Festa de S. Pedro e S. Paulo – Mt 16, 13-19 – Viver a fé como espaço de acolhida e doação – Por Marcelo Barros

Neste domingo, 30/06/24, no Brasil, a Igreja Católica vive a festa dos apóstolos Pedro e Paulo. A segunda leitura da celebração deste dia (Gl 1,11-20) contém o testemunho do apóstolo Paulo sobre como ele vê a sua missão.
O evangelho (Mt 16,13-19) é escolhido por causa da palavra de Jesus na qual ele teria confiado a Pedro uma função especial na comunidade dos apóstolos: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”.
A Igreja Católica construiu toda uma teologia sobre o ministério de Pedro e de seus sucessores que uma tradição muito antiga situa em Roma. Sem dúvida, é direito da Igreja apoiar-se em uma tradição. Mas, com os estudos exegéticos avançados que existem, é difícil sustentar como histórico que Jesus tivesse querido fazer de Pedro o chefe da Igreja Universal. Nem na época de Jesus, nem quando a comunidade de Mateus escreveu esse evangelho, se poderia pensar em Igreja como um conjunto de comunidades e menos ainda em uma instituição centralizada chamada Igreja Católica. Menos ainda se pode imaginar que Jesus tivesse pensado em Pedro como o que hoje se chama de “papa” e de ter sucessores com esse “poder”. O padre José Comblin escreveu: “Do texto de Mateus não se pode concluir que Pedro teria um sucessor. (…) Quando o Evangelho foi escrito, Pedro tinha morrido provavelmente um quarto de século antes e o Evangelho não fala ainda em qualquer sucessão” ” [1].
Seja como for, podemos descobrir neste texto do evangelho de hoje uma palavra para nos ajudar a viver a fé e a discernir o papel do pastor que quer ser como Pedro na Igreja Católica atual (o papa).
A primeira observação é de que Jesus nos dá essa palavra, quando estava no território estrangeiro (do outro lado do Mar da Galileia). Ele se sentia clandestino e em situação de crise pessoal (poderíamos dizer, em crise de vocação). Por isso, põe em avaliação a sua missão. Faz com os discípulos uma revisão de vida, a respeito do que o povo pensa da sua pessoa e da sua missão. A resposta dos discípulos mostra que o povo não compreende a proposta de Jesus. Ele escuta isso e pergunta aos próprios discípulos e discípulas: “E vocês mesmos o que dizem a respeito do Filho do Homem? Esta maneira de Jesus falar dele mesmo é misteriosa. Pedro responde em nome de todos: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). A tal ponto, Jesus vive a sua vocação de consagrado, que só pode ser mesmo “filho de Deus”. Quando Pedro confessou: “Tu és o Filho de Deus”, nem Pedro, nem a comunidade do evangelho pensavam em dizer que Jesus é a segunda pessoa da Santíssima Trindade, de natureza igual ao Pai.
Em Mateus, a resposta de Pedro parece ter um conteúdo superior às tradições de Marcos e Lucas. Mas, em virtude da lei do paralelismo que existe no modo de falar e escrever semita, somos obrigados a concluir que o apelativo ‘filho de Deus’ é mais uma explicitação da primeira designação que aparece no texto: Jesus é o Messias, o enviado de Deus ao mundo.
É nesse contexto que Jesus chama Simão de Pedro ou pedra. Conforme alguns exegetas, na época de Jesus, na Galileia, o povo tinha o costume de escavar as rochas para daí tirar pedras para construir casas. Era um tipo de pedra mais mole, que pode nos recordar nossa pedra-sabão, usada por vários artistas para esculturas em pedra. Era um tipo especial de pedra, mais facilmente possível de ser quebrada e partida para dar lugar a abrigos. Os buracos formados nas rochas recebiam na língua aramaica o nome de kepha. As pessoas pobres e sem casa se abrigavam nestas cavernas e as usavam como casas. Assim sendo, o nome Kepha pode ser traduzido por pedra ou gruta escavada na rocha que servia de abrigo para os pobres sem-teto. De acordo com essa versão da história, a tradução mais literal da palavra atribuída a Jesus seria: “Tu és Pedro e sobre ti como gruta que serve de abrigo aos mais empobrecidos quero construir a minha comunidade (Igreja)”.
As comunidades cristãs primitivas acentuavam que a pedra da Igreja é o Cristo (Cf. 1 Cor 10, 11 e 1 Pd 2, 6). Vários salmos e orações da Bíblia dizem que o Senhor é o rochedo da nossa salvação (Cf. Sl 1 8,3 e 32; 31, 4; 61,4; 95, 3; 144, 1). Jesus tinha dito que toda pessoa que escuta e pratica a Palavra (O termo Simão quer dizer o ouvinte e obediente) é como quem constrói a sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24). “No edifício da igreja, ninguém pode colocar outro fundamento, a não ser o Cristo Jesus, pedra angular” (1 Cor 3,11).
Mateus é o único evangelista que usa a palavra ‘Igreja’ e no seu contexto significa a comunidade local: a assembleia dos cidadãos e cidadãs do reino de Deus. Pedro é o apoio, a pedra que deve dar segurança ao edifício no sentido da fé. Para a comunidade de Mateus, Pedro é símbolo do discípulo a quem o Senhor confia o encargo de “confirmar na fé aos seus irmãos”. Em outra tradição, Jesus lhe diz: “Simão, eu orei por ti para que, sendo tu confirmado, confirmes a teus irmãos” (Lc 22,31-32).
Embora Jesus entrega a todos/as a missão de testemunhar o Reino, conforme Mateus (e é o único evangelho que diz isso), Jesus entrega a Pedro as chaves do Reino. É um modo de falar próprio da linguagem apocalíptica e se baseia em Isaías 22. No capítulo 18 deste mesmo evangelho, esta função que aqui Jesus dá a Pedro, ele passa a toda a comunidade (Mt 18,18). De certo modo, somos todos/as pastores e pastoras, chamados/as a viver a fé como rocha de segurança e acolhida para todos os nossos irmãos e irmãs.
Hoje, a maioria das igrejas históricas parecem dispostas a aceitar a necessidade de um ministério de coordenação e de unidade que pode ser realizado pelo bispo católico de Roma, o papa. Independentemente de ser, literalmente, sucessor de Pedro, desde tempos muito antigos, o bispo de Roma exerce uma função de servidor da unidade das Igrejas. Há mais de 25 anos, o papa João Paulo II pediu a cristãos e cristãs de todas as Igrejas que o ajudassem a rever a forma e o estilo no qual o ministério do bispo de Roma pode ser realizado. Recentemente, o Dicastério para a unidade das Igrejas retomou as respostas enviadas ao Vaticano sobre essa pergunta e publicou um documento que confirma a necessidade de se superar a função do papado nos tempos de Cristandade. Que todos e todas nós possamos ajudar o papa Francisco a viver o seu ministério de unidade dentro de uma Igreja sinodal que seja a comunhão de Igrejas locais, cada uma com o direito de ter o seu estilo e forma de ser próprios e inseridos na cultura local.
[1] – JOSÉ COMBLIN, As linhas básicas do Evangelho segundo Mateus, in Estudos Bíblicos 26, p. 15.
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