A APROPRIAÇÃO OU A VIDA (Mc 10,17-30) – EVANGELHO PARA ALÉM DOS TEMP(L)OS. Por Marcelo Barros

A APROPRIAÇÃO OU A VIDA (Mc 10,17-30) – EVANGELHO PARA ALÉM DOS TEMP(L)OS. Por Marcelo Barros

Marcelo Barros, padre, monge beneditino, biblista e teólogo

Neste XXVIII Domingo comum do ano B, dia 13/10/24, o evangelho é Marcos 10, 17- 30. Conta o encontro que Jesus, em meio à sua caminhada, teve com um homem rico. 

Os três evangelistas sinóticos, Mateus, Marcos e Lucas situam esse acontecimento no momento em que Jesus está dedicado a aprofundar a formação dos seus discípulos e discípulas. E no texto anterior a esse, Jesus toma a defesa das pessoas marginalizadas pela sociedade, sejam as mulheres abandonadas pelos maridos, sejam as crianças. Duas vezes, o texto recorda que Jesus está no caminho e se trata do caminho para Jerusalém, para enfrentar os opressores dos poderes da política, da religião e da economia, o que lhe levará à condenação à morte na  cruz. E é nesse caminho que um homem rico se apresenta a Jesus. Esse rico vem perguntar a Jesus sobre como obter a vida eterna.

Ao contar a mesma história, o evangelho de Mateus diz logo que se tratava de um “jovem rico” (Cf. Mt 19, 16- 26). Lucas esclarece que era um “homem de negócios ou comerciante” (Cf. Lc 18,18-27). Para a comunidade de Marcos, é simplesmente alguém, mas que na sequência se diz que se trata de um homem rico. Escrevendo para ocidentais, Marcos diz que aquele homem (ou mulher) se ajoelha diante de Jesus (os orientais não tinham esse costume) e lhe pergunta como poderia entrar na vida eterna. Com essa pergunta, ele ou ela expressa certo individualismo. A única coisa que lhe importava era a salvação pessoal. Pareceria hoje, a espiritualidade das pessoas que colam no seu carro um adesivo: “Esse foi Jesus que me deu”. Jesus lhe responde: Observe os mandamentos sobre a relação com o próximo. É importante porque nessa etapa da formação dos discípulos e discípulas, Jesus os ensina a interpretar a Escritura. Nesse caso, ele cita os mandamentos que dizem respeito à nossa relação com as outras pessoas. De propósito deixa de lado os mandamentos que dizem respeito diretamente à nossa relação com Deus. Para Jesus, o mais importante não são os mandamentos religiosos e sim os sociais. E, ao citar alguns desses mandamentos da lei judaica, acrescenta um que não está no Deuteronômio: “Não explore ninguém. Não roube o que é de outro”. Na Bíblia, isso significa na prática: não seja injusto com quem trabalha para você. Não pratique uma religião egoísta. Sua espiritualidade depende de como você trata os outros. Aquela pessoa responde que já observa isso.

Então, o evangelho de Marcos acrescenta: Jesus o olhou, o amou e lhe disse: “Falta-te uma coisa: vá, venda tudo o que tem, dê aos pobres e terá um tesouro no céu. Depois, venha e me siga.” Vender tudo e  doar tudo aos pobres. Não diz vender apenas parte e só doar parte.

Só o olhar amoroso de Jesus e essa atenção especial poderia dar à aquela pessoa a possibilidade de mudança de vida. O objetivo do Evangelho não é a salvação individual. É a realização da justiça do reino: o projeto de Deus nesse mundo. É preciso passar de uma visão de fé, baseada na salvação individual, tipo: Jesus te salva, como é a teologia burguesa, para uma visão de fé, centrada na justiça libertadora do reino de Deus.

O evangelho diz: “o tal homem, ou mulher, não aceita a palavra que tinha ouvido e se retira triste, porque possuía muitas propriedades” (v. 22). E Jesus constata que o seu olhar amoroso fracassou. Ele diz simplesmente aos discípulos: “Como é difícil um rico entrar no projeto divino do reino”. A questão não é se um rico pode ir para o céu ou não. Essa não é a questão de Jesus. O que ele diz é que todas as riquezas (não fala do rico) são, em si, injustas.

Nos evangelhos há dois tipos de perguntas dirigidas a Jesus: a pergunta/pedido dos empobrecidos que clamam pelo “aqui e agora”: pedem visão, pão e saúde; e a pergunta dos doutores da lei e dos ricos que perguntam sobre “o pós morte”: como se salvar, “ganhar a vida eterna”. A estes Jesus os faz olhar para a realidade social e convida à conversão nas relações humanas do aqui e do agora. Religião que induz salvação pessoal não é religião libertadora.

A sociedade dominante sempre olha a vida a partir da preocupação com o dinheiro, a produção e a riqueza. Esse modo de organizar a sociedade só tem produzido guerras, desigualdade, miséria e destruição da natureza.

O que Jesus quer é que os discípulos e discípulas compreendam que uma economia baseada na acumulação individual não é compatível com o projeto divino.  E aí o evangelho se volta para a educação do discipulado. Só Deus pode fazer até mesmo o impossível que seria tornar a pessoa rica capaz de compartilhar o que tem.

Os discípulos têm dificuldade de compreender isso. Viver o evangelho não é obedecer às leis, às regras e aos preceitos. É seguir Jesus e se comprometer com a causa do reino da justiça. Pedro compreende isso. Ele vê que, de fato, os discípulos e discípulas ouviram um chamado e seguiram o Mestre. Por isso, Pedro pergunta: “e nós, que deixamos tudo e te seguimos? Ele não pergunta qual será a recompensa ou o prêmio. É mais uma questão afetuosa: E nós? E a eles, entre os quais não há nenhum rico, Jesus responde: a quem renuncia a tudo pelo reino, Deus dá cem vezes mais, porque dá a comunidade, a vida partilhada, o afeto vivenciado e a riqueza coletiva. É aquilo que agora os povos originários chamam de “bem-viver”.

Há mais de 50 anos, no final da década de 1960, ao reler e traduzir o Concílio Vaticano II para a América Latina, a 2ª Conferência dos Bispos Católicos do continente em Medellín, na Colômbia, introduziu na missão da Igreja a questão da Pobreza na Igreja, tema de um dos documentos (n. 14).

 A conferência de Medellín foi um acontecimento excepcional, cujo clima nunca mais se conseguiu repetir ou retomar. A partir daí, um dos debates mais difíceis nos ambientes eclesiais tem sido a “opção pelos pobres”. Já em Puebla, onze anos depois, o grupo de bispos mais conservadores insistia que a Igreja é de todos e não se deveria particularizar. Daí nasceu o adjetivo “preferencial”: opção preferencial pelos pobres. Muitos insistem: é preferencial e não exclusiva. Desde os tempos do Concílio Vaticano II até hoje e agora o Papa Francisco, assim como as pessoas e grupos mais conscientes preferem falar em inserção no mundo dos empobrecidos. Por isso, na América Latina, se fala em “Igreja dos pobres” e que, a partir do povo empobrecido e da imensa massa dos povos excluídos, se torna espaço de comunhão para toda a humanidade.

Poema- oração de Dom Helder Camara:

Mesmo Tu

com o Teu olhar irresistível

de infinita bondade

não conseguiste comover

o coração

do jovem Rico.

E ele, desde a infância,

praticava

todos os mandamentos.

Senhor, meu Senhor

não nos deixes atenuar

– por uma errônea caridade –

as verdades duríssimas

que disseste aos Ricos… (Recife, 13-14/10/1973)[1].


[1] – DOM HELDER CAMARA. 181ª Circular. (13/ 14. 10. 1973). in Circulares Pós-Conciliares. Volume VI. Tomo III. Recife: CEPE, 2025, pp. 379- 380.

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