A intolerância que se alastra. Por padre José Antônio, da Arquidiocese de Mariana, MG

“Não considero os que pensam diferente como adversários, mas sim como inimigos.” Essa frase não foi proferida por um qualquer, num boteco, mas pelo deputado mais votado no Brasil nas últimas eleições em seu discurso transmitido pelos meios de comunicação para quem quisesse ouvir, por ocasião da votação do relatório da CPMI dos atos golpistas em 8 de janeiro.
Ele recebeu 1,47 milhão de votos. No dia em que colocou uma peruca loira no Congresso para fazer um discurso transfóbico, adquiriu mais de 20 mil seguidores nas redes sociais. Ou seja, são milhões de pessoas que pensam da mesma forma e se identificam com essa postura. Essa é apenas uma pontinha de um iceberg que se avoluma a cada dia, em todo o mundo, e que podemos chamar de intolerância.
À primeira vista, pode parecer uma atitude completamente infundada, ridícula e idiota não aceitar que o outro é diferente e tenha o direito de o ser. “Toda unanimidade é burra, porque quem segue a unanimidade não precisa pensar”, diz o ditado atribuído a Nelson Rodrigues. Embora nem sempre isso seja verdade, é muito difícil aceitar que alguém prefira que todos tenham os mesmos gostos, a mesmas ideias, o mesmo pensamento e façam as mesmas escolhas. Seria o cúmulo do tédio e da pobreza.
Aliás, podemos dizer que a beleza maior da Criação está justamente na sua infinita diversidade. Deus não se repete e expressa a sua infinita criatividade e riqueza na diversidade das criaturas. Mas a realidade é que os que não conseguem conviver com o diferente são muito mais numerosos do que podemos imaginar. E o fato de não tolerar o diferente é uma das raízes do preconceito, da discriminação, da violência, de tantas guerras. Parece bizarro, mas há quem chegue ao cúmulo de achar que tem o direito de eliminar quem torce por um time diferente do seu, vota num candidato que não é o seu, escolha uma forma de expressar a sua espiritualidade que não é a sua. Vemos isso todo dia.
E quando essa intolerância se funda em crenças religiosas a questão se torna ainda mais grave. Se a pessoa está convicta de que suas atitudes são vontade de Deus ou até uma ordem dele, é capaz de tudo, de matar e morrer. O fanatismo religioso é por demais perigoso. A convicção de que a sua verdade é a única corta qualquer iniciativa de diálogo, de respeito do diferente, de abertura para o outro. Fecha qualquer possibilidade de ouvir, de buscar, de aprender. E pode levar a atitudes assustadoras.
O fato é que, se Deus nos fez à sua imagem e semelhança, nós também, sem perceber, criamos um deus à nossa imagem e semelhança. Cremos num deus que nos interessa, que comunga com o nosso jeito de ser. Não é por mera coincidência que muitos que hoje se dizem cristãos se identificam muito mais com o Deus do Antigo Testamento, mais juiz, legalista e muitas vezes vingativo, do que com o Deus de Jesus Cristo, um Deus Pai, com traços de mãe, voltado à compaixão e à misericórdia.
Se você toma o Alcorão, lá irá encontrar: “Deus é o Misericordioso, o Dispensador de misericórdia” (59:22). Jesus nos afirma que toda a Lei de Moisés e os Profetas podem se resumir no amor a Deus e ao próximo (cf. Mt 22,38-40). “Quero a misericórdia e não os sacrifícios” (Mt 9,13).
Contudo, o que se vê normalmente é que aqueles que se deixam dominar por certo fanatismo tomam a Bíblia e o Alcorão ao pé da letra em tudo, menos no que é essencial: a justiça (Mt 6,33), o amor, a compaixão, a misericórdia.