Lc 1,39-48 – EM UM ABRAÇO, A PROFECIA DO ESPÍRITO – 4º Domingo do Advento – C – Por Marcelo Barros
Neste 4º domingo do Advento, o evangelho nos revela Maria, como figura da espera messiânica. Nesse ano C da liturgia da igreja, o evangelho retoma a cena da sua visita à prima Isabel (Lucas 1,39-48).
Neste domingo antes do Natal, a antiga liturgia romana celebrava a festa da “expectação do parto da Bem-aventurada Virgem Maria”, ou Nossa Senhora do Bom Parto. Como, nesses dias, a liturgia canta as antífonas maiores que começam por Ó, o povo criou a devoção a Nossa Senhora do Ó. Parece bobagem imaginar uma Maria do Ó, mas o evangelho de hoje diz que sim: Todo o ser de Maria é espanto e admiração. É um Ó permanente de admiração. E este ó de espanto e admiração é das duas mulheres surpreendentemente grávidas, Maria que tinha sabido pelo anjo Gabriel que estava grávida, ainda solteira e Isabel que era uma mulher já de idade e estéril. As duas expressam sua admiração e as duas profetizam. No encontro de duas mulheres, uma jovem e outra idosa, ambas grávidas, a luz e a força divina as fortalecem, no meio das adversidades.
O evangelista Lucas constrói as cenas dos dois primeiros capítulos do evangelho no estilo de contos hebraicos inspirados em textos antigos e para nos ajudar a descobrir um novo sentido na revelação de Deus. O relato da visitação é claramente inspirado no antigo relato da transferência da arca da aliança de Obed Edom a Jerusalém no tempo do rei Davi (2 Samuel 5).
O primeiro testamento diz que a arca da aliança foi levada em procissão às montanhas da Judeia. Nesse relato, o rei Davi sobe a montanha para levar a arca da aliança, onde estavam gravadas as palavras do casamento de Deus com o povo.
Mais ou menos usando a mesma linguagem do antigo relato da transferência da arca da aliança, no evangelho, Lucas diz que Maria, grávida de Jesus, sobe a montanha para visitar Isabel. No relato antigo, o rei Davi dança diante da arca. No evangelho, o profeta João Batista, ainda dentro do útero da mãe, pula ou dança ao se ver diante de Jesus no ventre de Maria. O evangelho conta que Isabel saúda Maria em tom positivo, quase com as mesmas palavras com as quais Micol, mulher de Davi, protesta, porque o rei dança quase nu diante da arca. Assim, todo o relato da visita de Maria a Isabel mostra como Maria é a nova arca que traz para nós aquele que vai selar a aliança definitiva de Deus conosco.
Só que o cântico de Maria traz uma novidade: vai além da realidade doméstica e de uma relação religiosa. Anuncia uma transformação política radical. Diz que Deus derruba os poderosos e liberta os oprimidos. No final dos anos 70 do século XX, nos tempos duros da ditadura argentina, os generais proibiram que esses versículos fossem cantados nas Igrejas. Hoje, bispos, padres e movimentos carismáticos interpretam esses versos, como se se referissem ao mundo do além e nada tivessem a ver com a realidade social e política. Nas celebrações do Natal, não podemos compactuar com esse Cristianismo domesticado, proposto como se fosse ingenuidade piedosa meio infantilizado. É nas entranhas da história, dos fatos e acontecimentos, que o Deus da vida age e nos acompanha nas lutas por tudo o que é justo e ético. O cântico de Maria profetiza uma grande utopia: uma sociedade revolucionada com justiça, paz, amor e respeito a todos/as, superando as opressões e explorações.
Os evangelhos sobre a gravidez de Isabel e Maria não são crônicas de fatos, mas são teologias, interpretações de fé. Quando Lc e Mt falam de Maria sendo virgem não se trata de virgindade fisiológica ou biológica, mas de virgindade no sentido teológico. Na Bíblia encontramos diversas passagens aonde se fala de mulheres estéreis e virgens dando à luz. Por exemplo, Sara, a esposa de Abraão, concebe Isaac na sua velhice e esterilidade (Gn 24,36). Isabel, prima de Maria, concebe João, o Batista, na sua velhice estéril (Lc 1,7). Esses relatos têm a intenção de dizer: “Para Deus nada é impossível“. Aonde nós, muitas vezes, vemos somente esterilidade e impossibilidade de gerar nova vida, o Deus da vida vê fertilidade e possibilidade de reconstruir a vida. Deus age, realmente, pelo avesso e nas brechas das entranhas da História. Muita gente não crê que “pobre” possa fazer coisas empurrado pela Palavra de Deus. Muitos dizem: “Deve ter alguém no meio para “fecundar” o povo!” No filme Anel de Tucum, os poderosos latifundiários colocam um espião para investigar o povo das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base – para ver quem está por trás estimulando lutas e rebeliões contra as opressões. Mas Dom Pedro Casaldáliga, dentro da sua rústica capela, apontando para o sacrário, diz para o espião André que quem está por trás das lutas de libertação não é nenhum comunista, mas é o Deus da Vida, encarnado em Jesus, pela força da Palavra (cf. Jo 1,14).
Conforme o evangelho, a primeira profecia do Espírito no Novo Testamento vem de duas mulheres que se encontram e cada uma se espanta e se encanta com a outra. As duas formam um diálogo intergeracional. Maria, a jovem, vai ajudar Isabel, sua prima, velha e carente. As duas estão grávidas. Trazem no ventre crianças improváveis ou que ninguém podia imaginar. A gravidez de Maria é subversiva, porque ela é jovem, solteira e sozinha. A gravidez da outra também é extraordinária, porque Isabel é velha e estéril. Não teria mais idade para engravidar. O primeiro espanto é da velha que se curva diante da jovem e, cheia do Espírito Santo, profetiza: Bendita és tu entre as mulheres. De onde me vem a graça que a mãe do meu Senhor venha me visitar?
As palavras de Isabel a Maria “Bendita és tu …” se inspiram nos elogios das mulheres libertadoras do Primeiro Testamento. Em um Cântico revolucionário, a juíza e profetiza Débora, saúda Jael, mulher estrangeira do povo quenita, que solidário com o povo oprimido, golpeou o general Sísara que estava devastando o povo oprimido (“Que Jael seja bendita entre as mulheres!” (Jz 5,24)) e Judite também foi reconhecida como ‘bendita’ por ter cortado a cabeça do general Holofernes que estava devastando o povo oprimido (“Que o Deus Altíssimo abençoe você, minha filha, mais que todas as mulheres da terra!” (Jt 13,18; cf. Gn 14,19-20)). Logo, ‘bendita Maria’ não é no sentido de piedosa ou privilegiada, mas de mulher libertadora como foram Débora, Jael, Judite, as parteiras no Egito e tantas outras, ontem e hoje.
Maria, acolhida pela profecia de Isabel, também profetiza. Sua profecia é cântico de louvor e agradecimento que mostra que o mesmo Deus que provocou a subversão do rotineiro e dos costumes sociais na gravidez das duas mulheres faz toda a humanidade engravidar um mundo novo. Derruba os poderosos e levanta os pobres na luta de libertação.
É importante ver a esperança messiânica traduzida no gesto simples, cotidiano e essencial do serviço de uma mulher a outra. É na visita de Maria que toma a iniciativa de vir servir à prima que se realiza a primeira manifestação do Espírito no Novo Testamento: uma espécie de primeiro Pentecostes.
O Espírito revela à criança que Isabel carrega no ventre o mistério que Maria carrega em si. Assim, todos os protagonistas da cena se tornam profetas. João Batista ainda no ventre da mãe Isabel reconhece a presença de Jesus no útero de Maria e dança de alegria. Isabel saúda Maria como mãe do Senhor e Maria canta o cântico que não é apenas de alegria pela vinda de Jesus, mas mostra que essa vinda só será acolhida se transforma o mundo em todas as suas estruturas. Quanta riqueza e que atualidade contém toda essa profecia. O encontro afetuoso de duas primas grávidas faz eclodir no mundo a alegria da salvação e a manifestação do Espírito em um Pentecostes transformador que acontece na casa (oikia) e não no templo. Que boa indicação para o nosso Natal hoje.
Pena que até hoje muitos bispos, padres e pastores da Igreja leem a cena, comentam o evangelho, admiram Maria e Isabel, mas não percebem nelas e na gravidez que elas trazem o sinal de que a nova aliança de Deus conosco tem de ser marcada pelo protagonismo da mulher e pelo combate à opressão que os poderosos perpetram sobre a maioria do povo.
Infelizmente, no Brasil, os povos indígenas, as comunidades negras, pobres das ruas e todas as “minorias” que são maioria e pessoas oprimidas ainda se sentem ameaçadas e desrespeitadas em seus direitos fundamentais.
Essa profecia do Natal, cantada no Magnificat de Maria, deve despertar em nós uma expressão de fé comunitária e comprometida com a justiça e a paz.
Que o nosso modo de viver a fé possa unir, tanto o pentecostalismo do Espírito que desceu na visita de Isabel a Maria, como o conteúdo revolucionário do Magnificat de Maria. E cada um/uma de nós se sinta chamado/a a colaborar para que, de fato, os poderosos sejam derrubados dos seus tronos e os povos empobrecidos e oprimidos possam ser libertados em uma terra de irmandade e de cuidado com a Mãe Terra. Feliz e sublime Natal para todos/as nós.
Virá o dia em que todos,
ao levantar a vista,
veremos nesta terra
reinar a liberdade. (bis)
Minh’alma engrandece o Deus libertador,
Se alegra o meu espírito em Deus, meu Salvador
Pois ele se lembrou do seu povo oprimido
E fez da sua serva a Mãe dos esquecidos.
Imenso é seu amor, sem fim sua bondade,
Pra todos que na terra lhe seguem na humildade
Bem forte é nosso Deus, levanta o seu braço
Espalha os soberbos, destrói todos os males.
Derruba os poderosos dos seus tronos erguidos
Com sangue e suor de seu povo oprimido
E farta os famintos, levanta os humilhados,
Arrasa os opressores, os ricos e os malvados.
Protege o seu povo, com todo o carinho,
Fiel é seu amor, em todo o caminho!
Assim é o Deus vivo, que caminha na história
Bem junto do seu povo, em busca da vitória.