JUBILEU PARA TODA A HUMANIDADE (O NOVO JUBILEU, A FÉ BÍBLICA E IGREJA EM SAÍDA) – Por Marcelo Barros

JUBILEU PARA TODA A HUMANIDADE (O NOVO JUBILEU, A FÉ BÍBLICA E IGREJA EM SAÍDA) – Por Marcelo Barros[1]

Marcelo Barros. Foto: Paulo Araújo

Há mais de dez anos, o papa Francisco tem provocado as Igrejas e o mundo com algumas palavras-chave, que, intercedendo às pessoas e às comunidades para que deem novos passos na direção da renovação eclesial que o Concílio Vaticano II propôs (1962-1965). Como se pode comprovar nos acontecimentos históricos, por diversos fatores, essa renovação conciliar foi interrompida durante, ao menos, quatro décadas, especialmente pela atuação de papas, bispos, padres e grupos católicos tradicionalistas.

Há dez anos, em meio às contradições da própria estrutura, mas, de forma profética e audaz, o papa Francisco tem proposto princípios como “Igreja dos pobres, misericórdia, Igreja em saída, sinodalidade e outros critérios para que as comunidades cristãs voltem às fontes do Evangelho e da fé e, ao mesmo tempo, dialoguem com a humanidade e se coloquem a serviço da paz, da justiça e do cuidado com a Mãe-Terra e a Vida.

Feitas estas considerações, é pertinente nos perguntarmos no que a convocação do novo Jubileu da Esperança, convocado pelo papa Francisco e marcado para o ano de 2025, tem relação  com esse caminho de renovação eclesial. Principalmente, é urgente pensar em que esse Jubileu poderá contribuir com as atuais causas urgentes e necessárias da humanidade, especialmente as que dizem respeito às pessoas empobrecidas e às minorias.

O papa Francisco convocou esse novo Jubileu ordinário para 2025 através da Bula Spes non confundit, (A esperança não confunde), de 9 de maio de 2024. A bula papal se refere ao início da história dos jubileus de forma positiva. No entanto, não há como esquecer que a instituição do Jubileu começou em uma Igreja que ainda se movia com o espírito de Cruzadas e os fieis sofriam o peso do sistema de penitência que, na época, parecia ser o elemento mais importante da fé. A Igreja ensinava que Deus perdoa gratuitamente a culpa do pecado, mas, além da culpa, o pecado acarreta uma pena. Por essa pena que o pecado gera, é necessário pagar, em penitência e (ou) em dinheiro.

Essa distinção entre culpa e pena do pecado foi importante para os cofres da Igreja medieval. Ao criar o primeiro Jubileu no ano 1300, o papa Bonifácio VIII incentivou a peregrinação a Roma, seguida das exigências para se receber a indulgência plenária das culpas e das dívidas [2].

Neste percurso histórico, sabe-se que, desde o começo, o assunto das indulgências foram motivo de divisão e de conflitos na Igreja. No século XVI, o conflito com Lutero e os reformadores começou, principalmente, sobre a questão das indulgências. Até hoje, nos diálogos entre as Igrejas cristãs, o assunto das indulgências provoca divisão. Na preparação do Jubileu do ano 2000, a Federação Luterana Mundial se dispôs a participar da preparação do Jubileu para propor ao mundo o perdão das dívidas econômicas dos países pobres. No entanto, em Roma, os irmãos e irmãs luteranos ficaram tão impressionados com o eclesiocentrismo e a arrogância com a qual senhores da hierarquia católica davam ao Jubileu a direção de uma devoção medieval, centrada na obtenção da “indulgência plenária” que decidiram deixar a comissão e declararam que se afastavam porque a penitência deveria ter como meta o louvor de Deus e não a instituição eclesiástica. Na nota publicada para explicar sua saída, declararam: “o centro da fé não pode ser a Igreja e sim unicamente Jesus Cristo” [3].  

Neste Jubileu da Esperança que o papa Francisco convoca para 2025, o site oficial do Jubileu afirma:

“O sinal peculiar e identificador do Ano Jubilar, tal como foi transmitido desde o primeiro Jubileu no ano 1300, é a indulgência que “pretende exprimir a plenitude do perdão de Deus que não conhece fronteiras” através do Sacramento da Penitência e dos sinais da caridade e da esperança»[4].

Ressalte-se que a primeira questão que esse documento suscita é uma questão de base. Não se pode negar que, queira a hierarquia romana ou não, entre os católicos e católicas conscientes, no mundo atual, um número cada vez menor  e justamente os menos críticos vivem ainda hoje essa cultura ligada ao pecado e à necessidade de buscar frequentemente o sacramento da Penitência, como era praticado há 50 anos.

Pensem vocês mesmos (as): em nossas comunidades, quantas pessoas estão seriamente preocupadas em obter da hierarquia eclesiástica o perdão das culpas e das penas do pecado? Aliás, atualmente, quantos católicos e católicas têm conhecimento do que significa indulgência plenária?

Atualmente, a quantos católicos e católicas, interessa que o papa abra as portas santas das basílicas papais de Roma para receberem indulgência plenária?

Parece que a linguagem e o método com os quais esse Jubileu está sendo convocado supõe um modelo de Igreja-Cristandade que deveria ter sido superado, principalmente, nesse contexto de uma Igreja sinodal e que valoriza as Igrejas particulares. No Avvenire, jornal diário da Conferência dos Bispos Católicos Italianos (CEI), uma leitora chamada Maria Pia Vinciguerra escreveu como pergunta ao editor do jornal: “Esse jubileu se arrisca de perder o seu verdadeiro sentido. Em Roma, se multiplicam canteiros de obra, os alugueis e preços de casa sobem de forma descomunal e a prefeitura se prepara para receber ao menos quatro milhões de turistas ou peregrinos. Como será que Jesus Cristo veria isso?”[5].

Certamente, podemos pressupor que a maioria dos irmãos e irmãs, agentes de pastorais sociais estejam preocupados (as) em celebrar esse Jubileu não no contexto da velha Cristandade e sim como evento de uma comunhão de Igrejas locais com outra eclesiologia e outra espiritualidade.

É verdade que a comunhão das Igrejas locais (ou particulares) é a Igreja Universal, da qual a Igreja particular de Roma é primaz e ministra da Unidade e não deve ser confundida com a Igreja Universal. Se isso não fica claro,  provavelmente, mesmo desejando uma renovação eclesial, estaríamos vivendo e alimentando o antigo sistema religioso, que não só é estranho ao evangelho, mas vai contra a proposta de Jesus.

O papa propõe que esse seja o Jubileu da Esperança. Cabe a cada um (uma) de nós garantir que a esperança lançada nesse Jubileu se diferencie de um conceito ainda comum no nosso mundo de compreender a esperança como mera passividade. Como cantava Geraldo Vandré:

“Esperar não é saber.

Quem sabe faz a hora,

não espera acontecer”.

De fato, o sentido bíblico da esperança é a expectativa e preparação do reino de Deus, através de sinais como as curas e a comunhão que antecipam o reinado divino no mundo. No Brasil, o educador Paulo Freire ressaltou a esperança que vem do verbo esperançar e não apenas de um esperar que pode ser passivo. Essa intuição freiriana é profundamente bíblica. Nessa mesma compreensão, Byung-Chul Ham, filósofo coreano radicado na Alemanha, afirma: “Ao contrário do otimismo que não se coloca em caminho porque não carece de nada para existir, a esperança representa um movimento de busca. É uma tentativa de ganhar apoio e direção. Avança para o desconhecido e o que ainda não é, ultrapassando o sido, indo além do já existente. (…) Põe-se a caminho do novo, do completamente diferente, daquilo que nunca existiu[6].

Isso coincide com o que em uma de suas catequeses, o papa Francisco ensina:

“O apóstolo Paulo nos ajuda a colocar em foco o laço estreitíssimo entre a fé e a esperança. Ele de fato afirma que Abraão “acreditou, firme na esperança contra toda esperança” (Rm 4, 18). A nossa esperança não se rege por raciocínios, previsões e seguranças humanas; e se manifesta lá onde não há mais esperança, onde não há mais nada em que esperar, justamente como acontece com Abraão, diante de sua morte iminente e da esterilidade da mulher Sara. Aproximava-se o fim para eles, não podiam ter filhos e naquela situação Abraão acreditou e teve esperança contra toda esperança. E isso é grande! A grande esperança se enraíza na fé, e justamente por isso é capaz de seguir além de toda esperança. Sim, porque não se baseia na nossa palavra, mas na Palavra de Deus[7].

1 – Jubileu de uma Igreja em saída e de tipo sinodal?

É possível conceber um Jubileu que se realize em um modelo novo de Igreja?  Ou será que os irmãos nos ministérios ordenados, bispos em suas dioceses, párocos em suas paróquias mais abertas ao mundo e também os irmãos e irmãs, agentes de pastoral, inseridos ena caminhada das comunidades eclesiais de base e nos movimentos sociais, mesmo se dedicando com todas as suas forças à renovação da Igreja na linha do evangelho, podem estar, contraditoriamente, reforçando o modelo eclesial da velha Cristandade?

É preciso sermos sinceros e realistas: nesse modelo antigo, não parece haver lugar para propostas como sinodalidade, Igreja em saída e Cristianismo da Libertação. E o clima de desilusão que vimos nesse final do Sínodo sobre a sinodalidade revela isso claramente. Depois de tantos anos de diálogo, o papa reserva a si dez questões fundamentais a serem decididas e o sínodo se conclui por certo esvaziamento de suas expectativas. O documento final chega a afirmar que Jesus Cristo quis e fundou a estrutura hierárquica da Igreja. Isso significa que sinodalidade sim, mas desde que não toque no poder absoluto da hierarquia. E continuamos assim a procurar o quadrado do círculo. 

Isso é grave porque essa tensão que existe nos ambientes pastorais e a encruzilhada com a qual se defronta qualquer pessoa que se insere nos muitos esforços e trabalhos de preparação a esse Jubileu da Esperança 2025 sabe que o mundo precisa urgentemente de um jubileu de paz e de justiça. E o povo de Deus tem o direito de viver um jubileu novo e mais profundo.  

Na bula de convocação para o Jubileu, o papa Francisco afirmou claramente: “Penso em todos os peregrinos de esperança, que chegarão a Roma para viver o Ano Santo e em quantos, não podendo vir à Cidade dos apóstolos Pedro e Paulo, vão celebrá-lo nas Igrejas particulares” (n. 1).

Na bula, o papa ainda propõe que as dioceses retomem e valorizem “os missionários e missionárias da misericórdia” (n. 23), especialmente para ir onde as pessoas têm mais dificuldade de manter a esperança. Pede que “nos mantenhamos todos e todas mais próximos das juventudes” (n. 12). Propõe que, nesse jubileu, se pense um modo de celebrar o martírio que reconheça e valorize os mártires das diversas Igrejas cristãs que constituem o que o papa chamou de “ecumenismo de sangue” (n. 20).

Além disso, o papa propõe que o Jubileu tenha um alcance que vá para além das Igrejas. Expressa e defende a construção de  “uma aliança social em prol da esperança”, iniciativa cada vez mais necessária no mundo dos empobrecidos e empobrecidas, que a sociedade dominante trata como descartáveis. Pede que a imensa quantia econômica gasta nas guerras seja transferida para o cuidado das pessoas mais pobres e a defesa da Mãe-Terra e da natureza, assim como propõe que as potências ricas cancelem as dívidas dos países pobres (n. 16). (Trata-se de cancelar e não de perdoar, já que, em geral, essas dívidas já foram mais do que pagas). Pede que o jubileu possa servir para a anistia de prisioneiros/as e para a abolição total da pena de morte, ainda vigente em alguns países.

Algumas dessas propostas, o papa já tinha formulado em encíclicas como a Fratelli Tutti e em muitos dos seus discursos. O fato de não terem sido suficientemente valorizadas, ou terem exercido pouca ou nenhuma consequência na política dos países, mesmo aqueles cujos governos se apresentam como cristãos, comprova que a Cristandade, especialmente aquela que estava amalgamada com Estado, não existe mais como a conhecíamos. Disso decorre que a hierarquia eclesiástica não é mais referência de orientação para nenhum governo ou país.

Por outro lado, o fato de que até aqui essas propostas não têm conseguido criar nas bases uma contracultura que acentue esses valores de paz e de justiça ecossocial revela que, no fundo, muitas Igrejas locais não aderem às propostas do papa, quando essas se colocam na direção da superação do velho modelo de Igreja-Cristandade e na construção de uma comunhão eclesial baseada na sinodalidade e em saída, a partir das periferias do mundo.

Diante do que até aqui, foi explanado, alguém pode se perguntar até que ponto as categorias de sinodalidade e de Igreja em saída mudam alguma coisa na forma como esse novo jubileu está sendo preparado e, concretamente, se realizará.

A questão fundamental é se, neste novo tempo, do seio estéril da velha Sara poderá surgir uma vida nova, ou seja, um novo Isaac, filho da esperança. Em outras palavras: o que será possível, mesmo a partir das velhas estruturas, pensar e fazer como profecia da esperança para o mundo e para as comunidades, no contexto desse Jubileu da Esperança? Que luzes de esperança, mesmo pequenas, poderão surgir e refulgir?

A resposta a essas perguntas não poderá vir da Bíblia, nem de nenhuma tradição antiga. É um desafio novo que só poderá ser respondido a partir da abertura a uma nova perspectiva de eclesialidade e de missão. No entanto, será sempre útil ter clareza dos fundamentos bíblicos que podemos encontrar para o que hoje se chama Jubileu na Igreja Católica.

2 – O “sábado” na aliança divina[8]

A legislação na qual está assentada a proposta do Jubileu se encontra especificamente no capítulo 25 do livro do Levítico e tem alusões em alguns trechos das profecias do 3º Isaías, o que deixa claro que se trata de uma legislação que surgiu depois do tempo do cativeiro da Babilônia. Isso significa que a ideia do Jubileu bíblico provém do século V antes de Cristo. 

Quando estudamos hoje os diversos códigos de leis contidos nos livros do Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, encontramos muitas leis e costumes que eram comuns a diversos povos e legislações antigas, hoje, conhecidas. No entanto, as leis ligadas ao sábado, ao ano sabático e ao Jubileu, não se encontram equivalentes em outros códigos antigos do Oriente Médio. É próprio da fé bíblica. A lei sobre o sábado tem várias formulações:

Seis dias trabalharás. No sétimo dia, deves descansar para que repousem o teu boi, o teu cavalo e tenham um respiro o filho de tua serva e o estrangeiro” (Ex 23, 12). Então, o primeiro significado do sábado é ser tempo de descanso: descanso das pessoas, dos animais e da própria terra. Também na proclamação do decálogo (Ex 20, 8- 11), a proposta é “santificar o dia do sábado”. Antes de tudo, essa santificação se dá não para que se faça algum culto ou rito especial, mas simplesmente pelo fato de não se trabalhar. Portanto, o mais sagrado é o descanso. É o direito ao descanso da Terra e dos que trabalham no campo. Nesses casos, a lei busca proteger a vida dos pobres e pôr um freio à exploração dos meios de produção.

É claro que a exigência do Sábado foi especialmente importante na época do cativeiro babilônico, quando os israelitas exilados, mas também os que ficaram na terra como servos dos proprietários babilônicos, reivindicavam um dia livre para descansar e reconstruir sua consciência e sua fé. Mesmo se hoje, já não se defende mais a teoria das quatro fontes do Pentateuco, conforme a maioria dos estudos, foi a partir da experiência do cativeiro babilônico, que foi escrito o relato da criação que se encontra na primeira página da Bíblia (Gn 1, 1 a 2, 3). Nesse texto, a plenitude ou cume de toda a criação é o descanso do Senhor (JHWH), para, assim, legitimar o descanso dos escravos hebreus. Nos seus inícios, o sábado teve assim um sentido social e religioso libertador (Dt 5,14-15).

Segundo a lei, assim como os dias têm o seu sábado (o sétimo dia), também os anos têm o sábado de anos (o sétimo ano). Mais do que apenas o descanso, o ano sabático era a proposta de libertar os escravos (ninguém deveria ser escravo por mais de seis anos). Para isso, se deveriam perdoar as dívidas. Comumente era o endividamento que fazia com que as pessoas caíssem escravas dos credores e era preciso dar o descanso à terra (Cf. Ex 21, 2 ss; 23, 10 e Lv 25).

Na prática, a lei do ano sabático era difícil para um povo que vivia da agricultura e dependia das colheitas. Como deixar a terra um ano inteiro sem cultivar? Provavelmente, o ano era sabático para alguns e o próximo ano era sabático para outros, de modo que, enquanto uma turma descansava, a outra trabalhava. Não era possível que todos parassem ao mesmo tempo. Também, possivelmente na história, os ricos começaram a encontrar formas de exigir pagamento da dívida. Se no próximo ano, automaticamente, a dívida teria de ser perdoada, o devedor prometia ao credor: “Por favor, me ajude que eu prometo pagar, mesmo em ano sabático”. E assim o ano sabático não funcionava do modo como tinha sido o projeto dos profetas.

Quando o tempo do exílio babilônico terminou (538 A. C), a elite judaica que voltou para Jerusalém quis reconstruir o templo, refazer a cidade e as instituições do passado. Uma comunidade discípula do profeta Isaías (comumente chamada de 3º Isaías) se opôs a esse projeto e mostrou que o prioritário era reconstruir a vida e a liberdade do povo. O mais urgente era “proclamar um ano de graça e de justiça do nosso Deus” (Is 61,1- 4).

Conforme Lucas, Jesus tomou esse texto para ler na sinagoga em Nazaré e ali anunciar o seu projeto de vida e missão (Lc 4, 16- 21)[9].

3 – A instituição do Jubileu[10]

 É provável que o Ano Jubilar tenha sido instituído, quando os profetas perceberam que o ano sabático já não funcionava. De acordo com o que está escrito no capítulo 25 do livro do Levítico, já não basta a instituição de um ano sabático, de sete em sete anos. Agora, ao menos de 50 em 50 anos, ou seja, no ano seguinte ao sétimo ano de sete sabáticos, ocorreria o Jubileu. Chama-se assim por causa do yobel, o chifre de carneiro que servia de trombeta e deveria ser tocado para o começo do ano de libertação.  

O ano do Jubileu consistiria em principalmente quatro elementos ou ações necessárias:  

1º  – o perdão das dívidas – de todas as dívidas.

2º – a libertação dos escravos e escravas.

3º – a reforma agrária, ou seja, a redistribuição das terras.

4º – o descanso da terra (hoje, diríamos ecologia integral).

Vale a pena perceber que até hoje no mundo, talvez sejam esses pontos fundamentais que unem os povos da Terra em uma luta conjunta.

Quando a parte do povo judeu que tinha sido exilada voltou da Babilônia para a Judeia, encontrou suas antigas terras ocupadas por colonos pobres que as cultivavam a serviço de patrões, muitas vezes, estrangeiros.

O cativeiro da Babilônia havia durado exatamente  49 anos: do ano 587 a 538 a.C. Os judeus importantes (sacerdotes, nobres, etc) quiseram recuperar suas terras. Há uma possibilidade de que a lei de devolver a terra no quinquagésimo ano aos seus antigos donos tenha surgido a partir do interesse desses setores, os sacerdotes que voltaram do Egito e queriam suas terras de volta. De certa forma, podemos comparar com o que acontece em nossos dias com as terras indígenas que, em algumas regiões do Brasil, há décadas está ocupada por posseiros. Assim, posseiros e indígenas se veem como inimigos e os grandes proprietários ficam poupados. De fato, indígenas e posseiros são ambos vitimas do sistema colonialista e escravocrata que corresponde hoje ao que eram impérios  como o babilônico do tempo antigo no qual surgiu a lei do jubileu.

Seja como for, o clima libertador do texto e o espírito da tradição anterior nos fazem pensar que o Jubileu era a favor do povo pobre da terra, que na Bíblia hebraica é chamada de am’as haretz, famílias que haviam perdido terra e vivido de dívidas não pagas.

A Bíblia conta que nos tempos de Neemias (445 a. C) ocorreu um clamor popular contra os judeus nobres. Neemias convoca uma assembleia e repreende os nobres. Ficou então decidido que, para haver justiça, se proclamaria uma libertação dos escravos e um perdão geral das dívidas (Ne 5,1-13). Nisso, consiste exatamente o ano do Jubileu, que já não é contado de 50 em 50 anos e sim quando o clamor dos oprimidos exige.

Há quem acredite que o ano do Jubileu nunca foi exatamente praticado. Ele só poderia acontecer em um país no qual o povo pudesse ser dono de sua terra, mas esta lei surgiu justamente depois do domínio babilônico, quando o povo bíblico permaneceu no domínio persa; depois, veio a dominação dos gregos, em seguida dos sírios e, finalmente, no tempo de Jesus, dos romanos. Não havia terra nem escravos para serem libertados porque não havia quem os libertasse. Todos eram dominados e subjugados a estrangeiros. Não é possível funcionar jubileu em um mundo no qual a desigualdade é vista como estrutura normal da sociedade.

De todo modo, a lei do Jubileu ficou sempre na consciência do povo da Bíblia como reivindicação profética em defesa dos mais pobres. Ela recorda que a terra, a vida e a liberdade são dons divinos e não podem ser vendidos e comprados. Nenhum ser humano é dono desses bens. Hoje há empresas que fazem até patentes – (títulos) que as constituem como donas da saúde e da Vida.

4 – Jesus, o jubileu e o reino.

Já recordamos que, conforme Lucas, Jesus começou sua missão proclamando um ano jubilar e não apenas para israelitas e sim para todos, começando pelos “de fora” (Lc 4, 16 – 21). A missão de Jesus é trazer a libertação a todos os oprimidos e “proclamar o ano de graça da parte de Deus”. Ali Jesus rejeita o projeto messiânico como restauração da monarquia davídica contra o império romano, assim como rejeita a restauração do templo de Jerusalém. O projeto do reino em Jesus é o compromisso com a vida das pessoas doentes, pessoas quebradas e oprimidas

Até hoje, as Igrejas têm dificuldade em compreender e aceitar isso. Aceitam um projeto religioso, uma espécie de jubileu espiritualista e centrada na própria hierarquia eclesiástica. No entanto, esse não é o projeto de Jesus que parte do mais concreto e vai além do religioso.

Um jubileu que usa os termos de Jesus mas para aplicá-los ao mundo interno da Igreja Católica e se restringe a ritos e gestos simbólicos de caráter eclesiástico e espiritualista, além de não ter nada a ver com a proposta de Jesus no evangelho, é contrário ao testemunho do projeto divino que deveria transformar o mundo. Conforme o texto de Lucas 4, 16- 31, Jesus não aceitou esse jubileu só interno e, por isso, os religiosos da sinagoga de Nazaré saíram dali dispostos a matá-lo (Cf. Lc 4,30).

Conforme Mateus, há uma alusão ao projeto do jubileu na própria proposta de oração que Jesus ensina aos discípulos (Mt 6, 9 – 15). O Pai Nosso seria, assim, uma oração que supõe a realização do Jubileu. Cada frase da oração nos faz assumir o projeto divino (santificado seja o teu nome, venha o teu reino e faça-se a tua vontade). Confia a Deus os problemas ou desafios da comunidade que se tornam pedidos: dá-nos o pão de cada dia e perdoa nossas dívidas. E liberta-nos do que nos ameaça: a tentação e o mal.

Depois do Concílio Vaticano II, em algumas línguas atuais, a Igreja Católica e outras Igrejas traduziram o texto da oração mudando dívidas por ofensas. De fato, na versão de Lucas, o termo se pode traduzir por ofensa ou pecado. Mas, não em Mateus. Ali o termo se refere claramente à dívida econômica. No contexto da oração (conforme Mateus), se diz que a comunidade cumpriu a exigência do ano sabático ou do jubileu: (“assim como nós já temos perdoado aos nossos devedores (no grego ofeiletes”- o verbo grego está no aoristo que indica uma ação já passada). E essa comunidade pede a Deus que proclame um ano jubilar para que sejam perdoada a dívida (ofeile) que temos com os nossos credores[11].

Também é importante reler o relato de Pentecostes à luz da legislação ou da espiritualidade do Jubileu. Como já vimos, Jesus anunciou em Nazaré um novo ano de Jubileu a partir do fato de que o Espírito Santo veio sobre ele e o enviou (Lc 4, 16- 19). Conforme a comunidade de Lucas, aquela proclamação do Jubileu na sinagoga de Nazaré foi o Pentecostes de Jesus. Ali, ele recebeu o Espírito Santo, como os apóstolos, discípulos e discípulas receberão depois da ressurreição na festa de Pentecostes. Receberão o Espírito como dom messiânico para curar, libertar e proclamar os sinais do reino de Deus que vem para transformar esse mundo (Atos 2).

O sopro divino que abriu as águas do mar para a libertação dos antigos hebreus agora abre as águas do batismo – mergulho – para uma vida nova que realiza a igualdade (não há mais diferenças entre judeus e gregos, escravos e livres, homens e mulheres) – Gl 3, 27- 28). E Paulo reafirma: “Onde estiver o Espírito de Deus, aí haverá liberdade” (2 Cor 3, 17). “Foi para que sejamos livres que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1 . 13).

5 – Conclusão: é urgente um novo jubileu ecumênico e laical

Não precisamos repetir que esse sistema social e econômico é inviável e “mata” a natureza, o ecossistema, os povos originários a infância das crianças, as mulheres e idosos, nas guerras pelo mundo afora, enfim “mata” a Esperança de um mundo de iguais. Como disse o papa Francisco aos movimentos sociais em Cochabamba: “Digamos sem medo: nós queremos uma verdadeira mudança, uma transformação das estruturas. Esse sistema não funciona mais. Os lavradores, os trabalhadores, as comunidades e as aldeias não o suportam mais. E não o suporta mais a Terra, a irmã e Mãe-Terra, como dizia São Francisco”[12].

Da sociedade civil internacional e principalmente dos povos do sul, estão soando novas trombetas que não são mais apenas chifres de carneiro (jobel). Os clamores dos povos crucificados de hoje e da Terra ameaçada em sua sobrevivência são as trombetas de um novo possível jubileu internacional e para um novo mundo possível.

Hoje, mais do que nunca, é cruel a desumanidade dos governos lacaios desse sistema iníquo e das empresas transnacionais que se revelam insensíveis ao sofrimento dos migrantes, dos refugiados e das vítimas das guerras, das violências e da fome provocadas por esse sistema. A maioria das pessoas no mundo assiste a tudo isso como se fosse normal, ou na chamada “normose”, como, por exemplo, que pessoas como o dono da Amazon e de outras multinacionais lucrem anualmente bilhões de dólares, sem fazer nada, sem trabalhar, sem produzir nada. Só com ações, no chamado mercado volátil ou das criptomoedas.

Há poucos dias, a revista Forbes publicou os dez brasileiros mais ricos do mundo e publicou a riqueza que cada um acumula:

Eduardo Luiz Saverin – R$ 155,97 bilhões

Vicky Sarfati Safra e família – R$ 110,17 bilhões

Jorge Paulo Lemann e família – R$ 91,81 bilhões

Marcel Herrmann Telles e família – R$ 60,82 bilhões

Carlos Alberto da Veiga Sicupira e família – R$ 49,35 bilhões

Fernando Roberto Moreira Salles – R$ 38,45 bilhões

Pedro Moreira Salles – R$ 36,15 bilhões

Alexandre Behring da Costa – R$ 34,82 bilhões

André Santos Esteves – R$ 32,71 bilhões

Miguel Gellert Krigsner – R$ 28,69 bilhões…[13]

Ao mesmo tempo, surpreendentemente o ministro Fernando Haddad afirmou que, no Brasil, nenhum ministro da Economia consegue que os mais ricos paguem impostos, isso é, a taxa que seria de direito do Estado, ou seja, aquela que deveria reverter em serviços e benefícios para o povo. Quanto mais aceitem uma reforma tributária que regule os impostos de forma proporcional e que quem ganha mais pague mais.

De certa forma, o que é mais cruel é que em um sistema como esse, essa realidade é considerada normal. Como o cientista social Jessé de Souza afirmou na conferência de abertura do recente Congresso de Teologia Pastoral da FAJE, em Belo Horizonte: “No Brasil, a elite se especializou em roubar. Não faz outra coisa do que roubar

Outro dado relevante e escandaloso especialmente para os que se dizem cristãos, é que frente  a essa realidade, a reação das religiões tem sido muito tímida e pouco expressiva. Embora o Conselho Mundial de Igrejas e na Igreja Católica, o papa Francisco e alguns bispos tenham se pronunciado fortemente contra essa realidade social e econômica, para muitos cristãos, tanto ministros como fieis, esse assunto parece não ter relação direta com a vivência da fé. Parecem comportar-se como nos séculos XVIII e XIX, nos quais conventos e religiosos, bispos e padres católicos, assim como pastores evangélicos consideravam normal terem escravos e conviverem com comunidades de fieis nas quais os cristãos vendiam e compravam pessoas humanas como se fossem “peças” (assim chamavam na América Latina os negros e negras sequestrados na África).

Diante da realidade que vivemos, em tese não haveria necessidade que o Papa Francisco convocasse esse Jubileu da Esperança, a fim de que fossem tratadas questões que deveriam ser enfrentadas por todos nós , especialmente os que se encontram inseridos nos diversos movimentos da igreja e fora dela. No entanto, ele convocou. E, com isso somos desafiados a escutar na voz profética que nos chama ao Jubileu, a própria voz do Espírito que nos convoca e que fique claro: ele só merecerá o nome de jubileu da esperança, se os seus protagonistas principais forem as pessoas empobrecidas da terra e todas as vítimas desse sistema que mata.

Dessa certeza de fé, precisa derivar uma “espiritualidade do Jubileu” que dê continuidade à mística da sinodalidade que ainda ficou muito dentro dos muros da Igreja e ainda não perpassou para a sociedade ou se o fez foi ainda  muito pouco.

O diálogo espiritual que a caracterizou se torna assim uma verdadeira mística sabática: da libertação da Mãe-Terra, libertação das pessoas e dos povos. Que sejam as lideranças de periferia, as vozes das juventudes e das pessoas desigrejadas que possam nos conduzir, como na parábola de Jesus sobre o samaritano, que sendo herege e “de fora” é quem socorre a humanidade ferida. Será que não se poderia pensar em um sínodo não apenas das Igrejas, mas das religiões a favor da Vida?

Será que esse Jubileu da esperança poderá representar um novo passo de relação mais livre entre as Igrejas locais e a Igreja de Roma?

Ao constatar que o papa Francisco se revela mais aberto à realidade e mais corajoso nas mudanças do que a maioria dos nossos bispos e do clero de nossas dioceses, podemos ter a tentação de não insistir na autonomia e liberdade das Igrejas locais, pois parece que a orientação do papa e sua autoridade nos permite caminhar mais de acordo com o evangelho.

No entanto, precisamos ter clareza de que essa situação anormal na qual a profecia parece vir de cima e não de baixo é resultado doentio dos 35 anos do inverno eclesial provocado pela “volta à grande disciplina”, como denominava tão acertadamente o saudoso padre Libânio[14].

O preço a pagar por prolongarmos essa anomalia quase bipolar de mantermos o sistema de Cristandade porque ele parece mais profético e atual do que o modelo eclesiológico da comunhão de Igrejas locais é alto demais e tudo indica que tem curta duração, já que depende de um papa que, pelo que vemos em Roma e no mundo, nada indica que terá continuidade na sua linha de orientação. De novo, a melhor orientação deve ser para nós a do evangelho: “A verdade vos libertará” (Jo 8, 35).

Em um livro significativamente chamado “Cristãos rumo ao século XXI”, o padre José Comblin lembrava que “segundo a Bíblia, a liberdade é a própria razão de ser da humanidade e o eixo central de toda a sua existência. Pois, Deus é Amor e o amor não pode existir sem liberdade. (…). A vida da Igreja, na tarefa da evangelização é como uma festa de casamento. (Assim, se dá na proposta desse jubileu) Tudo o que é belo e gostoso é oferecido. Só falta uma coisa: a noiva, isso é, a liberdade!”[15]

6 – Sinais de libertação para o mundo e para as Igrejas.

Como vimos, provavelmente, mesmo nos tempos bíblicos, o Jubileu era mais  uma utopia desejada do que uma lei posta em prática. No entanto, isso não impediu que, conforme o evangelho de Lucas, Jesus tenha anunciado ao povo a sua vocação de profeta anunciando um novo jubileu, como anúncio de libertação para o mundo inteiro (Lc 4,16-21).

Sonhar não é proibido e, ao contrário, é quase a única saída quando outras portas se fecham. Então, somos desafiados e desafiadas a propor não apenas ao papa, mas principalmente a nossas comunidades e para termos claro para nós mesmos (as), a Igreja que queremos e como essa pode anunciar ao mundo que o reinado divino vem para toda a humanidade e o universo e não somente para os ambientes eclesiais.

Da nossa reflexão já ficou claro que como a profecia é a partir de baixo e do não poder, também o Jubileu não mudará nada nas estruturas do mundo e das Igrejas. Sua função é na linha do sinal (sacramento) e aí sim pode contribuir para a mudança da realidade mas como anúncio e sinal.

Não podemos pensar em resolver a atual crise eclesial pelo caminho que seria regredir ao passado da Cristandade. Só a liberdade e a sinodalidade podem ser caminhos de salvação

Assim, sendo, tentemos fazer nossa lista de sugestões-propostas para o mundo novo com o qual sonhamos e para a Igreja que desejamos viver como caminho de realização atual do evangelho de Jesus no mundo.

Retomemos a clareza de que é urgente:

I – Em relação ao mundo:

1º – Que a fé cristã retome sua vocação de ser profecia de um mundo novo. É urgente refazer a esperança de que outro modo de organizar o mundo é necessário e possível. E as pessoas e comunidades de fé (cristã, ou budista, ou muçulmana ou de qualquer outro caminho espiritual) devem ser profetas dessa urgência.

2º – É importante assumir a Ecologia Integral como elemento central e constitutivo da fé cristã. É a sacralidade da Vida que Jesus veio sinalizar e trazer ao mundo. Por isso, a conversão precisa também ser conversão ecológica (porque há pecado ecológico)

3º – Nos dias atuais, por vários motivos, o caminho dos fóruns sociais parece enfraquecido ou quase esgotado. A própria palavra Igreja (ekklesia) poderia hoje ser traduzida por fórum, ou seja, assembleia convocada para se reunir. Será que as Igrejas cristãs não poderiam e deveriam ser provocadoras de um novo fórum da sociedade civil internacional?

O papa Francisco convocou e realizou três encontros com lideranças e representantes de movimentos populares? Essa experiência poderia ser continuada e ampliada não apenas como “encontro dos movimentos sociais com o papa” e sim como encontros da humanidade com as religiões promotoras de Paz e Justiça ecossocial.   

Será que não deveríamos tomar consciência de que, em um mundo como o nosso, as Igrejas cristãs devem exercer a vocação de convocar um fórum da humanidade por um mundo de paz, justiça e cuidado com a Mãe-Terra e com a Vida?  Esse jubileu não poderia ser uma semente dessa vocação?

4º – Seria fundamental nesse caminho, que as Igrejas (A Igreja Católica e o Conselho Mundial de Igrejas e outras Igrejas) retomassem as intuições de organismos da sociedade civil como Ágora dos/das Habitantes da Terra e tantos outros e juntos declararem ilegal a Pobreza (não os pobres) e explicitar o código de Ética que impeça a concentração vergonhosa de renda como acontece atualmente no mundo. É urgente retomar a intuição de Betinho em uma luta mundial contra a fome e a miséria.

5º – Para isso, é fundamental que a sociedade civil internacional tenha instrumentos eficazes para garantir a primazia da vida na sua integralidade e não permitir a hegemonia dos interesses do capital e da elite que domina o mundo. É preciso garantir a prioridade do trabalho em condições dignas como estruturante da vida social, bem como a prioridade do bem comum sobre os interesses particulares.

6º – É urgente reconhecer, valorizar e desenvolver o potencial das novas gerações para criar uma sociedade fundada em uma real democracia, na justiça social, no respeito à diversidade, solidária, pacífica e sustentável. Que essa priorização das juventudes possa consolidar e fortalecer o necessário diálogo intergeracional que, conforme o papa Francisco, é fundamental para a paz do mundo.

7º – É urgente que nesse Jubileu ou em consequência dele, as Igrejas possam declarar ao mundo que é terrorista quem usa as armas em atentados violentos, mas também quem as fabrica e as vende. As Igrejas deveriam declarar terroristas os países produtores de armas.

II – Em relação especificamente ao Brasil:

1º – Por respeito à natureza laical do Brasil, não podemos pedir que o Jubileu tenha dimensão social e política no país. No entanto, podemos nós, cristãos e cristãs, testemunhar que a memória bíblica não deve ser feita para defender pautas morais que discriminam pessoas e acabam por oprimir a sociedade. A tradição do Jubileu é de libertação em todos os sentidos. Que a inspiração do Jubileu nos leve a unir todas as Igrejas cristãs que aceitarem para exigir do Estado brasileiro absoluta rejeição ao imoral Marco Temporal e, ao contrário, pleno reconhecimento dos territórios dos povos originários. Também que o Jubileu seja tempo de avanço na realização de verdadeira reforma agrária e de uma Justiça para todos e todas no campo e na cidade.

2º – Que a Igreja Católica e outras Igrejas cobrem do Governo Federal a ratificação do Tratado de Escazú. Isso é importante como programa de proteção aos defensores dos direitos humanos e da terra.

3º – Que, possamos celebrar a COP 30 em novembro de 2025 em Belém, inserindo na Constituição brasileira e nas nossas leis municipais e estaduais, a consciência dos “direitos da natureza”, como já existem em outros países, inclusive em nosso continente.

Seja essa a nossa resposta à barbárie das queimadas que dominaram o Brasil neste ano de 2024 e tem sido constante no decorrer dos anos. Que possamos criar em nossas Igrejas o compromisso de “Queimadas zero” como compromisso pascal para 2025.

4º – Que seja destacado o combate a todo tipo de racismo, principalmente contra pessoas negras, vítimas históricas da escravidão que ainda continua como estilo social em nossa sociedade. Que este jubileu seja ocasião de comprometer as Igrejas cristãs na defesa fraterna e solidária contra o racismo religioso e todo tipo de discriminação, perseguição e violência contra cultos afrodescendentes e indígenas.

III – Mais especificamente em relação à nossa Igreja:

 É preciso recolher e de fato valorizar as sugestões que a consulta sinodal da Igreja Católica recolheu e está ainda acolhendo das comunidades do mundo inteiro. Aqui vão apenas alguns exemplos de propostas:

1 – valorizar a autonomia e a liberdade das Igrejas locais que precisam ter seu rosto próprio e não serem Igrejas na Amazônia, ou no Nordeste do Brasil, com sotaque romano. É preciso que a fé seja a mesma, mas a forma de celebrar e de vivê-la na missão seja própria de cada Igreja local ou regional.

2 – O papa Francisco tem denunciado o clericalismo como uma doença. Contudo, o clericalismo depende da clericalidade, ou seja, enquanto na Igreja vigorar um sistema clerical, não há como evitar o clericalismo. O remédio único possível é retomar a dimensão laical da fé e a partir disso eliminar a diferença entre pessoas sagradas pela ordenação e pessoas não ordenadas.

3 – Enquanto a eucaristia de Jesus continuar sendo considerado “o santo sacrifício da Missa” a ser feito pelo sacerdote ordenado para isso e do modo clerical, nunca conseguiremos sair do clericalismo e de um Cristianismo reduzido à religião ritual. Por isso, talvez com relação à Igreja, a contribuição mais importante desse novo Jubileu poderia ser retomar para toda a Igreja o costume que já se espalha nas comunidades eclesiais de celebrarem o ágape ecumênico no qual a comunidade com padre ou sem padre faz a memória da ceia de Jesus em uma refeição de amizade e centrada no diálogo e na partilha. Está em andamento o processo de um pequeno livro com subsídios para a celebração desses ágapes eucarísticos e ecumênicos.

4 – É urgente aprofundar um novo modelo de relação entre a Igreja de Roma como primaz da comunhão católica e as Igrejas locais. Isso diz respeito ao modo de escolher os bispos, ao modo de exercer a disciplina ética e jurídica e ao modo de viver os ministérios.

5 – Seria possível pensar novos ministérios masculinos e femininos que vão além dos atuais ministérios ordenados?

E cada um/ uma de vocês que leem essa página pode continuar essa lista e trazer outras contribuições urgentes e importantes. Essas estão aqui expostas apenas como amostras e exemplos.

Em nome da vida, em nome da mãe Terra e da natureza ameaçada, como em nome da humanidade, somos convidados/as para um novo Jubileu que diga a tudo isso: Basta! Um novo Jubileu que ecoe e responda ao grito dos pobres e grito da Terra.

É urgente que, a partir dos menores movimentos até os mais exponenciais, as Igrejas e religiões não somente apoiem, mas participem das diversas iniciativas que estão surgindo em todos os continentes para firmar uma nova aliança das religiões e das culturas, uma nova aliança da humanidade para construirmos  um mundo novo, a partir da defesa dos direitos dos mais pobres e da Mãe Terra.


[1] – Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor, é assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares como o MST. Tem 64 livros publicados, dos quais o mais recente é Os segredos do nosso encanto (O que a fé cristã pode aprender das espiritualidades indígenas e negras), Ed. Recriar, 2023. Neste mês de novembro, na celebração dos seus 80 anos de vida, lançará “Deslumbramentos nos encontros e desencontros da vida” (Marcas das amizades em minha história), Ed. Recriar, 2024.   

[2] – Quem quiser aprofundar a história do início do Jubileu: VAUCHER, André. La spiritualité du Moyen Age occidental – VIII – XIIIe siècle. Paris: Seuil, 1994. Traduzido para o português: Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pp. 25- 26.

[3] – Sobre isso ver a revista La Vie 2793/ 17 mars 1999, p. 68.

[4] – https://www.iubilaeum2025.va/pt/notizie/comunicati/2024/porte-sante-basiliche-papali.html

[5] – Cf. MUOLO, Mimmo. Botta e risposta. In Avvenire – Idee e Lettere. Sabato, 19 ottobre 2024, p. 16.

[6] – HAM, Byung-Chul. O Espírito da Esperança contra a sociedade do medo. Petrópolis: Vozes, 2024, p. 16.

[7] – Cf. https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/catequese-do-papa-esperar-contra-toda-esperanca/

[8] – Sobre isso ver: VÁRIOS AUTORES, Jubileu, in RIBLA, Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, n. 33, 1999. Em português: Ed Vozes, Em espanhol: Ed. CLAI, Quito, 1999.

[9] – De fato, Jesus uniu o texto de Is 61, 1- 2 a outro texto vindo do contexto histórico de um anúncio de jubileu extraordinário: Is 58, 6. Vários exegetas não hesitam em interpretar que, conforme Lucas, na sinagoga de Nazaré, Jesus proclamou um Jubileu extraordinário (Cf. entre outros: FABRIS, Ronaldo. I Vangeli: Luca. Assisi: Citadella Editrice, 1ª ed. 2003, p. 107 e também CASALEGNO, Alberto. Lucas. A caminho com Jesus missionário. São Paulo: Loyola, 2003, p. 107. O que provocou rejeição e hostilidade por parte dos homens da sinagoga foi que Jesus deixou claro que esse Jubileu que ele proclamava era de libertação para toda a humanidade e a partir de fora, isso é, privilegiava aqueles e aquelas que eram estrangeiros (as) e fora da cultura e da religião deles. Uma pergunta importante é se esse novo Jubileu da Esperança, concentrado em Roma e com acento posto na recepção individual de indulgências, vai nessa direção do Jubileu anunciado por Jesus em Nazaré.  

[10] – Aqui, retomo algumas reflexões escritas em MARCELO BARROS, Jubileu para um novo tempo – Ed. Paulinas, 1997. Traduzido e adaptado em italiano Giubileo per un nuovo tempo, Piombino, Tracce Edizioni, 1998. Ver também:  MARCELO BARROS, (con altri autori), Giubileo purificato, Itinerari di conversione personale e di riforma ecclesiale, Bologna, EMI, 1999.

[11] – Cf. BRUCE MALINA e RICHARD ROHRBAUGH, Evangelhos Sinóticos – Comentários à luz das Ciências Sociais, São Paulus, Ed. Paulus, 2018, p. 63. (O livro é tradução do original inglês: Social-Science Commentary on the Synotic Gospels, Augsburg Fortress, Box 1209, Minneapolis, MN 55440.

[12] –  PAPA FRANCESCO, Partecipazione al II incontro mondiale dei movimenti popolari, 09 luglio 2015, vedi: w2.vatican.va

[13] -Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/08/27/conheca-os-dez-brasileiros-mais-ricos-segundo-ranking-da-forbes.htm?cmpid=copiaecola.

[14]  – Cf. LIBÂNIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. São Paulo: Loyola, 2ª ed. 1983.

            LIBÂNIO, J. B. Cenários de Igreja. São Paulo: Loyola, 2011.

[15] – COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI: nova caminhada da libertação. São Paulo: Paulus, 1996, p. 65 ss.

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