Por que chegamos a estarrecedora situação atual? – Por Leonardo Boff

Por que chegamos a estarrecedora situação atual? – Por Leonardo Boff

Leonardo Boff

É lugar comum afirmar que estamos no coração de uma grande crise de civilização. Ela não é regional mas global. Na verdade, ela encerra uma infinidade de outras crises, no econômico, no político, no ideológico, no educacional, no religioso e até no espiritual. Não sabemos o que nos espera. Temos mais e mais a consciência de que assim como  o mundo está, não pode continuar. O caminho atual nos está levando à beira de um precipício. Temos que mudar. É atribuída a Einstein a frase: “o pensamento que criou a crise atual não pode ser o mesmo que nos vai tirar dela”. Temos que definir um novo caminho. Como construí-lo para que seja realmente outro tipo de mundo?

O fato irrecusável é que há demasiado caos  destrutivo sem previsão de ser generativo. Há formas de desumanidade que ultrapassam tudo o que temos vivido e sofrido na história. Basta assistir ao genocídio que ocorre a céu aberto na Faixa de Gaza perpetrado por um Primeiro Ministro israelense, cruel e sem piedade, Benjamin Netanhyau, apoiado por um Presidente católico norte-americano e pela Comunidade Europeia que trai seus ideais históricos de direitos humanos, de liberdade e de democracia. Todos estes se fazem cúmplices do crime hediondo contra a humanidade. Sem esquecer que vigora uma nefasta onda de ódio, a negação da ciência e da verdade. Prevalece a ignorância e a linguagem grosseira e ofensiva. Esse anti-fenômeno se dá principalmente no Ocidente.

 Só o fato de 1% possuir a riqueza de mais da metade da humanidade, demonstra quão perverso, profundamente desigual e injusto é o cenário social mundial. Acresce ainda a emergência ecológica com a insustentabilidade do planeta Terra, velho e com recursos limitados que, em si, não suporta um crescimento ilimitado, obsessão das políticas sociais dos países. Esse processo extenuou, devido à superexploração, os biomas terrestres e está pondo em risco as bases naturais que sustentam a vida (Earth Overshoot). A  continuidade da aventura humana neste planeta não está assegurada. Bem escreveu o Papa Francisco em sua encíclica Fratelli tutti (2020):” Estamos todos no mesmo barco; ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”. Tudo vem resumido pelo aquecimento global crescente, inaugurando, ao que parece, uma nova fase mais aquecida e perigosa da história da Terra e da humanidade.

Por que chegamos à atual situação ameaçadora que pode pôr em risco o futuro da vida humana e da natureza?

Há várias interpretações da situação funesta da atualidade. Não tenho a pretensão de ter uma resposta suficiente. Mas levanto uma hipótese, fruto de toda uma vida de estudo e de reflexão. Estimo que a nossa situação remonta lá atrás, há dois milhões de anos, quando surgiu o homo habilis, o ser humano que inventou instrumentos de intervenção nos ciclos da natureza. Até aí sua relação era de interação, sintonizando-se com os ritmos naturais e tomando o que sua mão alcançava. Agora, com o homo habilis ou faber começa a intervenção na natureza: a caça de animais e a derrubada de matas para um cultivo rudimentar. Depois de milhares de anos, levou avante a intervenção até chegar há 10-12 mil anos, no neolítico, com a agressão da natureza. Interferiu-se no curso dos rios, inaugurando a agricultura de irrigação e o manejo de inteiras regiões que implicava mudanças nas relações com a natureza e já depredando-a.  Por fim, a partir da era do industrialismo e do modo moderno e contemporâneo de produção pela técnica, pela automação, pela robótica e pela inteligência artificial levou a um processo de destruição da natureza. Projetamos uma nova era geológica, a do antropoceno e seus derivados, o necroceno e o piroceno. Aí comparece o ser humano como o Satã da Terra. Transformou o jardim do Éden num matadouro,como denunciou o biólogo E.Wilson.Não se comportou como o anjo cuidador de todo o criado.

Esse processo histórico-social ganhou sua justificação teórica pelos pais fundadores da modernidade com Galileo Galilei, Descartes, Newton, Francis Bacon e outros. Para eles, o ser humano é “mestre e dono” da natureza. Não se sentia parte dela, mas estava fora e acima dela. A Terra até então tida como Magna Mater que tudo nos dá, passou a ser considerada como uma coisa inerte (res extensa), sem propósito, no máximo, um baú de recursos entregues ao uso e ao bel prazer do ser humano. O eixo orientador deste modo de ver o mundo  é a vontade de poder, como dominação do outro, dos povos, de suas terras (colonização), da classe operária, da natureza, da vida até o mínimo gene, da matéria até o pequeníssimo topquark. A serviço da dominação foi criada a ciência, não apenas como justo conhecimento teórico de como as coisas se estruturam mas como instrumento de dominação e de novos inventos. Ela foi logo apropriada pela vontade de poder, convertendo-a numa operação técnica para a transformação do mundo circundante. Com ela se moveu uma verdadeira guerra contra a Terra, sem chance de vencê-la, arrancando tudo dela em função do sonho de um crescimento ilimitado de bens materiais. Atacou-se a Terra em todos os níveis, tendo como consequência a devastação de praticamente os principais biomas, sem medir os efeitos colaterais. É o império da razão instrumental-analítica e tecnocrática. Não podemos deixar de apreciar os imensos benefícios que trouxe para a vida humana. Mas ao mesmo tempo criou o princípio de autodestruição com armas letais que podem liquidar toda a vida. A razão ficou irracional e enlouquecida.

Hoje chegamos ao ponto-limite de a Terra se mostrar gravemente enferma. Como é um Super-Organismo vivo, Gaia, reage mando-nos eventos extremos: secas severas e nevascas rigorosas, uma vasta gama de vírus e bactérias, algumas letais, além de tufões, tornados, enchentes e terremotos.  Não estamos indo ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele. A ciência chegou atrasada, apenas pode alertar para a chegada de desastres e minorar seus efeitos danosos. Efetivamente, esta mudança climática ameaça perigosamente a vida de crianças e de idosos e põe sob grave risco o futuro do sistema-vida.

Acresce um dado nada desprezível. O despotismo da razão – o racionalismo – recalcou o que há demais humano em nós: nossa capacidade de sentir, de amar, de cuidar, de viver a dimensão dos valores como a amizade, a empatia, a compaixão, em fim, o mundo das excelências. Tudo isso era visto como empecilho para o olhar objetivo das ciências. Separou-se mente e coração, a razão intelectual e a razão sensível. Tal ruptura ocasionou profunda distorção dos comportamentos, ocasionando insensibilidade face ao drama dos milhões e milhões de pobres e miseráveis e a falta de cuidado para com a natureza e suas “bondades” como dizem os povos andinos.

Se quiséssemos resumir numa pequena fórmula a crise civilizacional diria: ela perdeu a justa medida, valor, presente em todas as tradições éticas da humanidade. Tudo é desmedido, o assalto à natureza, o uso da violência nas relações pessoais e sociais, as guerras sem qualquer medida de contenção, o predomínio desmedido da competição ao preço da cooperação, o consumo desmedido ao lado da fome canina de milhões, sem qualquer senso de solidariedade e de humanidade.

A seguir este projeto de civilização, calcado sobre o poder-dominação e somente sobre a razão instrumental e sem coração hoje mundializado, iremos fatalmente ao encontro de uma tragédia ecológico-social  a ponto de fazer o planeta Terra inabitável para nós e para os organismos vivos. Seria o nosso fim depois de milhões de anos sobre esse belo e ridente planeta. Não soubemos cuidá-lo para ser a Casa Comum de todos os humanos, a natureza incluída.

Mas como o processo da gênese do cosmos e da Terra não é linear, mas dá saltos para cima e para frente, pode ocorrer o inesperado. Face a um grande impacto ou catástrofe, pode torna viável uma transformação fundamental. Levaria a mudar a consciência coletiva da humanidade. Como disse o poeta alemão Hölderin (+1843):”Ai onde mora o perigo, cresce também o que o salva”. Esse salvamento significaria a mudança necessária de paradigma civilizatório e assim garantindo o nosso futuro. Isso poderia representar a utopia possível e viável para a atual situação. Oxalá!

Leonardo Boff escreveu A busca da justa medida (2 vol), Vozes 2002/3; Cuidar da Casa Comum: pistas para evitar o fim do mundo, Vozes 2023.

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