BÍBLIA E ECOLOGIA

BÍBLIA E ECOLOGIA

Dourados, MS, 16 a 18 de setembro de 2012

Frei Carlos Mesters

(Obs.: Esse artigo é o 1º de uma série de 10 artigos de frei Carlos Mesters que disponibilizaremos na internet, em www.gilvander.org.br , em breve.)

 

 

INTRODUÇÃO

Artigo de Leonardo Boff (Folha de SP julho 2012)

Entrando no assunto:

OS DOIS LIVROS DE DEUS

1º LIVRO: a Criação, a Vida

2º LIVRO: a Bíblia

1. Superar o fundamentalismo

2. Superar as imagens ultrapassadas de Deus

3. Ter presente as perguntas que a vida levanta.

ANTIGO TESTAMENTO

O olhar dos profetas sobre a Criação de Deus

Os profetas Jeremias, Isaías, Elias

NOVO TESTAMENTO

O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus

O olhar dos cristãos sobre Jesus como centro do Cosmos

O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus

O olhar dos cristãos sobre Jesus como centro do Cosmos

OS SALMOS

O olhar do povo orante sobre a Criação de Deus

Mística Cósmica: aprender a rezar os fenômenos da natureza

A LIÇÃO DOS ÍNDIOS

PAI NOSSO ECOLÓGICO

INTRODUÇÃO

1. Artigo de Leonardo Boff (Folha de SP julho 2012)

A crise atual não é apenas de escassez crescente de recursos e de serviços naturais. É fundamentalmente a crise de um tipo de civilização que colocou o ser humano como “senhor e dono” da natureza (Descartes). Esta, para ele, é sem espírito e sem propósito e por isso pode fazer com ela o que quiser.

Segundo o fundador do paradigma moderno da tecno-ciência, Francis Bacon, cabe ao ser humano torturá-la, como o fazem os esbirros da Inquisição, até que ela entregue todos os seus segredos. Desta atitude se derivou uma relação de agressão e de verdadeira guerra contra a natureza selvagem que devia ser dominada e “civilizada”. Surgiu também a projeção arrogante do ser humano como o “Deus” que tudo domina e organiza.

Devemos reconhecer que o Cristianismo ajudou a legitimar e a reforçar esta compreensão. O Gênesis diz claramente: ”enchei a Terra e sujeitai-a e dominai sobre tudo o que vive e se move sobre ela”(1,28). Depois se afirma que o ser humano foi feito “à imagem e semelhança de Deus”(Gn 1,26). O sentido bíblico desta expressão é: o ser humano é lugar-tenente de Deus e como Este é o senhor do universo, o ser humano é senhor da Terra. Ele goza de uma dignidade que é só dele, o de estar acima dos demais seres. Dai se gerou o antropocentrismo, uma das causas da crise ecológica. Por fim, o estrito monoteísmo retirou o caráter sagrado de todas as coisas e o concentrou só em Deus. O mundo, não possuindo nada de sagrado, não precisa ser respeitado. Podemos moldá-lo a nosso bel-prazer. A moderna civilização da tecnociência encheu todos os espaços com seus aparatos e pôde penetrar no coração da matéria, da vida e do universo. Tudo vinha envolto pela aura do “progresso”, uma espécie de resgate do paraíso das delícias, outrora perdido, mas agora reconstruído e oferecido a todos.

Esta visão gloriosa começou a ruir no século XX com as duas guerras mundiais e outras coloniais que vitimaram duzentos milhões de pessoas. Quando se perpetrou o maior ato terrorista da história, as bombas atômicas lançadas sobre o Japão pelo exército norte-americano, que matou milhares de pessoas e devastou a natureza, a humanidade levou um susto do qual não se refez até hoje. Com as armas atômicas, biológicas e químicas construídas depois, nos demos conta de que não precisamos de Deus para concretizar o Apocalipse.

Não somos Deus e querer ser “Deus” nos leva à loucura. A idéia do homem como “Deus” se transformou num pesadelo. Mas ele se esconde ainda atrás do  “tina” (there is no alternative) neoliberal:”não há alternativa, este mundo é definitivo.” Ridículo. Demo-nos conta de que “o saber como poder” (Bacon) quando feito sem consciência e sem limites éticos, pode nos autodestruir. Que poder temos sobre a natureza? Quem domina um tsunami? Quem controla o vulcão chileno Puyehe? Quem freia a fúria das enchentes nas cidades serranas do Rio? Quem impede o efeito letal das partículas atômicas do urânio, do césio e de outras liberadas, pelas catástrofes de Chernobyl e de Fukushima? Como disse Heidegger em sua última entrevista ao Der Spiegel: ”só um Deus nos poderá salvar”.

Temos que nos aceitar como simples criaturas junto com todas as demais da comunidade de vida. Temos a mesma origem comum: o pó da Terra. Não somos a coroa da criação, mas um elo da corrente da vida, com uma diferença, a de sermos  conscientes e com a missão de “guardar e de cuidar do jardim do Éden” (Gn 2,15), quer dizer, de manter a condições de sustentabilidade de todos os ecossistemas que compõem a Terra.

Se partimos da Bíblia para legitimar a dominação da Terra, temos que voltar a ela para aprender a respeitá-la e a cuidá-la. A Terra gerou a todos. Deus ordenou: “Que a Terra produza seres vivos, segundo  sua espécie”(Gn 1,24). Ela, portanto, não é inerte, é geradora e é mãe. A aliança de Deus não é apenas com os seres humanos. Depois do tsunami do dilúvio, Deus refez a aliança “com a nossa descendência e com todos os seres vivos”(Gn 9,10). Sem eles, somos uma familia desfalcada.

A história mostra que a arrogância de “ser Deus”, sem nunca poder sê-lo, só nos traz desgraças. Baste-nos ser simples criaturas com a missão de cuidar e respeitar a Mãe Terra.

2. Entrando no assunto:

Devemos ter presente que houve uma ruptura na vivência da fé. Até o século XVI, dentro dos critérios da cosmo-visão que eles tinham, o povo de Deus soube integrar a visão da Natureza (Cosmos), a vivência da fé e a celebração litúrgica. Basta ver os relatos bíblicos e os Salmos, nos quais terra, sol, lua, estrelas, plantas e montanhas, seres humanos, história e criação, tudo forma um conjunto vivo e harmonioso. A terra está no centro tendo o ser humano como o dono da casa que toma conta de tudo em nome de Deus (cf Sl 8).

Desde o século XVII para cá, a ciência progrediu e revelou uma visão totalmente nova do universo. A terra não é o centro; o sol não passa de uma estrela de segunda categoria na periferia da Via Láctea com seus bilhões de estrelas. Como a Via Láctea há mais outras cem bilhões de galáxias com outras tantas estrelas. Esta descoberta das ciências trouxe um descrédito com relação à cosmo-visão que transparece na Bíblia, na teologia e na vivência litúrgica. Rompeu-se a visão harmoniosa do cosmos. O ser humano já não é o centro do cosmos, a terra deixou de ser um santuário divino.

A terra não passa de um simples planeta entre milhares de outros planetas. Em vez de ser nossa casa recebida de Deus, ela tornou-se mercadoria. Ela já não nos fala de Deus, nem da nossa origem nem do nosso destino. Nós nos comportamos como donos para fazer o que bem entendermos com os recursos da natureza. A ganância interesseira faz crescer em muitos a vontade de explorar os outros, impedindo que tenham acesso aos mesmos bens. E o resultado é o desequilíbrio total de tudo:

* é o caos da poluição ameaçando a vida no planeta que volta a ser “sem forma e vazio” (Gn 1,2);

* é o irmão matando o irmão, é Caim matando Abel (Gn 4,1-16);

* é a violência extrema e agressiva, pior do que a de Lameque (Gn 4,17-24);

* é a manipulação da religião que desintegra tudo e dá origem ao Dilúvio (Gn 6,1-7):

* é uma nação querendo dominar as outras, criando a confusão da Torre de Babel (Gn 11,1-9).

Perdemos o contato com a natureza, com a nossa origem. Já não sabemos quem somos. Dizemos que conhecemos a nossa história, mas conhecemos apenas uns poucos anos, não mais que uns 20 ou 30 séculos. Só o planeta Terra, nossa casa, já tem mais de 3 bilhões de anos. A carteira de identidade indica nossa idade, diz o ano em que nascemos. Dificilmente alguém passa dos 90 anos. Na realidade, como parte do universo, nós seres humanos temos em torno de 14 bilhões de anos.

É urgente criar em nós uma atitude totalmente nova frente à natureza. Acolhendo os dados da ciência e as questões levantadas pela devastação do meio ambiente, devemos tentar chegar a uma nova integração entre natureza e fé que nos ajude a superar a visão utilitarista do cosmos divulgada pelo sistema neo-liberal. Em vista disso vale a pena refletir sobre “Os dois Livros de Deus”

OS DOIS LIVROS DE DEUS

1º LIVRO: a criação, o cosmos, a natureza, o universo, a vida, o mundo, os fatos, a história

O primeiro livro de Deus não é a Bíblia, mas sim a natureza. É através do Livro da Natureza ou da Vida que Deus quer falar conosco. De que maneira a natureza é o Livro de Deus? Deus criou as coisas falando. Ele disse: “Luz!” E a luz começou a existir (Gn 1,3). Tudo que existe é a expressão de uma palavra divina, como tão bem verbaliza o salmo: “O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia passa a mensagem para outro dia, a noite a sussurra para a outra noite. Sem fala e sem palavras, sem que a sua voz seja ouvida, a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua linguagem” (Sl 19,2-5).

Cada ser humano é uma palavra ambulante de Deus (Gn 1,27). As crianças são palavra de Deus para os pais; os pais são palavra de Deus para as crianças. Mas nós já não nos damos conta de que estamos vivendo no meio do livro de Deus e que cada um de nós é uma página viva deste livro divino. Há algo que nos impede de reconhecer a presença da Palavra na vida, algo que “sufoca a verdade” (Rom 1,18). O que nos impede?

Santo Agostinho diz que foi o pecado, i.é., esta nossa mania de querer dominar tudo, de tratar a natureza como mercadoria e de achar que somos donos de tudo. Por isso, as letras do Primeiro Livro de Deus se atrapalharam e já não conseguimos descobrir a fala de Deus no Livro da Vida. Perdemos o olhar da contemplação, a capacidade de admirar. Por isso, nasceu a Bíblia, o Segundo Livro de Deus.

2º LIVRO: a Bíblia

A Bíblia foi escrita, não para substituir o Livro da Vida, mas sim para ajudar-nos a entendê-lo melhor e a descobrir nele os sinais da presença de Deus. O estudo e a leitura orante da Bíblia nos devolvem o olhar da contemplação. Ajudam a decifrar e a interpretar os acontecimentos, a natureza. Fazem com que o Universo se torne novamente uma revelação de Deus, e volte a ser o que deve ser “O Primeiro Livro de Deus”.

O texto da Bíblia não caiu pronto do céu. Nasceu aos poucos, fruto da ação do Espírito de Deus e de um demorado processo de busca do ser humano. Impelido pelo desejo de encontrar Deus na vida, o povo foi descobrindo os sinais da sua presença e, dentro dos critérios da cultura da época, transmitia para os filhos as suas descobertas. Assim foi nascendo a Tradição Viva do Povo de Deus, transmitida oralmente de geração em geração. No fim, escreveram tudo num livro. Este livro é a Bíblia.

A Bíblia traz o resultado da leitura que o povo hebreu conseguiu fazer da vida e da natureza para descobrir nelas a fala de Deus. Este Segundo Livro de Deus (a Bíblia), assim dizia Santo Agostinho, ajudou o povo a entender melhor o Primeiro Livro (a Vida, a Natureza). Com a orientação da Bíblia devemos também nós “escrever a nossa Bíblia”, isto é, devemos imitar o povo de Deus e, como eles, ler a nossa realidade para descobrir dentro dela os apelos de Deus e expressá-los dentro dos critérios da nossa cultura.

Muitos perguntam: mas o que fazer com a Bíblia e a sua cosmo-visão ultrapassada? Como ela pode nos ajudar a interpretar este universo imenso que a ciência descortina diante de nós? Aqui vale a pena retomar uma palavra de Clemente de Alexandria, um sábio africano do século IV da cidade de Alexandria no norte do Egito. Ele dizia: “Deus salvou os judeus judaicamente, os gregos, gregamente, os bárbaros, barbaramente”. E podemos continuar: “Os brasileiros, brasileiramente; os argentinos, argentinamente; os latinos, latinamente” ” etc. Os judeus, os gregos e os bárbaros, cada um no seu tempo e na sua cultura, através da teimosia da sua fé e no meio das muitas crises das suas histórias, foram capazes de descobrir os sinais da presença amorosa de Deus em suas vidas. Assim também nós estamos sendo desafiados a fazer hoje o mesmo que eles fizeram no seu tempo, a saber: descobrir a mesma presença divina dentro da nossa realidade.

Isto implica em três tarefas: (1) superar o fundamentalismo; (2) superar as imagens ultrapassadas de Deus e (3) ter presente as perguntas que a vida levanta

1. Superar o fundamentalismo: limpar o livro com o uso da ciência e do bom senso

Uns dizem que a Bíblia é um livro infantil, ultrapassado pelas descobertas da ciência. Outros, em nome da Bíblia, negam as conclusões da ciência e dizem: “Prefiro ser criatura de Deus a ser descendente de macaco!” Os dois são fundamentalistas, ambos tomam a Bíblia ao pé da letra. Nenhum dos dois foi capaz de descobrir a mensagem de vida encerrada na letra da Bíblia. Nos dois, a visão fundamentalista da letra bloqueou a comunicação correta com a Bíblia e matou neles a possibilidade de descobrir o sentido verdadeiro, escondido na letra. Dizia o apóstolo Paulo: “A letra mata. É o Espírito que dá vida à letra” (2Cor 3,6). Por mais que invoquem ou neguem a ciência, nenhum dos dois soube usar a ciência que poderia ajudá-los a descobrir o sentido que existe dentro da letra. O fundamentalismo é inimigo da verdade.

Com a ajuda do bom senso e da ciência (exegese) devemos estudar a letra, a linguagem, o estilo, a expressão literária, o contexto histórico e procurar descobrir a intenção, o fio da meada, as convicções de fé que nelas se expressam. Situando assim o texto da Bíblia no seu contexto humano de origem, quebramos o fundamentalismo, e limpamos e renovamos o livro.

2. Superar as imagens ultrapassadas de Deus: limpar os olhos que lêem a Bíblia

Mas não basta limpar o livro. Temos que limpar também os olhos que lêem o livro. O problema de fundo está no olhar com que lemos a Bíblia. Uma comparação: Na sala onde o povo estava reunido penduraram a foto de um homem muito severo que com o dedo em riste parecia agredir o público. O pessoal olhava e dizia: “Sujeito antipático! Dá até medo na gente!”. Um outro dizia: “Coitado da mulher dele!’  –“É melhor ficar longe dele!” Aí entrou um rapaz, olhou a foto e disse: “É meu Pai!’  –“Pai severo, hein!”  –“Não! Nada disso! Meu pai é advogado. Tirei a foto quando ele, diante do juiz, defendia um grupo de pobres que corriam perigo de perder suas casas construídas num terreno baldio. Um ricaço queria despejá-los e construir aí um grande prédio para ganhar mais dinheiro. Meu pai os defendeu com força e ganhou a causa. Os pobres continuam em suas casas e até ganharam a escritura!” Todos olharam a foto e disseram “Que pessoa simpática!”

De repente, tudo mudou! E mudou sem que mudasse coisa alguma. O que mudou? A foto continuou igual. O que mudou foram os olhos. Foi a experiência do filho que entrou no coração do pessoal e se colocou atrás os olhos. No tempo de Jesus, o povo olhava a Bíblia e ficava com medo de Deus que parecia severo e ameaçava o povo com castigo. Aí chegou Jesus, olhou a Bíblia e dizia: “É meu Pai!” Aí tudo mudou, sem mudar uma vírgula sequer! (Mt 5,18). O que mudou foram os olhos. Temos que criar em nós a experiência de Jesus, o Filho do Pai. Aí os olhos se renovam, e o AT, sem mudar uma vírgula sequer, vira NT.

3. Ter presente as perguntas que a vida levanta.

Hoje, mais do que nunca, em cada nova geração, as mesmas perguntas de sempre renascem e levantam a cabeça em busca de uma resposta: Por que existimos? Quem nos fez? Quem é Deus? Qual o sentido da nossa vida? Deus, onde estás? Todas estas perguntas e contradições fazem parte do Primeiro Livro de Deus, e elas pedem uma resposta urgente. Antigamente, pensávamos de um jeito. Hoje, o bom senso e a ciência nos fazem pensar de outro jeito.

A gente sabe que Deus está presente em tudo, mas não sabemos como, de que maneira. Pois as contradições da vida e a própria ciência, às vezes, nos levam a dizer o contrário. Como Deus podia estar no massacre de milhões de judeus, ou no tráfico dos escravos? Se Deus é bom, como ele permite tantos males e sofrimento? Bento XVI, no campo de concentração de Auschwitz, onde os nazistas mataram milhões de judeus, ficou em silêncio e disse: “Deus, onde estavas Tu?” Castro Alves, diante do tráfico de escravos que matou milhões de negros, gritou: “Deus, onde estás, que não respondes?” E como Deus está presente nos resultados da ciência, na nova cosmo-visão?

Alberto Einstein dizia: “O mais bonito e o mais profundo que o ser humano pode experimentar é sentir algo do mistério. É isso que está na origem da religião e de toda a aspiração mais alta expressa na arte e na ciência. Quem nunca experimentou isto, me parece ser, não digo como um morto, mas como um cego”. De fato, existe nos povos e em todos nós uma intuição teimosa, mística, anterior aos dogmas e doutrinas, tanto da ciência como da religião. Em certos momentos, esta intuição se faz sentir também em cada um de nós. Voz silenciosa, frágil, sem palavras, que sobe do fundo do inconsciente coletivo da humanida­de e nos diz: “Deus existe, ele está conosco, ele nos ouve; dele dependemos, nele vivemos, nos movemos e existimos. Somos da raça do próprio Deus” (cf. At 17,28). E o coração humano responde murmurando: “Sim, Tu nos fizeste para ti, e o nosso coração estará irrequieto até que não descanse em Ti!”

Na estrada de Emaús, a primeira coisa que Jesus fez não foi ensinar verdades, mas sim escutar os problemas: aproximar-se, caminhar junto com os discípulos, escutar, perguntar, perguntar de novo, até saber qual era o problema que os incomodava (Lc 24,13-35).

Temos hoje dois grandes desafios: (1) temos que preservar o meio ambiente, para que as gerações futuras possam ter uma vida garantida, e (2) temos que criar em nós uma nova maneira de olhar o universo e redescobrir nossa missão como humanidade neste universo. Estas duas preocupações devem encontrar uma expressão concreta nas nossas atitudes pessoais, no relacionamento familiar e comunitário, na busca de Deus, na vivência da nossa espiritualidade.

Antigo Testamento:          O olhar dos profetas sobre a Criação de Deus. Os dois Livros de Deus. Os profetas Jeremias, Isaías, Elias e a busca de Deus.

Novo Testamento:            O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus. O olhar dos primeiros cristãos sobre Jesus como centro do Cosmos.

Os salmos.             O olhar do povo orante sobre a Criação de Deus. Mística Cósmica; aprender a rezar os fenômenos da natureza.

ANTIGO TESTAMENTO

O olhar dos profetas sobre a Criação de Deus

Os profetas Jeremias, Isaías, Elias

O problema da imagem de Deus em nós

Uma comparação: João teve que ir à rodoviária para receber a irmã do tio do pai. Visto que ele não conhecia a pessoa, deram a ele uma foto. Quando chegou o ônibus, João foi conferindo as pessoas, fotografia na mão. Só um pequeno detalhe. A foto era de 45 anos atrás. No fim, por último, sai do ônibus uma senhora já de idade. João pergunta, mostrando a foto: “Por acaso, a senhora viu se esta pessoa estava no ônibus?” Ela olhou, sorriu e disse: “Sou eu!” João olhou a pessoa conferiu com a foto e disse: “A senhora pode enganar os outros, mas não a mim!” Deixou a dona na rodoviária, voltou para casa e disse: “Pai, ela não chegou não. Acho que perdeu o ônibus!”. Foi a foto antiquada que impediu a João de reconhecer a tia na rodoviária.

Nós temos muitas fotos antiquadas de Deus na cabeça que bloqueiam tudo e nos impedem de reconhecer a presença de Deus na rodoviária da vida. Há pessoas que identificam Deus com a imagem que dele têm na cabeça e no coração. Não permitem que alguém a coloque em dúvida, pois é a sua segurança.

O que mais dificulta a descoberta da presença divina na vida é a imagem de Deus que nos orienta e determina nosso olhar. Todos temos, dentro de nós, uma imagem de Deus. Mesmo sem falar de Deus, dele somos um reflexo. Algo se comunica. Dizia um ex-drogado: “Fui criado na religião católica. Hoje não participo mais. Meus pais eram muito praticantes e queriam que nós, os filhos, fôssemos como eles. A gente era obrigado a ir à igreja sempre, todos os domingos e festas. E quando não ia, eles diziam: “Deus castiga!” Eu ia a contragosto, e quando fiquei adulto, deixei de ir. Fui deixando aos poucos. Eu não gostava do Deus dos meus pais. Não conseguia entender como é que Deus, criador do mundo, ficava em cima de mim, menino da roça, ameaçando com castigo e inferno. Eu gostava do Deus do meu tio que não pisava na igreja, mas que, todos os dias sem falta, comprava o dobro de pão, de que ele mesmo precisava, para dar para os pobres!”

O CONTEXTO de crise que fez nascer uma nova imagem de Deus e da criação

Uma crise de fé é como o cupim que vai entrando nas vigas do telhado. Bem devagar! O dono da casa não se dá conta, nem presta atenção. Vai vivendo despreocupado; a tudo desatento. De repente, um temporal cai sobre a casa e o telhado desaba. Desaba de repente, sim, mas é por causa da falta de cuidado do dono da casa que já vinha de longe. E o dono deu a culpa ao carpinteiro: “Mau serviço!”

Assim aconteceu com o povo de Deus. Desatento de tudo, permitiu que o cupim de uma falsa imagem de Deus fosse comendo por dentro a viga da sua fé. Ao longo dos 400 anos da monarquia (de 1000 a 600 aC), Javé, o Deus libertador do Êxodo, foi sendo reduzido à imagem de um Deus-Quebra-Galho, em tudo identificado com os interesses da monarquia. Os profetas alertavam sobre o perigo, mas ninguém lhes dava atenção, pois havia muitos falsos profetas que diziam o contrário (Jr 28,1-11; Ez 34,1-10). O cupim foi avan­çando e, de repente, veio a tempestade e tudo desabou! Deram a culpa ao Criador: “Mau serviço!”

No mês de agosto de 587 aC, Nabucodonosor, rei da Babilônia, invadiu a Palestina e destruiu a Cidade de Jerusalém (2Rs 25,8-12; Jr 52,12-16). Perderam tudo que, até àquele momento, havia sido a expressão eter­na, visível da presença de Deus: O Templo, morada perpétua de Deus (1Rs 9,3), foi incendiado (2Rs 25,9). A Monarquia, fundada para durar sempre (2Sam 7,16), já não existia (2Rs 25,7). A Terra, cuja posse tinha sido garantida para sempre (Gn 13,15), passou a ser a propriedade dos inimigos, (2Rs 25,12; Jr 39,10; 52,16). Os sinais (sacramentos, imagens) tradicionais da presença de Deus foram destruídos como copo de vidro que se quebra em mil pedaços (Jr 18,1-10). Deus parecia estar longe e já não lhes mostrava mais o seu rosto (Sl 10,1; Sl 12,2-4; 27,9; 30,8; 69,18; 80,4). De certa forma foi uma total “secularização” da vida.

A terrível imagem de Deus que falsificou a leitura do primeiro Livro de Deus.

Muita gente colocava a culpa em Deus. A falsa imagem do Deus-quebra-galho os impedia de opinar corretamente sobre a situação. Eles eram incapazes de descobrir a mentira que os impedia de enxergar (cf Is 44,20; Jr 6,15). A terceira Lamentação retrata bem o estado de desespero do povo. A terrível imagem de Deus que transparece nas entrelinhas deste lamento é a de um deus vingativo que só quer castigar:

“Eu sou o homem que conheceu a dor de perto, sob o chicote da sua ira. Ele (Deus) me conduziu e me fez andar nas trevas e não na luz. Ele volve e revolve contra mim a sua mão, o dia todo. Consumiu minha carne e minha pele, e quebrou os meus ossos. Ao meu redor, armou um cerco de veneno e amargura, me fez morar nas trevas como os defuntos, enterrados há muito tempo. Cercou-me qual muro sem saída, e acorrentado, me prendeu. Clamar ou gritar de nada vale, ele está surdo à minha súplica. Com pedra cercou a minha estrada, distorceu o meu caminho. Ele foi para mim como urso de tocaia, um leão de emboscada. Desviou-me do caminho, me despedaçou e deixou inerte. Disparou seu arco, fez de mim o alvo de suas flechas. Em meus rins ele cravou suas flechas, tiradas de sua aljava. Eu me tornei uma piada para todos os povos, a gozação de todo o dia. Encheu meu estômago de amargura, embriagou-me de fel. Fez-me dar com os dentes numa pedra, estendeu-me na poeira. Fugiu a paz do meu espírito, a felicidade acabou. Eu digo: “Acabaram minhas forças e minha esperança em Javé”. (Lam 3,1-18).

Quem tem esta imagem de Deus na cabeça e no coração, sente-se rejeitado para sempre. Se ele for esperar por Deus na rodoviária da vida com esta foto de Deus na mão, nunca irá encontrá-lo. Pois este Deus não existe! Era a falsa imagem de Deus que se instalou na cabeça do povo, fruto da tragédia do cativeiro e dos 400 anos de desvio da ideologia da monarquia.

As quatro tendências da reconstrução

A desintegração das instituições (templo, monarquia e posse da terra) e a dureza do cativeiro levaram a uma busca sem precedentes para reconstruir em novas bases sua identidade como povo de Deus. Apareceram quatro tendências misturadas entre si, mais ou menos contemporâneas:

a) A maioria silenciosa, que adotou os deuses do império. Por isso, o que mais transparece nos escritos daquela época é a denúncia do perigo dos ídolos (Is 44,9-20; Bar 6,1-72; Sl 115,4-8).

b) O grupo de Zorobabel e Josué, que queria restaurar o passado. Eles consideravam a época dos Reis como modelo. Foram eles que logo voltaram para a Palestina, quando Ciro permitiu o retorno (Esd 2,2; 3,2).

c) Os discípulos de Isaías, que reliam o passado em busca de uma luz para descobrir a presença de Deus naquela terrível ausência do cativeiro (cf. Is 40,6-11.27-31; 41,8-14; 43,1-5; etc) e se perguntavam: “O que será que Deus nos quer ensinar por meio desta tragédia?”

d) O grupo de Neemias e Esdras, que achava que se devia aceitar o domínio do rei estrangeiro, colaborar com ele (Br 2,21.24; Jr 27,6-8.12.17; 42,10-11) e, ao mesmo tempo, manter a consciência de ser o povo eleito de Deus, separado dos outros povos. Por isso, insistiam na observância da lei de Deus (Esd 7,26; Ne 8,1-6; 10,29-30) e na pureza da raça (Esd 9,1-2).

O grupo da maioria silenciosa desapareceu. O grupo da restauração não conseguiu realizar o seu intento. O grupo de Neemias e Esdras tornou-se hegemônico. Os discípulos de Isaías sobreviveram como um movimento sem poder, animando o povo na fé de que Deus continuava presente no meio deles. É deste último grupo que vem as reflexões que seguem.

O olhar dos profetas sobre a criação de Deus

Jeremias: um novo olhar sobre a presença de Deus na criação

Diante daquele desespero generalizado causado pela destruição do Templo por Nabucodonosor, Jeremias dizia: “de tudo isto, temos muito motivo de esperança!”  -“Qual?”  – “O sol vai nascer amanhã!” Jeremias redescobriu a presença de Deus na natureza. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não pode im­pedir o nascimento do sol! A certeza do nascer do sol não depende dos poderes deste mundo, nem depende da nossa observância da lei, mas está impressa na lógica da criação. É pura gratuidade, expressão do bem-querer do Criador. É promessa que não falha. Nós podemos romper com Deus, mas Deus não rompe conosco, pois cada manhã, através da seqüência dos dias e das noites, ele nos fala ao coração e diz: “Como é certo que eu criei o dia e a noite e estabeleci as leis do céu e da terra, também é certo que não rejeitarei a descendência de Javé e de meu servo Davi. Quando essas leis falharem diante de mim – oráculo de Javé – então o povo de Israel também deixará de ser diante de mim uma nação para sempre” (Jr 33,25-26; 31,36).

Esta nova maneira de olhar a natureza modificou os olhos e abriu um novo horizonte. A certeza da presença amorosa de Deus para além do poder de Nabucodonosor e do fracasso da observância provocou uma busca renovada dos sinais de Deus na natureza que nos envolve: as chuvas, as plantas, as fases da lua, o sol, as estações do ano, as sementes, os animais, etc. Tudo tornou-se sinal da presença gratuita de Deus. Com esta luz nos olhos começam a reler a história e a Natureza. (cf. 2ª Oficina).

O resultado desta nova maneira de olhar a natureza vai aparecer nas atitudes dos discípulos de Isaías e na releitura das historias do profeta Elias. Vai transparecer nas atitudes de Jesus e dos primeiros cristãos frente à natureza (2ª Oficina), nos Salmos (3ª Oficina) e nos Místicos e Místicas do Carmelo (4ª Oficina).

Os Discípulos e discípulas de Isaías: o Deus da família, perto de nós, na comunidade

Os discípulos e as discípulas de Isaías estavam junto do povo no cativeiro. A desintegração dos valores da época da monarquia criou uma conjuntura totalmente nova, diferente. No cativeiro, o único espaço de uma relativa autonomia e liberdade que ainda sobrava para o povo era o espaço familiar: o pai, a mãe, o marido, a esposa, um irmão ou irmã, o mundo pequeno da família, a “casa”. Os valores que antes faziam parte da vida já não existiam: a posse da terra, o templo, as peregrinações, o culto, o sacrifício, o sacerdócio, a monarquia, o rei. Nada disse tinha sobrado. Por isso, eles se perguntavam: “O que será que Deus nos quer ensinar por meio desta tragédia?”

Ora, foi neste pequeno espaço da família, da comunidade, da “casa”, que renasceu nos discípulos de Isaías uma nova experiência de Deus. A imagem de Deus, transmitida por eles, reflete este ambiente familiar da Casa. Deus é Pai (Is 63,16; 64,7), é Mãe (Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13), Marido (Is 54,4-5; 62,5), como parente próximo (goêl ou irmão mais velho) (Is 41,14; 43,1). Javé, o Deus que antes estava ligado ao Templo, ao culto oficial, ao sacerdócio, ao clero, à monarquia, agora está perto deles, “em casa”; casa pequena, quebrada e, humanamente falando, sem futuro, mas Casa, e não Templo. Não insistiram nas imagens religiosas tradicionais, mas usaram imagens novas tiradas da vida familiar e comunitária. Eles humanizaram a imagem de Deus e sacralizaram a vida, a família, a pequena comunidade, como o espaço do reencontro com Deus. E redescobriram que a missão do povo de Deus não consiste em ser chefe e senhor dos povos, mas sim em ser servo e discípulo (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12).

Os escritos dos discípulos e discípulas de Isaías foram conservados nos capítulos 40 a 66 do livro do profeta Isaías. Eles formam um ponto alto na história do povo do Antigo Testamento. Foi na meditação destes escritos de Isaías que Jesus achou as palavras para expressar sua missão (Lc 4,18-19 e Is 61,1-2).

A releitura da história de Elias: a brisa leve (1 Reis 19,1-21)

O profeta Elias viveu no século IX aC, no tempo do rei Acab e da rainha Jezabel. Inicialmente, as histórias de Elias eram transmitidas oralmente nas reuniões do povo. Foi no século VI, época do cativeiro, sob o impulso do novo olhar recebido de Jeremias e dos discípulos de Isaías, que o povo começou a reler e a redigir estas tradições orais sobre o profeta Elias.

Recordar e reler as histórias do profeta Elias era como olhar no espelho, reconhecer-se a si mesmo e descobrir o engano da fotografia antiquada que os impedia de perceber a presença de Deus no cativeiro. O estado de depressão em que Elias ficou ao fugir diante da ameaça da rainha Jezabel era um símbolo da situação do povo no cativeiro e também de muitos de nós hoje:

“Elias sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte, dizendo: “Chega, Javé! Tira a minha vida, porque não sou melhor que meus pais”. Deitou-se debaixo da árvore e dormiu. Então um anjo o tocou e lhe disse: “Levante-se e coma”. Elias abriu os olhos e viu bem perto da cabeça um pão assado sobre pedras quentes, e uma jarra de água. Comeu, bebeu e deitou-se outra vez”. (1Rs 19,2-6)

Elias só queria comer, beber e dormir. Como muitos dos exilados na Babilônia, como muitos de hoje, ele tinha perdido o sentido da vida. Não é que tivesse perdido a fé, mas, como nós hoje diante das novidades da ciência, ele já não sabia como enfrentar a realidade nova com a fé antiga. Estava meio perdido.

O anjo voltou uma segunda vez e, finalmente, Elias despertou, reencontrou a força e caminhou, 40 dias e 40 noites, até chegar ao Monte Horeb (1Rs 19,4-8), onde, séculos antes, naquele mesmo lugar, havia nascido o povo de Deus (cf. Ex 19,1-8). Elias voltou às raízes, às origens do povo! Era esta a caminhada que o povo do cativeiro devia fazer: voltar às raízes e refazer a história para poder reencontrar Deus na vida.

No Monte Horeb, Deus o interpela: “Elias, que fazes aqui?” Ele responde: “Eu me consumo de zelo pela causa do Senhor, pois os filhos de Israel abandonaram a aliança, derru­baram os altares e mataram os profetas. Fiquei só eu e até a mim eles querem matar!” (1Rs 19,10.14). Existe uma contradição entre o discurso e a prática. Conforme o discurso Elias pensa ser o único que sobrou para defender a Deus; mas na prática havia sete mil que não tinham dobrado o joelho diante de Baal (1Rs 19,18). Conforme o discurso, Elias está cheio de zelo; mas a prática mostra um homem medroso que foge (1Rs 19,3). O olhar de Elias estava perturbado por algum defeito que o impedia de avaliar a situação com objetividade. Ele não conseguia perceber a presença de Deus naquela situação em que se encontrava. O povo não conseguia perceber a presença de Deus no cativeiro da Babilônia. Como Elias, nós hoje, muitas vezes, não percebemos a presença de Deus, nem na natureza, nem na vida secularizada.

A surpresa do reencontro com Deus

Elias recebe a ordem: “Saia e fique no alto da montanha, diante de Javé, pois Javé vai passar!” (1Rs 19,11). Elias sai da gruta e se prepara para o encontro com Deus. Ele está na rodoviária da vida. O ônibus de Deus está chegando. O pessoal do cativeiro se prepara para encontrar a resposta. Fotografia na mão para conferir. Nós também! Momento solene!

No passado, naquela mesma Montanha, Deus manifestara sua presença no furacão, no terremoto e no fogo (Ex 19,16). Estes sinais tradicionais da presença de Deus eram os critérios que orientavam Elias na sua busca. Esta era a foto que ele tinha na mão. Mas acontece o inesperado. Parece até um refrão que chama a atenção: “Javé não estava no furacão!” – “Javé não estava no terremoto!” – “Javé não estava no fogo!” (1Rs 19,11-12) Os sinais tradicionais da presença de Deus (templo, rei e posse da terra) eram lâmpadas apagadas. Bonitas para ver, mas sem luz! Deixaram Elias no escuro! A imagem que ele tinha de Deus quebrou em mil pedaços. É o silêncio de Deus! A Noite Escura! Elias vivia no passado! Deus já não era como ele, Elias, e tantos outros no cativeiro o imaginavam e desejavam. As três fotografias de Deus que o orientavam na busca não deram certo. Eram como as fotografias de 40 anos atrás! Parecia a desintegração do mundo de Elias: espelho da desintegração da vida do povo no cativeiro e da vida de muitos hoje.

Em vez do furacão, do terremoto e do fogo, apareceu “o murmúrio de uma brisa leve” (1Rs 19,12). Em vez da jovem tia da foto de quarenta anos atrás, apareceu uma senhora de idade! João negou a senhora e ficou com a jovem da foto. Elias fez o contrário: cobriu o rosto com o manto (1Rs 19,13). Sinal de que intuiu a presença de Deus. Negou a foto antiquada e ficou com a brisa leve. Converteu-se!

Na língua hebraica, se diz literalmente: “voz de calmaria suave”, (qôl demamáh daqqáh). As traduções costumam dizer: “Murmúrio de uma brisa suave” A palavra hebraica, usada para indicar a brisa suave, vem da raiz DMH, que significa parar, ficar imóvel, emudecer. O “murmúrio de uma brisa suave”, que veio depois do furacão, terremoto e fogo, indica uma experiência, que, como um choque inesperado, faz a pessoa ficar calada, cria nela um vazio e assim a dispõe para escutar. É um puxão de orelha que desperta, quebra a ilusão e faz a pessoa colocar o pé no chão. Faz cair a ficha! Agóóóra entendi!

De repente, a situação de derrota, de morte e de secularização do cativeiro é percebida por Elias como sendo o momento e o lugar onde Deus o atinge. A brisa suave de Deus é o cativeiro! A escuridão iluminou-se por dentro e a noite ficou mais clara que o dia (Sl 139,12). Deus se fez presente na ausência para além de todas as representações e imagens! Escuridão luminosa! Não é a luz no fim do túnel, mas sim a luz diferente que já existia na escuridão do próprio túnel e que Elias não enxergava.

Hoje acontece a mesma coisa. Quem olha o mundo de hoje com os olhos do passado, dirá: “Está tudo errado! As igrejas estão ficando cada vez mais vazias. Só ficaram os velhos! A juventude está perdida!”. Mas quem é que está nas passeatas em defesa do meio ambiente, em protestos contra a corrupção? Quem luta pela justiça? Faça a ficha cair! Lembre a frase de Jesus: Era eu! Era eu! Era eu!  (Mt 25, 31-46)

A experiência de Deus na Brisa Leve produz uma mudança radical. Dá olhos novos. Elias descobre que não é ele, Elias, que defende a Deus, mas é Deus quem defende a Elias. É a sua conversão e libertação! Reencontrando-se com Deus, encontrou-se consigo mesmo e com a sua missão. Descobriu sua vocação lá, onde pensava que Deus não tivesse nada a dizer-lhe! Imediatamente, ele parte para cumprir as ordens de Deus. Uma delas é ungir Eliseu como profeta em seu lugar (1Rs 19,16). Renasce a profecia! A luta pela justiça renasce da experiência da gratuidade do amor de Deus que acolhe o pobre Elias.

NOVO TESTAMENTO

O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus

O olhar dos cristãos sobre Jesus como centro do Cosmos

Os discípulos conviveram três anos com Jesus. Três anos é muito pouco. Mas foi uma experiência tão forte, que os marcou pelo resto da vida. Foram necessários anos de reflexão para eles poderem vivenciar e assimilar toda a riqueza daqueles três anos com Jesus. Este longo processo de reflexão levou-os a aprofundar o mistério divino da pessoa de Jesus, o seu jeito de colocar-se diante da Criação de Deus e a sua posição como centro da criação de Deus.

A fonte, onde os primeiros cristãos buscavam a luz para as suas reflexões eram (1) a lembrança dos gestos e palavras do próprio Jesus, (2) a experiência da vida em comunidade, marcada pela presença do Espírito de Jesus, e (3) a Bíblia, o Antigo Testamento.

Nesta oficina vamos tentar fazer o mesmo processo de reflexão dos primeiros cristãos. Vamos ver de perto duas coisas: 1) O olhar do próprio Jesus sobre a Criação de Deus e as raízes deste olhar que se espalham por todo o Antigo Testamento. 2) O olhar dos primeiros cristãos sobre Jesus como centro do Cosmos e as raízes deste olhar que também se encontram no Antigo Testamento.

1. O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus

Alguns textos do evangelho que revelam o olhar de Jesus sobre a natureza

Vou lembrar dois textos do evangelho de Mateus. Tente sentir neles o jeito de Jesus se relacionar com a natureza, a lição que ele tirava da observação das criaturas e como a natureza lhe falava de Deus e da vida. Tente encontrar outros textos que revelam o olhar de Jesus sobre a criação de Deus.

Mateus 5,43-48:

43 “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo! ‘ 44 Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês! 45 Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos. 46 Pois, se vocês amam somente aqueles que os amam, que recompensa vocês terão? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? 47 E se vocês cumprimentam somente seus irmãos, o que é que vocês fazem de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? 48 Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu.”

Mateus 6,25-34:

25 “Por isso é que eu lhes digo: não fiquem preocupados com a vida, com o que comer; nem com o corpo, com o que vestir. Afinal, a vida não vale mais do que a comida? E o corpo não vale mais do que a roupa?  26 Olhem os pássaros do céu: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, o Pai que está no céu os alimenta. Será que vocês não valem mais do que os pássaros? 27 Quem de vocês pode crescer um só centímetro, à custa de se preocupar com isso? 28 E por que vocês ficam preocupados com a roupa? Olhem como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. 29 Eu, porém, lhes digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles.  30 Ora, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada no forno, muito mais ele fará por vocês, gente de pouca fé! 31 Portanto, não fiquem preocupados, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? O que vamos vestir? 32 Os pagãos é que ficam procurando essas coisas. O Pai de vocês, que está no céu, sabe que vocês precisam de tudo isso.   33 Pelo contrário, em primeiro lugar busquem o Reino de Deus e a sua justiça, e Deus dará a vocês, em acréscimo, todas essas coisas.  34 Portanto, não se preocupem com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações. Basta a cada dia sua própria dificuldade”.

Reflexão: O que Jesus, olhando a natureza, aprendeu sobre Deus? Destaque três características.

A origem do olhar de Jesus sobre a Criação de Deus

O olhar de Jesus sobre a Criação de Deus tem suas raízes na história do povo de Deus, descrita no Antigo Testamento, sobretudo na atitude dos profetas do cativeiro da Babilônia. A partir de Jeremias nasceu toda uma maneira nova de olhar a criação de Deus que culminou nas atitudes de Jesus frente aos fenômenos da natureza.

A nova maneira de Jeremias olhar a natureza

Diante do desespero generalizado do cativeiro, Jeremias dizia: “Apesar de toda essa desgraça, temos muito motivo de esperança!”  -“Qual?”  – “O sol vai nascer amanhã!” Jeremias descobre a presença de Deus na natureza. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele não pode impedir o nascimento do sol! A certeza do nascer do sol não depende dos poderes deste mundo, nem da nossa observância da lei, mas está impressa na lógica da criação. É pura gratuidade, expressão do bem-querer do Criador. É promessa que não falha. Nós podemos romper com Deus, mas Deus não rompe conosco, pois cada manhã, através da seqüência dos dias e das noites, ele nos fala ao coração e diz: “Como é certo que eu criei o dia e a noite e estabeleci as leis do céu e da terra, também é certo que não rejeitarei a descendência de Javé e de meu servo Davi. Quando essas leis falharem diante de mim – oráculo de Javé – então o povo de Israel também deixará de ser diante de mim uma nação para sempre” (Jr 33,25-26; 31,36).

Esta nova maneira de olhar a natureza modificou os olhos e abriu um novo horizonte. A certeza da presença amorosa de Deus provocou uma busca renovada dos sinais de Deus na natureza: chuvas, plantas, as fases da lua, o sol, as estações do ano, as sementes, etc. Tudo tornou-se sinal da presença gratuita de Deus.

As Dez Palavras da Aliança e as Dez Palavras da Criação

Com esta luz nos olhos, o povo, lá na desgraça do cativeiro, começa a observar a Natureza. Ao lado das Dez Palavras (Dez Mandamentos) que estão na origem da Aliança, eles começam a dar atenção também às Palavras Divinas que estão na origem das criaturas. O autor que fez a redação da narrativa da Criação (Gn 1,1-2,4ª) teve a preocupação em descrever toda a ação criadora de Deus por meio de exatamente Dez Palavras. Ele repete dez vezes a expressão “e Deus disse”:

1. Gn 1,3     E Deus disse: haja luz

2. Gn 1,6     E Deus disse: haja firmamento

3. Gn 1,9     E Deus disse: as águas se juntem e apareça o continente

4. Gn 1,11   E Deus disse: a terra produz verde

5. Gn 1,14   E Deus disse: haja luzeiros

6. Gn 1,20   E Deus disse: as águas produzam seres vivos

7. Gn 1,24   E Deus disse: que a terra produz seres vivos

8. Gn 1,26   E Deus disse: façamos o ser humano

9. Gn 1,28   E Deus disse: sejam fecundos

10. Gn 1,29 E Deus disse: dou as ervas para vocês comer.

 

E Deus disse

~yhiªl{a/ rm,aYOæw:

A Lei de Deus entregue ao povo no Monte Sinai tinha no seu centro as Dez Palavras divinas da aliança (Ex 20,1-17; Dt 5,6-22). Da mesma maneira, a narrativa da Criação tem no seu centro Dez Palavras divinas. Ao lado da Lei da Aliança, descobrem a Lei da Criação. Como fez para o seu povo, Deus faz para as criaturas: fixou para elas “uma lei que jamais passará” (Sl 148,6). Dez vezes Deus falou e dez vezes as coisas começaram a existir. Falou: Luz!, e a luz começou a existir. Falou: Terra!, e a terra apareceu. Gritou os nomes das estrelas, e elas começaram o seu percurso no firmamento. “Ele diz e a coisa acontece, ele ordena e ela se afirma” (Sl 33,9). “Deu-lhes uma lei que jamais passará” (Sl 148,6) Pela força da Palavra o Criador enfrentou a desordem do caos e fez nascer a harmonia do cosmos.

A harmonia do Cosmos que enfrenta e vence a ameaça do caos é fruto da obediência das criaturas aos Dez Mandamentos da Criação. O povo não tinha observado a Lei da Aliança. Por isso veio a desordem do cativeiro. As criaturas, ao contrário, sempre observam a Lei da Criação. Por isso existe a harmonia do cosmos. No Pai-Nosso Jesus dirá: “Seja feita a vossa vontade na terra assim como é feita no céu”. Jesus pede que nós possamos observar a Lei da Aliança com a mesma perfeição com que o sol e as estrelas do céu observam a Lei da Criação. Na harmonia do universo descobrimos como realizar nossa missão. O Decálogo da Criação descreve a ação de Deus em nosso favor, o Decálogo da Aliança descreve como deve ser a resposta do ser homem.

A total gratuidade da presença universal de Deus Criador encheu de esperança o povo desanimado do cativeiro e lhe deu coragem para recomeçar com garra a busca da justiça, a observância da lei de Deus. Agora, eles observam a lei da aliança, não mais para poder merecer a salvação, e sim para poder agradecer e retribuir a imensa bondade com que Deus os amou primeiro e cujo amor não depende da observância da lei. Eles sabem que nada nem mesmo o fracasso pode separá-los do amor de Deus (Is 40,1-2ª; 41,9-10.13-14; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16; 54,7-8; etc; cf. Rom 8,35-39)

A fé no Deus Criador abriu um horizonte, cujo alcance para a vida só se compara com o horizonte que a ressurreição de Jesus abriu para os discípulos confrontados com a barreira intransponível da morte. A fé na gratuidade da presença universal de Deus torna-se a infra-estrutura da observância dos dez mandamentos.

O olhar dos cristãos sobre Jesus como centro do Cosmos

Textos que revelam este olhar dos primeiros cristãos

Seguem quatro textos sobre (1). como os primeiros cristãos olhavam para a natureza e (2) como chegaram a ver em Jesus o centro do cosmos e o primogênito de todas as criaturas.

 

Romanos 8,18-23:

18 Penso que os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós. 19 A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus. 20 Entregue ao poder do nada – não por sua própria vontade, mas por vontade daquele que a submeteu -, a criação abriga a esperança, 21 pois ela também será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus.  22 Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora. 23 E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo”.

Colossenses 1,13-20:

13 Deus Pai nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do seu Filho amado, 14 no qual temos a redenção, a remissão dos pecados. 15 Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito, anterior a qualquer criatura; 16 porque nele foram criadas todas as coisas, tanto as celestes como as terrestres, as visíveis como as invisíveis: tronos, soberanias, principados e autoridades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. 17 Ele existe antes de todas as coisas, e tudo nele subsiste. 18 Ele é também a Cabeça do corpo, que é a Igreja. Ele é o Princípio, o primeiro daqueles que ressuscitam dos mortos, para em tudo ter a prima­zia. 19 Porque Deus, a Plenitude total, quis nele habitar, 20 para, por meio dele, reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz”.

 

Efésios 1,9-12:

9 Ele (Deus) nos fez conhecer o mistério da sua vontade, a livre decisão que havia tomado outrora  10 de levar a história à sua plenitude, reunindo o universo inteiro, tanto as coisas celestes como as terrestres, sob uma só Cabeça, Cristo. 11 Em Cristo recebemos nossa parte na herança, conforme o projeto daquele que tudo conduz segundo a sua vontade: fomos predestinados  12 a ser o louvor da sua glória, nós, que já antes esperávamos em Cristo.”

 

Hebreus 1,1-5

1 Nos tempos antigos, muitas vezes e de muitos modos Deus falou aos antepassados por meio dos profetas. 2 No período final em que estamos, falou a nós por meio do Filho. Deus o constituiu herdeiro de todas as coisas e, por meio dele, também criou os mundos. 3 O Filho é a irradiação da sua glória e nele Deus se expressou tal como é em si mesmo. O Filho, por sua palavra poderosa, é aquele que mantém o universo. Depois de realizar a purificação dos pecados, sentou-se à direita da Majestade de Deus nas alturas. 4 Ele está acima dos anjos, da mesma forma que herdou um nome muito superior ao deles. 5 De fato, a qual dos anjos Deus disse alguma vez: “Você é o meu Filho, eu hoje o gerei?” Ou ainda: “Eu serei seu Pai, e ele será meu Filho?”

Reflexão: O que eles, através da observação da natureza, aprenderam sobre o mistério divino em Jesus? Destaque três características do olhar dos primeiros cristão sobre a natureza e sobre Jesus.

A origem do olhar dos Cristãos sobre Jesus como centro do cosmos

Jesus é visto por eles como o centro da criação, como o primogênito de todas as criaturas. Aqui também, a fonte, onde eles buscavam luz e inspiração para suas reflexões eram (1) a lembrança do próprio Jesus, (2) a experiência do Espírito de Jesus na vida em comunidade e, sobretudo, (3) alguns textos do Antigo Testamento que os orientavam na sua reflexão sobre o mistério divino em Jesus.

Ao ler estes textos do AT pense em Jesus e tenha presente que, para os primeiros cristãos, a chave principal de leitura do AT era a convicção de que em Jesus se realizavam todas as promessas do AT.

Provérbios 8,22-31

22 Javé me produziu como primeiro fruto de sua obra, no começo de seus feitos mais antigos.  23 Fui estabelecida desde a eternidade, desde o princípio, antes que a terra começasse a existir.  24 Fui gerada quando o oceano ainda não existia, e antes que existissem as fontes de água. 25 Fui gerada antes que as montanhas e colinas fossem implantadas, 26 quando Javé ainda não tinha feito a terra e a erva, nem os primeiros elementos do mundo. 27 Quando ele fixava o céu e traçava a abóbada sobre o oceano, eu aí estava. 28 Eu me achava presente quando ele condensava as nuvens no alto e fixava as fontes do oceano;   29 quando punha um limite para o mar, de modo que as águas não ultrapassassem a praia; e também quando assentava os fundamentos da terra. 30 Eu estava junto com ele, como mestre-de-obras. Eu era o seu encanto todos os dias, e brincava o tempo todo em sua presença;  31 brincava na superfície da terra, e me deliciava com a humanidade”.

 

Eclesiástico 24,1-12:

1 A Sabedoria louva a si mesma e se gloria no meio do seu povo. 2 Ela abre a boca na assembléia do Altíssimo e se glorifica diante do poder dele: 3 “Eu saí da boca do Altíssimo e recobri a terra como névoa.  4 Armei a minha tenda nas alturas, e o meu trono ficava sobre uma coluna de nuvens. 5 Percorri sozinha a abóbada do céu e passei pelas profundezas dos abismos. 6 Estendi o meu poder sobre as ondas do mar, sobre a terra inteira e sobre todos os povos e nações. 7 Em todos eles procurei um lugar para repousar e uma propriedade onde pudesse me estabelecer. 8 Então o Criador do universo me deu uma ordem. Aquele que me criou armou a minha tenda, e disse: ‘Instale-se em Jacó e tome Israel como herança’.9 Ele me criou desde o princípio, antes dos séculos, e eu nunca deixarei de existir. 10 Oficiei na Tenda santa, na presença dele, e desse modo me estabeleci em Sião. 11 Ele me fez habitar na cidade amada, e em Jerusalém exerço o meu poder. 12 Coloquei raízes no meio de um povo glorioso, na porção do Senhor, seu patrimônio”.

 

Sabedoria 7,22-8,1:

22 Na sabedoria há um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, imaculado, lúcido, invulnerável, amigo do bem, agudo, 23 livre, benéfico, amigo dos homens, estável, seguro, sereno, que tudo pode e tudo abrange, que penetra todos os espíritos inteligentes, puros e sutilíssimos. 24 A sabedoria é mais ágil que qualquer movimento, atravessando e penetrando tudo por causa da sua pureza. 25 A sabedo­ria é exalação do poder de Deus, emanação puríssima da glória do Onipotente e, por isso, nada de contami­nado nela se infiltra. 26 Ela é reflexo da luz eterna, espelho nítido da atividade de Deus e imagem da sua bondade. 27 Embora seja única, ela tudo pode. Permanece sempre a mesma, mas renova tudo, e entrando nas almas santas, através das gerações, forma os amigos de Deus e os profetas.  28 De fato, Deus ama somente aqueles que convivem com a sabedoria. 29 Ela é mais bela que o sol e supera todas as constelações de astros. Comparada à luz do dia, ela sai ganhando,  30 pois a luz cede lugar à noite, mas contra a sabedoria o mal não prevalece. 8,1 Ela se estende vigorosamente de um extremo a outro, e governa retamente o universo.

OS SALMOS

O olhar do povo orante sobre a Criação de Deus

Mística Cósmica: aprender a rezar os fenômenos da natureza

O livro dos Salmos é o maior dos livros da Bíblia. Tem 150 capítulos! Mesmo assim só uma parte dos salmos está no Livro dos Salmos. A outra parte está espalhada pela Bíblia, em quase todos os seus livros, tanto do AT como do NT. Os Salmos são o lado orante da história do povo de Deus. Neles você encontra a Lei, a História, a Sabedoria, a Profecia. Têm de tudo!

A oração dos salmos é como a água do rio que percorre e fertiliza a história e a vida do povo de Deus, do começo ao fim (cf Sl 46,5).

1. A Nascente: a raiz dos Salmos

A nascente é o lugar onde a água está dentro do chão, nas cabeceiras do rio. A nascente do rio dos salmos é a experiência de Deus nas contradições da vida; é a convicção de que Javé, Deus vivo e libertador, está presente na vida. Ele nos ouve quando o invocamos. A raiz dos salmos é a certeza de que Deus escuta o nosso clamor.

Se vocês quiserem aprofundar esta dimensão dos salmos, seguem aqui algumas referências: Salmo 3,5; 4,2.4; 5,2-3.4; 6,9-10; 9,13; 10,17; 12,6; 13,4; 17,1.6; 18,7;  20,2.10; 21,3.5; 22,2-3.6.25; 25,2-3; 27,7; 28,1-2.6; 30,3.9; 31,23; 34,5.7.16.18; 39,14; 40,2; 54,4; 55,22.18.20; 56,10; 57,3-4; 61,2; 64,2; 65,3; 66,17-18; 69,4.14.17.34; 71,2; 72,12; 77,2; 79,11; 80,2; 81,8; 84,9; 86,1.6.7; 88,2-3.14; 99,6.8; 102,2-3.21; 106,44; 107,6.13.19.28; 116,1-2.4; 118,5.21; 119,145-149.169-170; 120,1; 130,1-2; 138,3; 140,7; 141,1; 142,2-3.6-7; 143,1-2.6-7; 145,18-19. Pesquisando vocês completam a lista.

2. As Fontes: os motivos eu levam a rezar

As fontes são os lugares onde a água sai do chão e começa a correr sobre a terra. As fontes do rio dos salmos são os motivos que levam o po­vo a rezar. Cada salmo tem o seu motivo. Alguns motivos aparecem com maior freqüência. Até hoje, os mesmos motivos estão na origem das nos­sas orações e revelam, assim, a afinidade dos sal­mos com a nossa vida. Eis alguns destes motivos:

1. A história. O passado é lembrado para cantar as maravilhas de Deus (Sl 105); animar as pessoas (Sl 107); levá-las à conversão (Sl 106); para agradecer: “Eterno é seu amor!” (Sl 136).

2. O conflito entre fé e realidade. Provoca a crise de fé. O presente é tão diferente do passado! Deus mudou? (Sl 77,11). O mal venceu? (Sl 14 e 53): “Vou seguir o exemplo deles!” (Sl 73,15).

3. O sofrimento. O sofrimento gerou o maior número de salmos: perseguição (Sl 3), solidão (Sl 142), doença (Sl 41), escuridão (Sl 88), etc. O sofrimento provoca desejos de vingança (Sl 109).

4. A lei de Deus. “Felizes os íntegros que andam na Lei do Senhor” (Sl 119,1). Alguns salmos revelam a mística profunda a que o povo chegou observando a Lei de Deus (Sl 19 e 119).

5. As festas do povo. Muitas festas! Da semeadura à colheita! As três grandes fes­tas do ano (Ex 23,14) com suas romarias ao Templo marcavam o ritmo da vida orante do povo (Sl 120 a 134).

6. A busca da presença de Deus. “Senhor, há muito que te procuro!” (Sl 63,1): no Templo (Sl 23,6; 27,4; 84,1-5; 122,1); em todos os momentos da vida (Sl 139); na presença dele, para sempre!

8. A penitência. A história ensina que o perdão de Deus é maior que o pecado (Sl 106) e que sem Deus não há saída (Sl 30,7-8). Por isso pede perdão (Sl 51). A confissão liberta (Sl 32,5-8).

9. A esperança. É a última que morre! Eles esperam pela libertação e pedem para que Deus realize suas promessas (Sl 2; 72). “Espero ver a bondade do Senhor na terra dos vivos!” (Sl 27,13).

10. A natureza. É o tema muito freqüente que nos interessa particularmente nesta 3ª Oficina. “A Tua presença irrompe por toda a terra!” (Sl 8,2). Na harmonia do Universo, descobrem a força da Palavra de Deus que os conduz (Sl 33,4-12; 19,2-7; 104; 29,3-9).

Se vocês quiserem aprofundar esta dimensão dos salmos, seguem aqui algumas referências: Sl 1,3-4; 8,2.4.10; 18,8-16; 19,2-7; 24,1-2; 29,3-10; 33,4-12;36,6-8; 42,2; 46,2-4; 48,8; 50,3; 65,6-14; 68,9-10; 72,5-8; 74,12-17; 77,17-21; 78,69; 89,10-13.37-38; 90,5-6; 93,1-4;  95,4-5; 96,9-13;  97,1-6;  98,4-9;104,1-35;  114,1-8;  119,89-91;  125,1-2;  135,6-7;  136,5-9; 144,5-7; 147.7-9.14-18; 148,1-10; 150,1.2.6. Pesquisando vocês completam a lista.


A LIÇÃO DOS ÍNDIOS

Uma reflexão de Leonardo Boff sobre as lições que podemos receber dos índios:

Os índios sentem e vêem a natureza como parte de sua sociedade e cultura, como prolongamento de seu corpo pessoal e social. Para eles a natureza é um sujeito vivo e carregado de intencionalidades. Não é como para nós modernos, um objeto mudo e sem espírito. A natureza fala e o indígena entende sua voz e mensagem. Por isso ele está sempre auscultando a natureza e se adequando a ela num jogo complexo de inter-relações. Há sábias lições que precisamos aprender deles face às atuais ameaças ambientais. Importa entender a Terra, não como algo inerte, com recursos ilimitados, disponíveis ao nosso bel prazer. Mas como algo vivo, a Mãe do índio a ser respeitada em sua integridade. Se uma árvore é derrubada, faz-se um rito de desculpa para resgatar a aliança de amizade. Precisamos de uma relação sinfônica com a comunidade de vida, pois como foi comprovado, Gaia (terra) já ultrapassou seu limite de suportabilidade. Se deixarmos as coisas correrem e não fizermos nada as ameaças se tornarão devastadora realidade. (Leonardo Boff, O desafio Amazônico, 19.02 2007).

Dois exemplos da lição de índios que não perderam o contato com a natureza: o primeiro é de um índio do Xingu, Brasil, contado pelo indigenista Orlando Villas Bôas; o segundo, de um índio da América do Norte.

Orlando Villas Bôas conviveu com os índios e estudou os costumes deles. Ele conta o seguinte:

“De todas as histórias contadas pelos índios, a mais surpreendente foi nascida de uma conversa com Arru, um de meia-idade que, embora não fosse um grande pajé, era, sem dúvida, o mais versado nos conhecimentos que transcendem o saber comum, principalmente no campo do sobrenatural. Arru chegara do mato cansado da caminhada e, encontrando-nos na aldeia, sentou-se a meu lado. Não havia muita coisa a conversar. Seu mundo monótono, nesse aspecto, valia pelo que já havia acontecido. Foi por isso que ele, olhando para os lados, para o chão e depois para o céu, disse: -“Lá é o céu.  –“Eu já sabia”, respondi. –“Lá é a aldeia dos que morrem”. –“Eu já sabia”. Depois de um breve intervalo, e de olhar bastante elevado para o céu, falou: -“Lá no céu do céu… ela está lá”. Fui tomado de surpresa. Céu do céu… O que viria a ser isso? Ela está lá? Ela, quem? A figura de um índio velho? Daí perguntei: -“Quem? Um índio velho que sabe tudo? –“Não! (pronunciado com veemência), somente uma sabedoria!”  E com um gesto largo abrangendo o sol e o céu deu-me a idéia de que lá havia somente uma sabedoria, que, tal qual a concepção das seitas tibetanas, mantém a harmonia do universo.” (O Villas Bôas, A Arte dos Pajés, Impressões sobre o universo espiritual do indio xinguaano,Editoria Globo,2000, p.89-90) .

Em 1852, o governo dos Estados Unidos propôs comprar as terras dos índios. O cacique Seattle estranhou a proposta e expôs a sua preocupação numa carta ao Presidente. Segue aqui um trecho da carta:

“O presidente em Washington informa que deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu ou a terra? A idéia nos é estranha. Se nós não possuímos o frescor do ar e a vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte desta terra é sagrada para meu povo. … Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs. O urso e a águia são nossos irmãos. O topo das montanhas, o húmus das campinas, o calor do corpo do cavalo, o ser humano, pertencem todos à mesma família. A água brilhante que se move nos rios e riachos não é apenas água, mas é o sangue de nossos ancestrais. Se lhes vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar partilha seu espírito com toda a vida que ampara. Uma coisa sabemos: nosso Deus é também o seu deus. A terra é preciosa para ele. Esta terra é preciosa para nós, também é preciosa para vocês. Uma coisa sabemos: existe apenas um Deus. Nenhum ser humano, vermelho ou branco, pode viver à parte. Afinal, somos irmãos!” (Joseph Campbell, O Poder do Mito, Editora Palas Athena, 14ª edição, São Paulo, 1996, pp.34 e 36)

São duas maneiras diferentes de relacionar-se com a terra. Para Seattle, o chefe indígena, a terra é dom de Deus e fonte de identidade. Para o Presidente dos Estados Unidos a terra é apenas uma mercadoria, um objeto de troca. Para Arru, o índio do Xingu, a terra, o chão, o passado, o céu, tudo faz parte de uma sabedoria universal que nos envolve e da qual nós somos apenas uma parte. Não somos os donos do mundo; tomamos conta, e temos que prestar conta. Dizia um descendente dos índios lá do Ceará: “Eu não sou pessoa. Sou pedaço de pessoa. A pessoa é a comunidade. Vivendo em comunidade me torno pessoa”. São duas mentalidades distintas: a dos índios e a nossa. Temos muito a aprender deles. Nos últimos três ou quatro séculos, uma ciência utilitarista que só busca seu próprio proveito, privou-nos desse contato com a natureza e, por conseguinte, da sabedoria que nasce do contato com a mãe terra, Pachamama.

PAI NOSSO ECOLÓGICO

Por Edward Neves M. B. Guimarães

Pai e Mãe de todos nós,

Espírito-de-Amor, Comunhão-Infinita, Deus-Criador…

Tu transcendes todo tempo e lugar, mas nos permites encontrar-te tão próximo:

No olhar límpido e meigo das crianças,

Na força profética e contagiante dos sonhos da juventude,

No porto seguro do seio da mãe,

No aconchego afetuoso dos braços do pai,

No encontro festivo e irradiante de familiares e amigos,

Na teimosia do povo em luta pela vida plena,

No caminhar tateante e sereno dos idosos.

Na singeleza do perfume das flores,

No sabor inebriante e suculento dos frutos,

Na fecundidade das sementes lançadas na terra,

Na diversidade incontável das cores e espécies vegetais,

Na vitalidade escondida das raízes dedicadas a possibilitar a vida,

No mistério da renovação impulsionada pelas estações do ano.

Na leveza do vôo dos pássaros,

Na delicadeza das formas dos insetos,

Na complexidade crescente dos peixes, répteis e mamíferos,

No desejo ardente pela vida, encarnada em cada espécie animal.

Na aurora esperançada do nascente,

No êxtase interiorizante do pôr do sol,

Na beleza prateada da noite enluarada,

Na imensidão desbordante do céu estrelado,

Nas águas cristalinas da nascente,

No ritmado som da cachoeira,

Na beleza incomensurável da criação.

Tu habitas a interioridade de cada ser.

Interpelas-nos no rosto desfigurado dos empobrecidos.

E alegras o coração do ser humano que se dispõe a servir.

Por tudo isso santificado, por todas as culturas e religiões, sejas o teu nome.

Nele encontramos fonte de igualdade, dignidade e valor.

Venha a nós, através de tua graça e de nossas atitudes cotidianas, o teu Reino de amor, justiça e paz.

Seja feita, entre nós, a tua vontade de revelar-nos o teu amor incondicional e universal.

Vontade manifestada, de modo singular, nos gestos e ensinamentos de Jesus de Nazaré, teu Filho amado:

Que todos tenham vida e vida em abundância”, em todo tempo e em cada lugar.

O Pão nosso e a Água nossa de cada dia nos dai hoje, Pai.

Perdoai nossas ofensas à mãe natureza e aos nossos irmãos e irmãs,

Que também nós busquemos perdoar a quem nos ofendeu, como Tu nos perdoas sempre.

Alimentai a nossa fome de justiça, fraternidade, diálogo, tolerância e paz.

Ensinai-nos a ser mais ecológicos, conscientes e coerentes.

Ensinai-nos a amar mais a vida encarnada em cada ser.

Fortalecei nossa capacidade de sonhar, de lutar por um outro mundo possível e, sobretudo, de ser livres,

Mas de ser livres para a pratica da justiça, da simplicidade e do amor.

Não nos deixeis cair na tentação economicista e consumista da vida,

Livrai-nos do mal do egoísmo, da indiferença e da exclusão.

Assim seja!

Amém!

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