com isso e a própria fé cristã, inserida nessa cultura de produção e consumo considera como se a relação das tradições indígenas e afrodescendentes com os ancestrais fosse mera superstição ou coisa de cultura primitiva.

No Brasil, novembro é o mês da união e da consciência negra. É importante que nós, cristãos e cristãs, possamos dar o testemunho de valorizar tradições religiosas afro e com elas aprendermos a ser mais humanos e amorosos. Esse evangelho de hoje nos chama a retomar essa relação de amor e de memória afetuosa e aprendizado permanente com os/as parentes que nos antecederam. Podemos fazer isso, sendo, ao mesmo tempo, livres para viver um tempo novo e um jeito novo de ser como testemunhas da utopia na qual acreditamos e que desde já somos chamados/as a viver.

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