CPT/MG: 45 ANOS DE LUTA COM CONQUISTAS À CUSTA DE SANGUE. Por frei Gilvander Moreira[1]
Com cinquenta participantes, entre camponeses e camponesas, agentes de pastoral e assessoria, dias 16, 17 e 18 de agosto de 2024, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) no estado de Minas Gerais, CPT/MG, realizou sua trienal Assembleia Estadual, a XXIV, com o Tema: “CPT/MG, 45 ANOS DE AMIZADE SOCIOAMBIENTAL COM O DEUS DA VIDA, OS POBRES DA TERRA E TODA A CRIAÇÃO” e o Lema “A minha aliança é com tudo que existe na terra” (Cf. Gen 9,8-17). Foi muito boa a Assembleia. Por que e para que este Tema e este Lema?
Em Minas Gerais, no ano de 1979, nascia no meio do campesinato a Comissão Pastoral da Terra, quatro anos após a criação da CPT nacional, em junho de 1975. No estado de Minas Gerais, até uns 50 ou 60 anos atrás, embora a terra estivesse em cativeiro nas garras de coronéis latifundiários, o território das minas e dos gerais era um “paraíso terrestre” constituído por um esplendor de biodiversidade, que fazia Minas Gerais ser considerada a caixa d’água do Brasil, ao irrigar com abundância as bacias hidrográficas do Rio São Francisco (2.830 Km), Rio das Velhas (801 km), Rio Grande (1.090 Km) e Rio Paranaíba (1000 Km), que formam o rio Paraná, além das bacias do Rio Doce (853 Km, Watu, rio sagrado segundo o Povo Indígena Krenak), Rio Jequitinhonha (1.090 km), Rio Paraíba do Sul (1.137 Km), Rio Pardo (573 Km), Rio Araguari (475 Km), Rio Mogi-Guaçu (473 Km), Rio Mucuri (446 Km), Rio Pará (365), Rio Santo Antônio (287 Km), entre dezenas de outros rios.
Em Minas Gerais, além de Mata Atlântica, o bioma cerrado, santuário natural e sagrado, era grande celeiro de fontes de águas e de alimentos. Nascentes, olhos d’água, grotas, córregos, brejos, veredas, lagoas e rios por todos os lados. Água de classe especial a gente podia pegar com a mão e beber direto do rio ou córrego sem necessidade de ser filtrada. Com uma extraordinária biodiversidade, o cerrado mineiro era moradia e lar de uma riquíssima fauna – antas, seriemas, tatus de vários tipos, lobo guará, tatu-canastra, veado-mateiro e de outros tipos, raposa-do-campo, gato-do-mato, macaco-prego, tamanduá bandeira, lontra, caititu, queixada, entre muitos outros.
Nas matas, onça pintada e de outros tipos; nas beiras dos rios, pacas, cutias … “A gente não precisava nem de anzol para pescar peixe. Era cardume de peixes por todos os lados nos rios. Podia-se matar peixes com facão. A gente dizia para a esposa: “ponha a gordura de porco na panela no fogão à lenha que vou ali no rio buscar os peixes para serem fritados”, gostam de recordar os camponeses idosos das Minas e dos Gerais.
Asfalto era raridade no interior de Minas Gerais. Dia 22 de fevereiro de 1.995, em Andrequicé, distrito de Três Marias, visitamos o grande inspirador de João Guimarães Rosa, Manuelzão, homem dos cerrados. Perguntamos ao Manuelzão se o mundo estava melhorando. Como resposta, obtivemos: “Cinquenta anos atrás não tinha asfalto rasgando os cerrados. As estradas eram de chão batido. A gente via fileiras de caminhões lotados de feijão, milho, arroz e mandioca indo para a capital para matar a fome do povo lá de Belo Horizonte. Hoje, cinquenta anos depois, a estrada está asfaltada e o que a gente vê? Um caminhão atrás do outro, carretas e mais carretas cheias de carvão indo para a região de Belo Horizonte para matar a fome das caldeiras das siderúrgicas. Queimaram quase todos os cerrados. Pensam que eucalipto é salvação pra tudo. Quem ganha com a devastação dos cerrados? Desrespeitar os cerrados é desrespeitar o próximo, a Deus e a si mesmo.”
Dentro do cerrado a gente podia viver quantos dias quisesse sem passar fome e nem sede, pois os frutos do cerrado estavam por todos os lados: favos de mel de abelhas de várias espécies, manga, pequi, bocaiuva, mangaba, cagaita, baru, murici, mama-cadela, buriti, araticum, buriti, coquinho-azedo e guabiroba, jatobá-do-cerrado, cereja-do-cerrado, cajuzinho-do-cerrado, pera-do-campo, pitomba etc. Havia matas de jabuticaba. A gente saía catando e enchia vários sacos. Só de recordar me dá água na boca.
Entretanto, os territórios em Minas Gerais estavam nas garras dos coronéis que com jagunços assassinaram dezenas de camponeses e superexploraram milhares. Quem não aceitava os ditames dos coronéis era expulso ou morto. Uma quilombola do Vale do Jequitinhonha nos contou: “Essas fazendas foram tomadas na marra. Eles mandavam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria também”. Milhares de famílias foram expulsas do campo, muitas delas sob ameaças de morte. Muitas casas foram derrubadas por jagunços e/ou por tratores a mando de fazendeiros. A quilombola completou: “Minha avó morava em uma fazenda há mais de cinquenta anos e foi expulsa sem direito a nada e ainda com ameaça de morte. Ela não tinha consciência dos direitos dela. Os coronéis davam uma ordem e se obedecia ou era expulso ou morto.” O sociólogo José de Souza Martins diz no livro Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político: “Para fazer valer o seu poder regional, os coronéis dispunham de grande número de jagunços, trabalhadores e agregados de suas fazendas e das fazendas de seus clientes e correligionários. […] O coronelismo enredava, numa trama complicada, questões de terra, questões de honra, questões de família e questões políticas” (MARTINS, 1983, p. 48).
Foi neste contexto de “paraíso terrestre”, mas aprisionado pelo latifúndio e pelos coronéis e diante dos clamores ensurdecedores dos camponeses e das camponesas que a CPT foi criada em Minas Gerais, em 1979. A narrativa do dilúvio na Bíblia pode ter sido inspirada em inundações regionais, mas no mais profundo se refere ao tsunami de exploração, escravidão e expropriação da terra que os impérios faziam, principalmente o Império Babilônico. O povo sem-terra exilado na Babilônia ou como “resto de povo” na própria terra, mas impedido de acessar a terra experimentava a situação de exílio e de aprisionamento da terra como um “dilúvio” que devastava quase tudo. Mesmo com pouca experiência, o camponês Noé, homem justo, fez uma arca e com profunda sensibilidade ecológica colocou na arca um casal de cada espécie, nos informa o texto bíblico (Gen 6,13-9,29). Parece que Chico Mendes aprendeu com Noé a necessidade de preservar as florestas e toda a biodiversidade.
Nos seus 45 anos, em Minas Gerais, parecida com Noé, com justiça, ética e profunda solidariedade com os camponeses e as camponesas, a CPT foi construindo “arcas de salvação e libertação” dos Povos do Campo. Já são 424 assentamentos de reforma agrária conquistados em Minas Gerais com muita luta coletiva, suor e sangue. A CPT contribuiu muito na construção de Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e na oposição quando muitos destes arrefeceram na luta por direitos. A CPT contribuiu na construção e desenvolvimento de vários Movimentos Sociais Camponeses, como o MST[2], MLT[3], MTC[4], FNL[5] e outros. A CPT/MG Contribuiu também na construção de Centros de Agroecologia, como o Centro de Agricultura Alternativa do norte de Minas (CAA), o Centro Agroecológico Tamanduá (CAT), de Governador Valadares, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA). A CPT se somou também na luta dos povos indígenas em Minas Gerais. O Povo Xakriabá já conquistou mais de 50 mil hectares do seu território, mas falta conquistar outros 50 mil hectares. A CPT vem se dedicando nas últimas décadas também à luta quilombola, que segue crescendo. O Quilombo dos Crioulos, com mais de 600 famílias, no norte de Minas Gerais, conquistou um território com 17.300 hectares.
Entretanto, estas conquistas têm custado muita luta, suor e sangue. Em uma sociedade capitalista, que é uma máquina brutal de moer vidas, é impossível construir um domingo de ressurreição com condições de vida justa e digna para todos/as sem companheiros/as de luta serem tombados na luta. Segundo dados da CPT, entre 1985 e 2015, no estado de Minas Gerais, 84 camponeses foram assassinados na luta pela terra. Como exemplo, podemos citar: Eloy Ferreira da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de São Francisco, no norte de Minas, assassinado dia 16 de dezembro de 1984; Júlio Rodrigues de Miranda, posseiro, presidente do STR de Unaí, assassinado dia 6 de outubro de 1985, no município de Unaí; os camponeses Antônio Joaquim, Donato e Ermes Miranda assassinados no norte de MG; os indígenas Rosalino Gomes, José Pereira Santana e Manuel Fiúza do povo indígena xacriabá, assassinados dia 12 de fevereiro de 1987; os três auditores fiscais do Ministério do Trabalho – Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva – e o motorista dos fiscais Ailton Pereira de Oliveira, assassinados em Unaí, no noroeste de Minas, dia 28 de janeiro de 2004, os cinco Sem Terra do MST, assassinados em Felisburgo dia 20 de novembro de 2004. Mas, “se me matam, vou ressuscitar na luta do meu povo”, já dizia dom Oscar Romero. “Do sangue de Margarida, Margaridas na luta!” O sangue dos/as mártires continuam circulando nas nossas artérias nas lutas por direitos que seguem.
Em 2024, em contexto de sirenes da emergência climática gritando de forma estridente, cultivar amizade socioambiental se tornou uma necessidade vital. Sem perder a opção de classe, a aliança com a classe camponesa na sua imensa pluralidade exige atualmente aliança com toda a “criação, que geme em dores de parto” (Rm 8,22), com todos os seres vivos e tudo o que existe.
Outro dia fiquei encantado ao assistir a uma palestra de um pensador argentino, inspirado no xamã yanomami Davi Kopewava, que diz que as rochas são colunas do planeta Terra e, por isso, devem ficar nas montanhas e não podem ser arrancadas das entranhas da mãe Terra. O pensador demonstrou que a vida acontece na relação de trocas de energias, como “o imã que atrai o ferro”. Dizia ele: “As pedras são vivas. Com a cumplicidade do Estado, as mineradoras estão promovendo um brutal assassinato das pedras e rochas que são vivas.” Por isso, a CPT/MG, ao celebrar seus 45 anos, reassume compromisso de aliança com os/as camponeses/as e tudo o que existe na natureza, pois precisa ser preservado e defendido com intrepidez.
Para continuarem reproduzindo o capital os capitalistas criaram o modelo de “economia verde”, que é uma ilusão ideológica que fixa valores para destruição ambiental. Propagam a mentira que “com mais do mesmo”, mudando apenas os rótulos e as aparências chegaremos à sustentabilidade ambiental. Endeusam o poderio da tecnologia como se só com avanços tecnológicos fosse possível consertar a brutal devastação que segue crescendo em progressão geométrica. Cientistas já demonstraram que o progresso capitalista está sendo consumido 1,7 planeta Terra. Ou seja, precisaríamos de mais de dois planetas Terra para suportar o exagero de consumo de bens naturais.
A cantilena da “transição energética” tem sido apontada pelo grande capital como a solução para avançarmos rumo a uma economia de baixo carbono. Como trocar gasolina por álcool não resolveu a injustiça ambiental e a poluição, trocar carros movidos a combustível fóssil por carros elétricos também será “mais do mesmo”, porque para suprir a demanda de energia intensificam-se os processos minerários e o controle da cadeia de suprimentos, o que implica acentuação de lógicas expropriatórias, com controle sobre os territórios e sobre os Povos. Em Arinos, no noroeste de MG, por exemplo, estão sendo implantadas placas de energia solar em 80 mil hectares de terra, o que causará a expulsão de milhares de famílias, brutal devastação ambiental, assassinato de animais e pássaros em massa, elevação da temperatura, o que já está sendo muito difícil de suportar.
Neste contexto, a CPT/MG continuará denunciando as violências da mineração, do ogronegócio com suas monoculturas desertificadoras de territórios. Defendemos os Direitos da Natureza e apontamos o caminho para a superação do capitalismo e construção de uma sociedade com justiça socioambiental, o que exige estilo de vida sóbrio e austero. É preciso frear o crescimento econômico que está gerando decrescimento brutal para a maioria. Preservar as condições de vida tornou-se imperativo ético para impedirmos a extinção da humanidade.
A XXIV Assembleia da CPT/MG aprovou quatro prioridades para o triênio de 2024-2027: 1ª) Apoiar a luta pela terra e território, água, alimento, sociobiodiversidade; 2ª) Organização e articulação das mulheres e juventudes; 3ª) Formação dos/as camponeses/as, comunidades e agentes; 4ª) Fortalecimento pastoral e institucional.
Reafirmou-se o apoio às lutas dos Povos Originários e dos Povos e Comunidades Tradicionais, a missão e a metodologia de trabalho da CPT: o trabalho de base, a educação do/no campo, a defesa dos direitos humanos de mulheres e minorias, o protagonismo dos camponeses e das camponesas, das comunidades e das juventudes.
Enfim, o sangue derramado ao longo da história da CPT/MG é força viva que impulsiona para as lutas necessárias. Viva a história da CPT!
Referência:
MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.
20/08/2024
Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – CPT/MG celebra 45 anos de luta e história em MG na XXIV Assembleia Estadual da CPT/MG. Viva! Vídeo 1
2 – Nos caminhos e trilhas da CPT-MG – 40 anos de luta: 1979-2019 / 02/8/2019
3 – CPT/MG: 40 anos, 1979 a 2019. Celso: Uma vida de luta e resistência. 1ª Parte. 10/3/2018.
4 – CPT/MG: 40 anos de luta – 1979 a 2019 – Celso fez história na CPT – 2ª Parte – 10/3/2018.
5 – Tiãozinho da Bio Saúde BH: A trajetória de uma luta. 1ª Parte. Belo Horizonte/MG, 30/12/2017.
6 – CPT-MG, 40 anos: Vale do rio Doce, Joaquim Nicolau – Luta pela terra, Medicina Tradicional. Vídeo 26
7 – CPT-MG, 40 anos. Rio Doce, Chico Mendes II, Cláudio/CAT; Aristeu; Clemens; Gonçalo, Tião. Vídeo 25
8 – CPT/MG + de 40 anos: Adão Pereira, Tião e Irmã Geni, em Jequitinhonha/MG, 1995-1998, luta pela terra
9 – CPT-MG 40 ANOS/Fé e coragem na luta contra a opressão no campo/Vale do Mucuri/Vídeo 1/08-3-2018
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese e Hermenêutica Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Lutas Populares. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br
[3] Movimento de Luta pela Terra.
[4] Movimento dos Trabalhadores Camponeses.
[5] Frente Nacional de Luta no Campo e na Cidade.