HERANÇA DO PAPA LEÃO XIII COM RERUM NOVARUM – Por Dom Geraldo dos Reis Maia

HERANÇA DO PAPA LEÃO XIII COM RERUM NOVARUM – Por Dom Geraldo dos Reis Maia, Bispo da Diocese de Araçuaí (MG)

Dom Geraldo Maia, bispo da Diocese de Araçuaí, MG. Foto Reprodução

A eleição do Papa Leão XIV trouxe “coisas novas” à Igreja, nova esperança que se descortina no horizonte da história. O novo Papa, reunido com os Cardeais, na manhã do dia 10 de maio, revelou que a inspiração primeira para a sua escolha do nome, a ser chamado como Sucessor de Pedro, foi o Papa Leão XIII, que exerceu o ministério petrino de 1878 a 1903. Este Papa deixou grande legado à Igreja, abrindo suas portas para a questão social. Leão XIII inaugurou a Doutrina Social da Igreja (DSI), enquanto sistematização teológico-pastoral. 

O atual Papa disse que “Leão XIII, com a histórica encíclica Rerum Novarum, enfrentou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial. Hoje, a Igreja oferece a todos o seu patrimônio de Doutrina Social para responder a outra revolução industrial, os desenvolvimentos da Inteligência Artificial que comportam novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”. Ao escolher o seu nome, o novo Papa teve presente as sérias questões abordadas por Leão XIII e, certamente, será uma inspiração para o pontificado que ora se inicia, aberto aos grandes desafios sociais que enfrentamos no tempo presente. 

No final do século XIX, a Revolução Industrial promovia uma terrível exploração dos trabalhadores na Europa e nos Estados Unidos. Era um verdadeiro regime de selvageria e escravidão lançado contra os trabalhadores para gerar mais lucro aos burgueses. Este era o incrível meio de devastação empregado pelo sistema capitalista, que crescia cada vez mais. Essa lamentável e desumana situação social foi o meio propício para a elaboração da teoria do socialismo marxista: em 1.848, Marx havia publicado o “Manifesto do Partido Comunista”, e, em 1.867, o primeiro volume de “O Capital”, sua principal obra contendo as teorias do comunismo. 

A Igreja sentia a necessidade de manifestar-se, pois tinha consciência de que poderia contribuir para superar os principais desafios da questão social, a partir de uma reflexão do Evangelho. O Papa Leão XIII se inspirou no trabalho da “Union de Fribourg” (União Católica de Estudos Sociais e Econômicos) para elaborar sua famosa Carta Encíclica. Estimulado pelos pedidos da hierarquia da Inglaterra, Irlanda e Estados Unidos, no dia 15 de maio de 1.891, o Papa publicou a Rerum Novarum, abrindo um novo horizonte de ensinamentos da Igreja que se tornou o marco para a elaboração da Doutrina Social. 

Este documento se tornou importante não só para a história da Igreja e sua doutrina, mas também para toda a sociedade. É notável como cresceram, ainda no século XIX e no século passado, as associações de operários e sindicatos na busca de superar os desafios gerados pela questão social. A voz da Igreja se fez ouvir e foi respeitada. Isso colaborou para que os direitos dos operários sejam mais respeitados e a sociedade caminhe na trilha da justiça. É claro que os problemas sociais não foram superados de imediato, porém a Igreja procurou dar a sua contribuição de acordo com sua credibilidade moral e experiência histórica. 

Logo na introdução da Encíclica, Leão XIII já aborda a questão operária, partindo de uma análise da realidade do mundo daquele tempo. Com coragem, o Papa alerta para um terrível conflito gerado por tantos fatores provenientes das “coisas novas” do mundo industrializado: “Efetivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a afluência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um terrível conflito”  (RN, 1). 

 Leão XIII diz que o trabalhador não pode ser obrigado a trabalhar mais que suas forças. Daí o direito a uma justa jornada de trabalho e necessário descanso (RN, 59). As legítimas diferenças de idade e sexo devem também ser respeitadas no exercício do trabalho. Diante da exploração da mão-de-obra infantil e feminina, o documento diz que não se pode exigir de uma criança ou de uma mulher as mesmas disposições de um homem formado. O salário deve ser justo para todos, a fim de suprir as necessidades legítimas do trabalhador. 

Em várias partes do documento, Leão XIII faz questão de ressaltar a missão da Igreja, que tem uma doutrina importante sobre a questão social. Ela tem não só o direito, mas também o dever de se pronunciar sobre essa questão, pois sua doutrina tem origem no próprio Evangelho que não se reduz a uma mensagem espiritual.  A Igreja pode e deve colaborar para a solução dos conflitos sociais. Lembramos aqui os conflitos de classes que já existiam e se intensificavam. De um lado, os ricos opulentos desejando sugar sempre mais dos empobrecidos, segundo a lógica do capitalismo. De outro lado, a proposta marxista de luta de classes para superar a terrível exploração. A proposta da Igreja é alternativa: busca unir as classes segundo o direito dos trabalhadores e o dever dos burgueses. 

A missão da Igreja não é somente indicar o caminho que leva à salvação após a morte. Ela tem como missão instituir e educar as pessoas segundo a herança recebida do próprio Evangelho. Também se esforça para que as pessoas se deixem conduzir pelos preceitos divinos. Neste sentido, a ação da Igreja é soberana. Os instrumentos que ela utiliza para atingir seu fim foram recebidos do próprio Jesus Cristo, por isso são eficazes (RN, 41). A própria história do cristianismo ilustra essa eficácia (RN, 42). A Rerum Novarum é um chamado do Papa Leão XIII a unir fé e vida, Evangelho e realidade social. 

Como fruto deste documento, podemos relacionar as principais propostas de Leão XIII para um legítimo programa de política social: a) o acesso e a garantia da propriedade para todos; b) direito ao repouso dominical; c) Limitação da jornada de trabalho (estava à mercê dos administradores); d) definição da justiça do salário, que deve garantir condições de vida digna para o trabalhador; condições de vida digna para sua família; possibilidade de poupança para enfrentar imprevistos. O Papa consagra, assim, o salário-família como dever de justiça e a previdência privada como garantia para o trabalhador e sua família. 

Leão XIII chamou a Igreja a refletir sobre as coisas novas que surgiram da primeira revolução industrial. Leão XIV nos chama hoje a aprofundar as novas coisas que surgem no cenário da história, “os desenvolvimentos da Inteligência Artificial que comportam novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho”. A Igreja terá muito a contribuir neste diálogo social, pois traz consigo um rico patrimônio forjado a partir do Evangelho e aprofundado pelos documentos sociais. 

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado.