UM EQUILIBRISTA NA CORDA-BAMBA DA INSTITUIÇÃO ECLESIAL – Marcelo Barros

UM EQUILIBRISTA NA CORDA-BAMBA DA INSTITUIÇÃO ECLESIAL – Marcelo Barros

Marcelo Barros. Reprodução Redes Virtuais

Como desde jovem, me dedico ao diálogo entre as Igrejas cristãs e à inserção nas culturas afrodescendentes e indígenas, compreendo todo esforço para unir as pessoas e superar a polaridade que opõe na Igreja pessoas e grupos. Sei que justamente a função principal do bispo de Roma é ser cuidador da unidade das Igrejas. Portanto, é normal que o papa Leão se esforce em superar a polaridade entre progressistas e tradicionalistas. O desafio é como fazer isso sem deixar que se perca a profecia. A unidade se constrói no diálogo mesmo difícil, respeitando as diferenças que não oprimem, mas engrandece a convivência, e na disposição de caminhar juntos em direção à verdade, da qual ninguém é proprietário e para a qual todos e todas nós peregrinamos. Na história, muitas vezes, a hierarquia eclesiástica confundiu unidade com a busca do consenso e acreditou que é a autoridade do magistério eclesiástico que define o que se pensa e o que não se pode pensar e nem defender. Com o papa Francisco parecia que, finalmente, o evangelho de Jesus tinha podido ter voz nos corredores do Vaticano. Mesmo com as limitações e defeitos pessoais que pudesse ter, sobre ele se podia dizer o que, em seu tempo, Hannah Arendt escreveu sobre o papa João XXIII: “Finalmente, um cristão no Vaticano”.

Quando o papa Francisco partiu para a vida em plenitude, no mundo inteiro, muitas pessoas se perguntaram se poderiam afirmar isso do sucessor de Francisco ou se voltaríamos à normalidade institucional.

Nesses dias (17 de setembro de 2025), em sua primeira entrevista formal como papa, dada a Elise Ahn Allen, correspondente do jornal La Croix, em Roma, o papa Leão XIV afirmou: “Minha prioridade é anunciar o evangelho e não resolver os problemas do mundo”[1]

É claro que sem ainda termos acesso direto ao texto completo da entrevista e apenas ao vê-la no instagram, ou transcrita em sites de grupos católicos tradicionalistas, parece ainda cedo para se pronunciar sobre o real significado dessas palavras.

Tomadas ao pé da letra, alguém poderia pensar que, com essas palavras, o papa reafirme a posição que a hierarquia católica mantinha antes do Concílio Vaticano II, quando a Igreja restringia a missão à sua dimensão religiosa, separava o sagrado e o profano. Oficialmente, afirmava que sua missão era religiosa, mas tutelava a sociedade em todos os aspectos e apoiava os poderosos do mundo para melhor cumprir a sua missão sagrada. Só com o Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965), algo mudou radicalmente. Em novembro de 1965, todos os bispos católicos do mundo e o Papa Paulo VI assinaram a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje, cujo início reza: “As alegrias e esperanças, as tristezas e angústias da humanidade de hoje, sobretudo das pessoas pobres e de todas as que sofrem, são também as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos e discípulas de Cristo e não existe realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (Gaudium et Spes, n. 1).

Será que o atual papa, para ficar de bem com os grupos católicos tradicionalistas que nunca aceitaram o Concílio Vaticano II, pretende ignorar essa afirmação básica que une fé e vida, espiritualidade e compromisso social e político com a humanidade e com a Mãe-Terra?

O que significa hoje um papa afirmar que a sua prioridade é anunciar o evangelho e direcionado às pessoas que pertencem à Igreja Católica. De um lado, isso é bom porque é respeitoso e deixa claro que não se trata de converter crentes de outras Igrejas e outras religiões ao Catolicismo, mas, ao mesmo tempo, parece ignorar a palavra de um pastor da Igreja no século II que escreveu: “Para quem é cristão, nada do que é humano pode ser estranho”.

É importante que ele explicite com mais clareza o que entende por esse anúncio do evangelho, para que não se confunda a boa notícia do projeto divino no mundo apenas com uma doutrina religiosa e que essa sua opção não expressa nenhuma indiferença em relação aos problemas do mundo. O próprio papa Francisco já tinha escrito, na sua primeira exortação apostólica: “Não é função do papa oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea” (Evangelii Gaudium 51). No entanto, naquele texto, Francisco continua: “Não é função do papa oferecer análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades a desenvolver uma capacidade sempre vigilante para estudar os sinais dos tempos. Trata-se de responsabilidade grave, pois algumas realidades atuais, se não encontrarem boas soluções, podem desencadear processos de desumanização tais que, depois, será difícil retroceder. É preciso esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o projeto de Deus. Isto implica não só reconhecer e interpretar as moções do espírito bom e do espírito mau, mas também – e aqui está o ponto decisivo – escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito mau” (EG 51).

A partir daí, nessa exortação, cujo tema é exatamente anunciar o evangelho, Francisco elenca “diversos desafios do mundo atual” (EG 52) e afirma um vigoroso “Não à economia da exclusão. Não à idolatria do dinheiro. Não à desigualdade social que gera violência” (EG 53- 60)[2]

Por sua experiência de missionário na América Latina e de superior religioso no mundo, o papa Leão sabe que sobre essa realidade social e política do mundo, a Igreja não é exatamente inocente. Em sua história, na maior parte das vezes, a hierarquia católica se colocou do lado dos poderosos e legitimou o sistema capitalista. Este se fortaleceu com a Ética cristã, católica e protestante, muito cuidadosa com os problemas que dizem respeito à moral sexual, mas menos preocupada com as questões sociais, políticas e ecológicas que esse sistema provoca.

Se, ao menos, em parte, a realidade atual é fruto de uma sociedade na qual religião e política eram casadas e foram responsáveis por situações de injustiça estrutural e violência em todo o mundo, testemunhar o evangelho hoje exige a disposição de se colocar junto com as vítimas desse sistema do mundo. Se Deus é amor, não pode ser indiferente aos gritos da humanidade e da Mãe-Terra que sofrem. Como afirmava Arturo Paoli: Quem escolhe o último não exclui o primeiro. Quem escolhe o primeiro, nesse gesto em si, já exclui todos os outros.

Parece que, na época de Jesus, outros rabinos enviavam discípulos em missão para as cidades e aldeias da Galileia. Os discípulos enviados deviam colar versos da Torá em seus mantos, tomar cuidado de não se contaminar com alimentos impuros e não se misturar com os gentios.

Conforme os evangelhos sinóticos, Jesus enviou discípulos e discípulas em missão (Mt 10; Lc 9, 1- 6 e 10, 1- 9). Em suas orientações para o anúncio do evangelho, Jesus não usa nenhuma linguagem explicitamente religiosa. Não emite nenhuma regra de pureza. Nada especificamente ritual. Manda curar as pessoas doentes, libertá-las de energias negativas, naquela época, atribuída a espíritos maus. Hoje, chamaríamos de depressão, ou desequilíbrios psíquicos. Manda anunciar a proximidade do reinado divino e a Paz como aliança de comunhão entre Deus, a humanidade e a natureza.

O evangelho de Jesus, antes de ser anunciado, deve ser vivido por aqueles que pretendem anunciá-lo. Em sua época, Francisco de Assis preferiu falar em evangelicidade ou evangelismo, como forma de vida e proposta de missão.

Todos nós desejamos ao Papa Leão êxito em sua missão de anunciar o evangelho, principalmente desejando que, para não acentuar as polarizações dentro da Igreja, ele não opte por revitalizar alguns elementos do papado que, justamente, para melhor testemunhar o evangelho, Francisco optou por deixar.

Provavelmente, ele vai descobrir que o próprio evangelho suscita polaridades que são inevitáveis e que o próprio Jesus aceitou ser sinal de contradição. Conforme o quarto evangelho, foi no contexto da última ceia que Jesus afirmou à sua comunidade: “Eu vos trago a Paz, eu vos dou a minha Paz” (Jo 14, 27). No entanto, foi justamente no contexto do envio dos discípulos em missão, que reconheceu: “Não vim trazer a Paz, mas a espada. Vim provocar divisão entre pai e filho, entre filha e mãe…” (Mt 11, 34).

Se, em Roma e nas diversas Igrejas locais, os irmãos e irmãs prosseguirem com o esforço de atender ao chamado do Espírito para retomar a sinodalidade como “forma normal da Igreja ser”, o bispo de Roma reprenderá a sua missão de servidor da unidade na diversidade. Não caberá mais a ele sozinho decidir os temas que poderão ajudar a Igreja a superar os 200 anos de atraso que o Cardeal Martini denunciava. Mesmo que algum papa escolha para si o papel da irrelevância, a Igreja, como comunhão de Igrejas locais continuará a sua peregrinação.

Como o atual papa é um bom agostiniano, concluo essa reflexão com as palavras com as quais Santo Agostinho introduz o seu Tratado sobre a Trindade: “Quanto a mim, não terei repugnância de, na dúvida, procurar e no erro, me instruir. Se quem me lê comunga com a minha certeza, percorra o caminho comigo. Se partilha as minhas dúvidas, procure comigo. Se se reconhece no erro, retorne ao que digo; se me surpreende no erro, afaste-se de mim. Assim, avançaremos juntos no caminho da caridade para Aquele, do qual está escrito: “Procurai sem cessar a sua face” (…)  Ninguém conseguiu se fazer compreender por todos e sobre todas as coisas. Se o que escrevo não satisfaz a alguém e ele compreende mais facilmente outros autores, versados nesses temas, deixe então essas páginas  e dedique seu tempo àqueles que ele compreende.  Mas, não pense que teria sido melhor eu me calar, já que fui incapaz de me exprimir com clareza. (…)

Se alguém não me compreende, no lugar de me oprimir com recriminações e injúrias para me reduzir ao silêncio, faça um esforço maior para compreender. Se quiser com caridade e sinceridade me corrigir, no caso em que eu ainda viva nesse mundo, isso será um resultado considerável que tirarei do meu pequeno trabalho. Se eu não puder mais tirar proveito da correção, aqueles que puderem o façam com minha plena aprovação. (…) Espero da misericórdia de Deus que me faça perseverar em todas as verdades que são certas, e se tenho algum sentimento contrário ao que é verdade, me faça perceber isso, seja por alguma inspiração íntima, seja pelo testemunho de meus irmãos. Esse é o compromisso que faço com Ele que é bastante poderoso para manter o que me deu e ainda me dar o que prometeu” [3].


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[2]https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium_po.pdf

[3] – SANTO AGOSTINHO, De Trinitate, I, 2, 4 – 2, 5; dans Oeuvres de Saint Augustin, vol. 15, Desclée de Brouwer, Paris, 1955, pp. 97- 101. 

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